Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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quarta-feira, maio 06, 2009
Minhas andanças com Thiago de Mello (parte 2)
O poeta Thiago de Mello retornou ao país em 1979, depois de uma peregrinação de quase quinze anos por terras estrangeiras. Sua bagagem sentimental era composta de livros, esculturas e quadros, presenteados a ele pelos mais representativos intelectuais do planeta. O poeta resolveu compartilhar aquele tesouro com seus irmãos da selva.
Em Barreirinha, ele levou dez anos para erguer o Porantim do Bom Socorro, na zona urbana da cidade, onde passou a residir. O refúgio do poeta, um dos últimos projetos do arquiteto Lúcio Costa, era composto de três imóveis.
Em um deles, que funcionava também como residência, Thiago instalou a biblioteca Moronguetá e uma biblioteca de literatura universal. Em outro, instalou a biblioteca amazônica, com 800 volumes, a biblioteca latino-americana e uma biblioteca de artes plásticas, com centenas de livros. No terceiro, o poeta instalou um Museu Universal e um Museu de Usos Humanos da Madeira Amazônica, atendendo a uma sugestão do antropólogo Gilberto Freyre.
As jóias da coroa estavam na biblioteca latino-americana. Constituída de 1.500 volumes, ela continha, entre outras preciosidades, a coleção completa das revistas Crisis, da Argentina, Casa de Las Américas, de Cuba, e Plural, do México, além das obras completas de Alejo Carpentier, Nicolas Guillén, Octavio Paz, Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luis Borges, Julio Cortazar, Pablo Neruda, Jose Lezama Lima, Mario Vargas Llosa, Cíntio Vitier, Guillermo Cabrera Infante, Eduardo Galeano e Osvaldo Soriano, entre outros, a maioria delas com dedicatórias afetuosas ao poeta feitas de próprio punho pelos autores.
Na biblioteca de artes plásticas, com 500 volumes, era possível consultar livros sobre Picasso, Miró, Salvador Dalí, Chagall, Paul Klee, Henri Cartier-Bresson, Man Ray, William Klein, Sebastião Salgado, Robert Doisneau, Mario Giacomelli e muitos outros.
Havia, ainda, um exemplar original da Expedição Langsdorff ao Brasil, com ilustrações de Rugendas, Taunay e Florence, e outro da Colonização dos Holandeses no Recife, com ilustrações de Franz Prost e Barleus. Cada uma destas duas últimas obras citadas está avaliada, por baixo, em 20 mil dólares.
No museu Universal, o destaque era uma gravura em bronze de Miró, da série Constelações (as demais estão no Louvre, de Paris), e várias aquarelas de Roberto Sambonet, considerado o maior pintor italiano do século vinte e morto em 1999. Sambonet, durante quase uma década, foi presidente da Sociedade Internacional de Design.
Havia, ainda, serigrafias de Volpi, gravuras de Ana Letícia (considerada a maior gravadora do Brasil), xilogravuras da mineira Iara Tupinambá, aquarelas de Fernando Fiúza (que já foi premiado na Bienal de São Paulo) e diversos quadros de Moacir Andrade, Jair Jacqmont, Rufino Tamoyo, Rosé Bru e Venturelli (premiado na Bienal de Veneza), para só ficar nos mais conhecidos.
No museu da Madeira, Thiago havia conseguido dezenas de remos antigos de formatos diferentes, arpões de massaranduba desenvolvidos para a pesca de poronga, várias almanjarras (um tipo primitivo de moenda de espremer cana), canoas esculpidas pelos índios diretamente no tronco de árvores, bancos, pilões e gareiras, uma espécie de recipiente do bagaço da macaxeira após o tipiti.
O destaque do museu ficava por conta de uma série esplendorosa de adoquinis – beirais de madeiras ucranianos pintados à mão –, que Thiago havia recebido de presente do ex-ministro de Turismo Rafael Grecca.
