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terça-feira, setembro 20, 2011

Meu amigo Nestor


O compositor Afonso Toscano se apresenta na noite desta quarta-feira, no Teatro Amazonas, defendendo a música “Anjo de Cor”, em que homenageia o saudoso ativista cultural, militante comunista e advogado Nestor Nascimento, cuja letra segue abaixo:

Ê São Benedito
Chegou a hora de abençoar
Nosso irmão Nestor
É um anjo de cor
A sua força não pode faltar

É Nestor Nascimento
Que por nascimento
Nasceu brasileiro
De Luanda, de Angola,
Da Praça 14 de Janeiro
Ele é filho de Xangô,
Qual o pai é um guerreiro
Na resistência da raça
Foi sempre o primeiro

Ê São Benedito...

Foi mamãe Sofia
Quem lhe ensinou soletrar,
Com sua tia Lourdinha
Compreendeu o ritual
De Benedito, do mastro
De Fátima, da procissão
O tambor de candoblé
Festa no Jaqueirão
Mil amores, mil donzelas
Cada donzela um varão

Ê São Benedito...

Batalha do Calabouço
Defendendo a nação
Encarando a polícia
Do ditador de plantão
Briga de estudante
Chupando manga com o cão
Dentes quebrados, surdez
Quase perda da visão
Nestor, meu anjo de cor
Nada disso foi em vão.


O blogueiro Rochinha e Nestor Nascimento conversando sobre amenidades no Bar do Armando, em 1996

Para mostrar uma pálida ideia da importância de Nestor Nascimento na história recente do Amazonas, precisamos mergulhar rapidamente nos anos de chumbo do regime militar.

A despeito da intervenção violenta, da destituição de professores, da expulsão de estudantes (via famigerado Decreto nº 477) e de ter promovido e subsidiado o crescimento vertiginoso das instituições privadas de ensino superior, a ditadura militar investiu muito nas universidades federais.

Pra quem não se lembra, foi nos anos 70, justamente na implantação da Lei n.º 5.540/68 (a da reforma universitária), que as universidades federais construíram seus campi definitivos, ampliaram seu quadro docente e instituíram o regime de tempo integral e dedicação exclusiva para o professorado.

Ao mesmo tempo, supostamente para evitar a “subversão estudantil”, as universidades públicas acabaram se transformando em uma autêntica zona.

Ninguém mais estudava por turma, como antes: estudava-se por créditos (matérias).

Resultado: eu, estudante do 2º ano de Administração da FUA, fazia uma matéria numa turma de Comunicação (com Plínio Valério, Torrinho, Mário Adolfo e Inácio Oliveira), outra numa turma de Economia (com Julio Garrido, Ricardo Fonseca e Luiza Noronha), uma outra numa turma de Estudos Sociais (com Jurandir Saldanha e Socorro Lima) e assim por diante.

A razão de tal despropósito? Os militares queriam evitar que os alunos de uma mesma turma criassem laços afetivos e, mais tarde, operassem como células subversivas financiadas pelo “ouro de Moscou”.

Só que o feitiço virou contra o feiticeiro.

Pulando de galho em galho, a gente acabava ficando íntimo da maioria dos estudantes universitários (e não apenas dos 35-40 de uma turma tradicional).

Para conhecer um “subversivo”, era questão de tempo.

O ICHL funcionava onde hoje é a Faculdade de Estudos Sociais (FES).

O point da moçada era o boteco “Tamborete do Reitor”, localizado próximo da Embratel (hoje UEA).

Foi lá que conheci o camarada Nestor Nascimento, numa noite de 79.


Magela e Georgina Andrade, Nestor, Felix Valois e esse vosso escriba looking for flying saucers in the sky

Eu o tinha como uma lenda viva: o cara estava lá no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, em março de 68, quando a polícia matou o estudante Edson Luís.

Estava nas passeatas de protesto contra a ditadura, ao lado de Luís Travassos, Vladimir Palmeira e José Dirceu.

Tinha sido preso, torturado e sobrevivido para contar como era o inferno.

Havia fundado o Movimento Alma Negra (Moan), a primeira ONG amazonense dedicada a defender os direitos civis de negros, mestiços e brancos pobres.

Pertencia a executiva regional do proscrito PCB.

Dedicava a maior parte do seu tempo a fundar cooperativas e sindicatos de trabalhadores rurais.

Além disso, era um espada matador registrado em cartório (tanto que deixou doze filhos).

Virou amor à primeira vista.

Filiado ao MDB desde 1975, eu andava injuriado com a situação política do páis, em geral, e com meus fantasmas interiores, em particular.

