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terça-feira, maio 19, 2009

Quem poluiu os igarapés de Manaus? A democracia...


Quem conta é o escritor e jornalista Sebastião Nery, no livro “Folclore Político – 1950 histórias”:

Artur Cezar Ferreira Reis, professor e amazonólogo, sempre viveu no Rio de Janeiro. Filho de Vicente Reis, fundador do Jornal do Comércio, foi estudar no Rio e lá ficou pesquisando de longe a floresta, virgem de sua presença.

Estava em Genebra, em 1964, numa comissão internacional a serviço do governo brasileiro, recebeu um telegrama chamando-o de volta. Pegou o avião, desceu no Galeão. Os jornalistas não entenderam a cara displicente.

– Como é, professor? Como é que vai ser o governo?
– Que governo?
– Ora, professor, não brinque. Será que o senhor ainda não sabe? O senhor foi eleito governador do Amazonas.
– Eu? Por quem?
- Pela Assembléia.


Artur César coçou os olhos, pôs a pasta no chão e esfregou as mãos, nervoso:

– Ninguém avisa mais nada pra gente...


Pois foi desse jeito, digamos assim, meio rocambolesco, que o governo do Amazonas caiu no colo do historiador e advogado Artur Cezar Ferreira Reis, amazonense de Manaus, no dia 27 de junho de 1964, logo após a cassação do então governador Plínio Coelho (PTB) pelos militares que haviam deposto o presidente Jango.

Para se ambientar com a região, Artur Reis desceu do avião em Belém do Pará e embarcou no navio Augusto Montenegro, subindo o rio Amazonas até Manaus. Era uma viagem, digamos assim, de reconhecimento da hiléia que ele só conhecia de livros.

Quando o navio subia o Rio Negro, rumo ao Porto Flutuante, o historiador pirou o cabeção ao se deparar com a Cidade Flutuante, de cuja existência ele sequer desconfiava. Mas vamos dar um break nessa história.

No começo daquele mesmo ano, numa manhã chuvosa, os produtores franceses do filme “O homem do rio”, estrelado por Jean-Paul Belmondo, tinham desembarcado em Manaus para fazer a pré-produção e escolher as locações.

Não podiam ter encontrado melhor lugar para se hospedarem, senão o Hotel Amazonas, o único da região com ar condicionado.

Ele ficava situado estrategicamente entre o Porto Flutuante, o Mercado Municipal e o lugar inusitado que eles não imaginavam existir por ali, a Cidade Flutuante.


Aquela paisagem, numa arquitetura dançante, impressionou-os. E ficaram mais impressionados ainda quando um dia se viram no olho do furacão.

Eles estavam passeando pelas vielas daquela imensa favela aquática, quando ouviram gritos populares de “não deixa o assassino fugir”, em meio a uma algazarra infernal.

Os produtores franceses ficaram bestas ao presenciarem um suposto criminoso fugir através de um buraco que, evidentemente, só podia levá-lo às águas do rio.

O sujeito, nadando por debaixo da Cidade Flutuante, conseguiu escapar de bubuia e escafedeu-se.

O intérprete traduziu aos gringos o que havia dito o delegado Almir Omar: “Esse meliante escapou por debaixo desse labirinto, mas não vai ser por muito tempo. Peixe que é peixe sempre é obrigado a vir buscar oxigênio fora d’água”.

Ao notar que os gringos estavam interessados na sua opinião, o delegado aproveitou para exibir sua sabedoria regional: “A vida do homem nessa região é uma realidade anfíbia, daí esse pessoal não se intimidar com a fúria do sobe e desce das águas. Eles vão construindo suas casas palafitas, e não só elas, mas toda e qualquer atividade: lojas, postos de gasolina, quitandas, botecos que, estruturados sobre toras e ancorados em pontos que facilitem o comércio, funcionam em tempo de cheia ou vazante. Aqui é a Manaus que nunca dorme”.

Essa última frase soou como canto de sereia aos ouvidos dos produtores. Haviam achado a sua locação.

No filme “O homem do rio”, o ator francês Jean Paul Belmondo movimenta-se sem inibição de qualquer natureza.

Em questão de segundos ele sai de Paris, entra no avião, desembarca no Rio de Janeiro, pula sobre a floresta amazônica, desafia seus desafetos entre as vielas da Cidade Flutuante, equilibra-se nos andaimes dos monumentais prédios em construção de Brasília, e tudo isso dentro de uma narrativa fragmentada, com enquadramentos e montagens desconcertantes.

O cineasta amazonense Aurélio Michiles atualmente trabalha no documentário “O quintal da minha casa”, onde pretende mostrar essa passagem dos produtores franceses por Manaus e o que aconteceu depois com a cidade.


Mas voltando ao primeiro governador do Amazonas durante o regime militar. Desconcertado com o que viu e achou esquisito (“Narciso acha feio o que não é espelho”), Artur Reis, inspirado no governador carioca Carlos Lacerda, resolveu “remover” a favela que “dava um aspecto horroroso à bela frente da cidade”.

