Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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sexta-feira, setembro 23, 2011
O sumiço do rádio
Eu e Jander Santos durante a pré-inauguração do Clube da Chave, uma versão melhorada do night club San Remo
Comerciante bem-sucedido no baixo Amazonas, Alcir Magalhães sempre foi um figuraço.
Quando ainda comia o pão que o diabo amassou como trabalhador braçal em Oriximinã (PA), ele já mantinha aquele jeitão de membro típico da fidalguia britânica que ostenta até hoje.
E não gostava de se sentir por baixo de ninguém, em nenhuma circunstância.
Texto típico de Alcir, naquela época:
– Égua, parente, onde foi que tu comprou essa camisa? – indagava, curioso.
– Ah, isso é uma camisa Lacoste que comprei em Manaus! Custou uma fortuna porque é importada, veio diretamente de Paris! – respondia o sujeito.
– Égua, rapaz, vou comprar uma pra mim também. Tu é meu patrão, mas não é melhor do que eu, não! – avisava Alcir.
Na semana seguinte, lá estava ele com uma camisa exatamente igual à do patrão.
Mesmo que aquilo lhe custasse o salário de um mês.
Vereador em Nhamundá, o compositor Carlos Paulain morava de aluguel numa casa pertencente a Alcir Magalhães, quando este já havia se transformado em um próspero comerciante do município.
Outro grande comerciante da época, o coronel Bitônio Hortêncio, morador de Parintins, comprou uma bonita casa em Nhamundá e resolveu se mudar para a cidade.
Um dia, comecinho da tarde, o vereador estava tirando uma soneca numa rede atada na varanda, quando chegou seu senhorio:
– Êi, Carlinhos, chegou o compadre Bitônio. Tu vai lá comigo, tu é um vereador de merda, mas é meu amigo, então tu vai lá comigo, conhecer o meu compadre...
– Claro, claro! – concordou Paulain. “Eu vou, eu vou, pra mim será uma honra...”.
– Égua, porra, então chama o Jander Souza também, ele num te larga, parece até teu xerimbabo...
– Chamo, sim, seu Alcir, pode deixar...
Carlos Paulain passou na casa de Jander, ex-secretário municipal de Turismo de Nhamundá, o convidou para conhecer o compadre de Alcir, e lá foram os três para o barco do coronel Bitônio, que estava sozinho na embarcação.
Depois de feitas as apresentações de praxe, o quarteto subiu para o convés superior e sentou-se à mesa, para conversar, beber cachaça e tirar gosto com torresmo.
Em termos de birita, o coronel Bitônio era um verdadeiro leão: com quase dois metros de altura, parrudo que nem o Maguila, ele era capaz de beber três dias seguidos, misturando cerveja, conhaque, vodka, cachaça, água sanitária e creolina, que não ficava nem com bafo.
O comerciante Alcir Magalhães também era um emérito profissional do copo, graças aos chás de ervas medicinais que ingeria diariamente com pontualidade suíça: boldo, quebra-pedra, barbatimão, unha-de-gato, vassourinha, mururé, sálvia, carqueja, beldroega e pedra-ume-caá.
Amadores mesmo, somente o compositor e o ex-secretário municipal, que, ainda assim, bebiam como gente grande.
A ventania que corria no tombadilho e que, volta e meia, derrubava uma cadeira, também contribuía para a “maldita” custar a pegar.
Seis garrafas de cachaça mais tarde, quando todo mundo já estava meio calibrado, o coronel levantou-se da mesa, olhou em torno, ficou meio cismado, aí voltou a sentar-se no seu lugar, em silêncio.
De repente, perguntou:
– Alcir, tu visse o meu rádio?...
– Égua, porra, não, não vi, não! – respondeu Alcir. Aí, virando-se para os outros dois convidados questionou: “Cadê o rádio, porra, cadê o rádio do compadre Bitônio?...”.
Paulain e Jander continuaram na deles, sem saber do que os dois compadres estavam falando.
Alcir e o coronel levantaram-se da mesa e começaram a procurar o rádio pelo convés do barco.
Procuraram, procuraram, procuraram e nada de o rádio ser encontrado.
O coronel Bitônio estava ficando cada vez mais puto.
– Sumiu meu rádio... Porra, o rádio com que eu pego os avisos das minhas filhas, lá de Manaus, na Difusora. Eu não posso ficar sem esse rádio, Alcir, porra, cadê o rádio?...
Alcir também estava começando a ficar nervoso vendo a aflição do seu compadre.