Em 1978, meus candidatos da ala autêntica do MDB (Artur Neto, para deputado federal, e Fábio Lucena, para o Senado) haviam perdido na “mão grande”, minha mãe havia morrido de câncer, eu tinha sido demitido da Sharp do Brasil por conta de uma greve mal planejada, estava desempregado, fodido, mal pago e com dois pivetes gêmeos para criar.

Em outras palavras, eu queria sangue.

Estava convencido de que só matando uns cem mil vagabundos a gente consertava o país (hoje seria preciso matar mais de 1 milhão...).

Nestor me ensinou a ser paciente como um jabuti.

Segundo o príncipe nagô, quando uma árvore desaba sobre um jabuti no meio da mata e ele fica imobilizado, o bicho não se desespera: simplesmente aguarda a árvore apodrecer para então se livrar da armadilha mesmo que isso demore 100 anos...

Em 1980, com a presença de Evandro Carreira, Antônio Diniz, Romerito Brito (um príncipe, morto estupidamente em Tabatinga), Frederico Arruda, Messias Sampaio, Nestor Nascimento e outros, fundamos o primeiro diretório distrital do MDB, na casa de meu pai, na Cachoeirinha.

A comemoração foi no Barraka’s Drinks, do Wilson Fernandes (que, por culpa do Rubens Bentes, então assessor do “senador pororoca”, levou um pino federal).

Nestor virou um amigo querido.

Sua maneira de saudar as pessoas (o punho levantado para o alto, com a mão fechada, que nos remetia à saudação dos famosos “panteras negras” John Carlos e Tommy Smith, no pódio das Olimpíadas do México, em 68, acompanhado do enfático “a luta continua, companheiro!”), tornou-se um copyright intransferível.

Nos últimos anos, eu e Mário Adolfo nem o cumprimentávamos mais: simplesmente levantávamos o punho e ele já entendia o código.

Morria de rir.


Rogelio Casado, Neidinha, nego Henrique, Nestor, Jomar Fernandes e José Klein

Lembro, com saudade, de um dos porres que tomamos juntos, no Bar do Armando, em 97.

Ele havia sido nomeado procurador-geral da CMM, por iniciativa do vereador Bosco Saraiva, na época presidente da Casa.

Os dois tinham uma origem comum: eram moleques pobres e nascidos em bairros operários (Bosco, no Morro da Liberdade, Nestor, na Praça 14), mas que, apesar das adversidades, conseguiram brilhar além e acima da manada.

Nestor tinha acabado de conhecer os EUA, a convite de uma ONG internacional, e estava em estado de graça.

Fez questão de me explicar, minuciosamente, o contexto de cada foto que trouxera (eram umas duzentas).

Eu olhava, com uma inveja malsã, e dizia:

– Porra, negão, quem diria que um dia você ia entrar no Capitólio sem ser para pegar o lixo e colocar lá fora!

Ele ria que se engasgava e dizia “a culpa é do Bosco! A culpa é do Bosco!”.

Ainda bem que Bosco Saraiva lhe deu essa pequena alegria.

Voltamos a nos encontrar um ano depois, no velório do Paulo Graça – um dos muitos fãs do crioulo.

Paulinho considerava Nestor um “gênio da raça” e, sempre que podia, elogiava a altivez, a honestidade de propósitos, a capacidade de trabalho e a luta honrosa (mas que ele, Paulo Graça, sem esconder um travo de amargura, considerava inglória) pelo fim do preconceito racial, pelejada, diuturnamente, pelo príncipe nagô.

Tempos depois, soube do AVC sofrido por ele.

Fiquei sem coragem de vê-lo.

Em outubro de 2001, o nego Henrique (ex-secretário estadual de Saúde) colocou Nestor num carro e o levou ao Bar do Armando.

Foi um choque.

Visivelmente debilitado, ele dava a impressão de não reconhecer ninguém.


Mas riu muito quando comecei a lhe falar no ouvido sobre a “propaganda enganosa” a respeito de sua famosa boiúna, fruto da indiscrição do poeta Marco Gomes, que o havia visto nu durante um banho de asseio.

Foi a última vez que o vi.

Nestor vai ficar na memória coletiva de muita gente por muito tempo.

O que o Sindicato dos Escritores (leia-se José Ribamar Mitoso) e o Coletivo Gens da Selva (leia-se Marco Gomes) batalharam para que as “otoridades” olhassem por ele, não está no gibi.

Está nos jornais.

Inválido, Nestor dependia da caridade alheia.

Quem tinha poder de nomeá-lo para um cargo razoável e, assim, minimizar seu sofrimento, nunca moveu uma palha – enquanto vários picaretas se fartavam à tripa forra.

Sem contar com nenhum tipo de assistência médica e tendo como único esteio a advogada Rita Furtado, Nestor Nascimento resolveu ir embora desse planeta chinfrim no começo de 2002.

Está fazendo falta.

Esta homenagem musical do Afonso Toscano vem em boa hora.

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