Para quem não está lembrado, durante seus quatro anos de mandato, entre 1960 e 64, o governador Carlos Lacerda defendeu uma reformulação completa da política habitacional no Estado do Rio.

Seu objetivo era levar os pobres para a periferia, nos mesmos moldes do que acontecia nas principais cidades da Europa e Estados Unidos.

Foi durante seu governo que foram construídas a Vila Kennedy, em Senador Camará, a Vila Aliança, em Bangu, e a Vila Esperança, em Vigário Geral, além da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, que sozinha recebeu moradores de 63 favelas extintas.

A criação dos conjuntos habitacionais fazia parte do Plano de Habitação Popular, amplamente financiado pelo governo americano através da Aliança para o Progresso.

O amazonense Artur Reis usou da mesma receita. Depois de construir as Cohab-AMs da Raiz, de Flores e do Parque Dez, usou da força policial para remover os moradores da Cidade Flutuante para esses novos conjuntos residenciais, localizados lá no caixa-prego. Os recalcitrantes tiveram suas "casas flutuantes" incendiadas.

Na seqüência, também a ferro e fogo, Artur Reis começou a expulsar os moradores de palafitas dos leitos dos igarapés, removendo-os para a periferia da cidade (Compensa, Alvorada, Japiim) e obrigando-os a se manterem afastados 30 metros dos cursos d’água, tal como preconiza o Código de Postura do município. Quem desobedecesse, teria o barraco incendiado.

Essa medida antipopular, mas “ambientalmente correta”, foi colocada em prática, com maior ou menor rigor, pelos governadores que o sucederam (Danilo Areosa, coronel Walter Andrade, Henoch Reis e José Lindoso), o que possibilitou que a maioria dos igarapés da cidade continuasse servindo como “balneários públicos” até o início dos anos 80.

Os governantes não precisavam prestar contas a ninguém nem angariar simpatia popular, já que eram nomeados pelos “donos do poder”. Simples, assim.

Mas em 1982, o país começou a se “redemocratizar” e ocorreram as primeiras eleições diretas para governadores. Foi quando “o populismo que não ousa dizer seu nome” entrou em cena.

As invasões passaram a ser toleradas – afinal de contas, os invasores possuíam título de eleitor – e até incentivadas. O reordenamento territorial da cidade foi pras cucuias. A saúde dos cursos d’água, também.


Os primeiros a se transformarem em esgoto a céu aberto foram os igarapés da bacia de Educandos e Cachoeirinha (Igarapé de Manaus, Igarapé da Cachoeirinha, Mestre Chico, Quarenta, Crespo, Granja, etc).

Depois os da bacia do Mindu, incluindo o famoso balneário Parque Dez de Novembro, implantado pelo prefeito Antonio Maia nos anos 50, e os da bacia de São Jorge e São Raimundo, incluindo os igarapés do Franco, da Alvorada e dos Franceses.

Finalmente, a bacia do Tarumã e da Ponte da Bolívia, localizados praticamente fora do perímetro urbano da cidade.

Em menos de 10 anos, os novos hunos haviam transformado os igarapés de águas límpidas e transparentes em pocilgas nauseabundas e focos permanentes de transmissão de doenças de veiculação hídrica (dengue, malária, hepatite e o catzo a quatro).

Sim, quando há uma expansão urbana, o crescimento desordenado tem uma relação direta com a perda da qualidade da água. Qualquer um que não seja um batráquio de pijamas sabe disso. Só os nossos governantes não sabiam...

Mas, a essa altura do campeonato, com 99% dos igarapés que cortam Manaus totalmente poluídos, adianta chorar pelo leite derramado? Acredito que não.


Se parássemos hoje de jogar esgotos domésticos nos igarapés, seriam necessários mais de 40 anos para que eles se recuperassem. Como isso não vai mesmo acontecer, aproveita e “chupa, que é de uva” ou então “senta, que é de menta”.

“Tó pra vocês, chupins desmemoriados!” (Decius dixit).

2 comentários:

Kadia Eneida disse...

É interessante essa relação do populismo com o deixa acontecer. Nossos igarapés são verdadeiros esgotos. E a política adotada nos últimos 20 anos, não foi de restauração, conservação ou preservação. Mas de oficialização da tragédia, quando começaram a concretar os leitos, o que chamam de “hip-hap”, não sei de onde surgiu essa idéia de “ordenamento urbano”, mas também não procurei saber. Para o inicio da mudança, somente com pessoas sérias e visionárias, que conseguem ver o futuro e fazer parte dele, mesmo não estando mais nessa esfera, gerindo as políticas públicas.

Michele Torinelli disse...

gostei do texto! parabéns - bastante informação e uma narrativa gostosa (esse realismo fantástico do cotidiano latinoamericano! Muito boas as passagens do meliante-marinho e do governador por acaso).

e como faz pra assistir esse filme francês da pesada?