Em 1993, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério de Relações Exteriores, Thiago de Mello foi convidado para assumir o posto de adido cultural do Brasil no Chile. Era uma espécie de acerto de contas, já que o poeta ocupava aquele cargo quando eclodiu o golpe militar de 64 e ele foi defenestrado pelos novos ocupantes do Poder, tendo que se exilar na casa de Pablo Neruda, na Isla Negra.
Thiago, que apesar da idade ainda hoje trabalha doze horas por dia para sobreviver com dignidade, viu logo que seria impossível manter o Porantim do Bom Socorro enquanto estivesse morando em Santiago do Chile.
Ele, então, resolveu vender os imóveis, com tudo dentro, para o governo do Amazonas, cobrando um preço simbólico (menos de 10% do valor real das obras de arte ali coletadas).
O secretário de Fazenda da época, Sérgio Cardoso, com o aval do governador Gilberto Mestrinho, comandou as negociações. Entre as exigências do poeta, uma declaração firmada em cartório de que o Governo do Estado se comprometia em manter “uma cuidadosa conservação do rico patrimônio ali representado, com destinação cultural a serviço do povo da região.”
A idéia do governador Gilberto Mestrinho era fazer do Porantim do Bom Socorro um campus avançado da Utam. Um amigo de Thiago de Mello, Bartolomeu Maranhão, ficou encarregado de vigiar o imóvel enquanto o governo não ocupasse, de fato, o mesmo.
Três meses depois de Thiago ter partido, e sem que recebesse um tostão pelos serviços de vigia, Bartolomeu foi dispensado da função por ordem expressa da Secretaria Estadual de Fazenda. O Porantim ficou abandonado.
Em 1994, uma galera de menores infratores resolveu fazer do lugar seu quartel-general. Foi como colocar uma milícia taleban, armada até os dentes, no templo de Angkor, no Cambodja. Em questões de dias, o trabalho primoroso de Suryavarman II, aliás, de Thiago de Mello, estava completamente destruído.
Os museus e bibliotecas foram saqueados. A residência foi transformada em bordel e em ponto de encontro de viciados. Livros de arte foram queimados em substituição ao carvão comum. Mais de 100 fitas cassetes, com cantos indígenas, foram utilizadas como “bole-bole”.
Duas esculturas de mestre Vitalino, que José Lins do Rego doou a Thiago, quando o escritor paraibano já estava em seu leito de morte, foram destruídas a marteladas. Um vitral em forma de rosácea com mais de 2 metros de diâmetro e 200 anos de história, que Thiago havia adquirido em Paris, foi transformado em vidro moído para cerol de papagaio.
Dezenas de lâminas policromáticas de Barbosa Rodrigues ganharam a destinação de papel higiênico. Cartas pessoais de Pablo Neruda viraram rabiola de carrapetas. Muitas pessoas viajavam de Manaus para Barreirinha exclusivamente para participar do botim. O Porantim do Bom Socorro virou uma terra de ninguém.
Quando Thiago retornou a Barreirinha, em 95, ficou tão traumatizado com o que viu que nunca mais colocou os pés no lugar. Afinal de contas, ali estava depositada, praticamente, toda uma vida dedicada a tornar o mundo mais humano e o resultado tinha sido uma blitz arrasadora digna de animais irracionais.
O mais assustador disso tudo é que ninguém foi responsabilizado pelo desastre. O acervo foi perdido para sempre.
Pior para os amazonenses, que se viram privados de desfrutar de um grandioso patrimônio artístico pacientemente coletado pelo poeta por mais de cinco décadas. A merda é que Thiago me contou essa história escrota sem mostrar qualquer emoção.
Fiquei tão puto que no dia seguinte convenci Aparecida a me levar ao local, fiz fotografias e depois, quando voltei a Manaus, fiz o maior escarcéu na imprensa. Não deu em nada. Vivemos no Brasil.
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Um comentário:
Existem documentos que comprovem esta perda? E as obras que estão na Pinacoteca de Manaus que pertenciam ao acervo Thiago de Mello?
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