Depois de mais uma nova busca infrutífera, Alcir jogou a toalha:
– Égua, porra, cadê o rádio? Olha, rubaro o teu rádio, compadre, rubaro o teu rádio!... Tem um ladrão aqui dentro de nós!...
Então, como se fosse um Sherlock Holmes, parou perto da mesa onde Paulaim e Jander continuavam sentados, e começou a fazer suas brilhantes deduções:
– Porra, Bitônio, tu não vai roubar o que é teu, que tu num é leso...
O coronel nem respondeu porque estava a ponto de ter um troço, cada vez mais agoniado e aflito, repetindo um mantra de uma nota só:
– Pelamor de Deus, cadê meu rádio, rapaz, cadê meu rádio?... Pelamor de Deus, cadê meu rádio, rapaz, cadê meu rádio?... Pelamor de Deus, cadê meu rádio, rapaz, cadê meu rádio?...
O Sherlock Holmes continuou suas deduções:
– Eu, Alcir Ferreira Magalhães, cinco mil rezezinhas no pasto, não tenho por que roubar um rádio de bosta desses, que ainda por cima deve ser a pilha...
Então, respirando fundo, limpou as mãos numa toalha que estava em cima da mesa, olhou sério para Carlos Paulain e continuou:
– O Carlinhos, vereador, ganha mal, sei que não tá muito bem de vida, mas é um moço ilustrado, não é capaz de fazer uma patifaria dessa...
Aí, olhando pro Jander, que parecia não se dar conta da gravidade da situação, sentenciou:
– Porra, Jander, devolve o rádio do homem! Tu tá desempregado, anda comendo do bom e do melhor e só se traja bem, só pode ser porque tu tá roubando! Devolve o rádio do meu compadre, porra, devolve o rádio!...
O coronel Bitônio, que havia acabado de conhecer o sujeito naquela tarde, não contou duas vezes.
Correu na cabine, pegou um terçado e voou na direção de Jander, completamente transtornado:
– Me devolve meu rádio, seu desgraçado, ou eu te parto no meio!...
Num ato reflexo, Jander pulou da mesa, deu dois passos pra trás e voou de costas por cima da amurada do tombadilho, caindo n’água de roupa e tudo, onde começou a nadar feito um desesperado em direção à praia.
Nem o César Cielo seria capaz de acompanhar suas braçadas vigorosas.
Carlos Paulain era o único que mantinha o sangue-frio e tentava colocar ordem na casa.
O coronel Sidônio, totalmente ensandecido, já estava colocando dois cartuchos numa espingarda doze, papo-amarelo, para ver se acertava nas costas do fugitivo antes de ele alcançar o barranco, quando o compositor segurou no cano da arma e implorou:
– Seu Sidônio, tenha calma, não vá me fazer uma besteira!...
Alcir puxou o inquilino pelo braço e deu o maior esporro:
– Num te mete, Carlinhos, num te mete! Num protege o ladrão! Num protege o ladrão!...
Felizmente, Jander Santos conseguiu escafeder-se em direção à cidade, antes dos tiros serem disparados.
Dentro do barco, depois de alguns minutos, os ânimos finalmente serenaram.
O coronel é que continuava inconsolável:
– Porra, meu rádio, Alcir, meu rádio! Tava bem ali e eu inda punhei ele dentro da caixa! Tava novo, novo, novo, Alcir, porra, meu rádio!...
Nisso, um moleque, remando uma canoa, encostou ao lado do barco e começou a gritar pelo nome do comerciante.
Quando Alcir meteu a cara na amurada, o moleque perguntou:
– Êi, seu Alcir, não é esse rádio que vocês estão procurando?...
E exibiu uma caixa contendo um pequeno rádio a pilha.
O coronel Sidônio quase desmaiou de emoção.
Na verdade, a ventania havia derrubado o rádio dentro d’água, mas o estojo protetor de isopor o impediu de afundar e a caixinha ficou flutuando no entorno da embarcação até o moleque resgatá-la.
Quando o coronel começou a retirar os cartuchos da espingarda, Alcir caiu na real:
– Puta merda, puta merda! Eu ofendi o Jander, Carlinhos, eu ofendi o Jander! – desculpou-se. “Manda chamar o Jander agora mesmo, pra mim pedir desculpa, que quase que ele pega uma terçadada e uma carga de chumbo por minha causa...”.
Mas o ex-secretário municipal Jander Santos, àquela altura do campeonato, já estava num barco de linha com destino a Parintins, desejando que o coronel, seu compadre e o compositor ardessem pelo resto da vida no quinto dos infernos.
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