Em pé, o Desembargador
Artur Virgílio do Carmo Ribeiro. Sentado, o Senador Artur Virgílio Filho. No
colo, o atual candidato a prefeito Artur Virgílio Neto
Durante uma reunião do Congresso Nacional em dezembro de
1968, nas vésperas da publicação do AI-5, o senador Artur Virgílio Filho,
ex-líder do PTB no Senado e então vice-líder do MDB, ocupa a tribuna para fazer
um discurso emocionado, denunciando os horrores da ditadura militar e repetindo
o que já havia dito três anos antes.
– Que nos fechem hoje, mas com o povo que nos assiste ao
nosso lado, e não nos fechem amanhã, ingloriamente, com o aplauso do povo
brasileiro, como aconteceu em 1937! – vociferava o senador.
Vice-líder do MDB na Câmara e amigo de Artur Virgílio de
longa data, o deputado Paes de Andrade pede-lhe um aparte, para se solidarizar
com ele.
Artur Virgílio faz que não vê. Paes insiste. Artur Virgílio
não dá a mínima.
Quando desceu da tribuna, Paes foi lhe cobrar:
– O que é isso, Virgílio? Como é que você me negou o
aparte?...
– Paes, eu hoje não fiz um discurso, fiz um requerimento.
Esse discurso é um requerimento de cassação. Você não tinha nada que entrar no
meu requerimento. Cumpri meu dever de trabalhista e vice-líder da oposição e
sei que eles vão me cassar. Estou indo embora, mas você precisa ficar para,
junto com os outros companheiros, continuarem lutando pela volta da democracia.
Dito e feito. Dois meses depois, em fevereiro de 1969, o
senador Artur Virgílio Filho foi cassado e teve seus direitos políticos
suspensos por dez anos por força do Ato Institucional nº 5, publicado em 13 de
dezembro de 1968.
O senador Artur
Virgílio Filho (em pé), durante uma reunião com o presidente João Goulart e o senador
Filinto Muller
Era disso que eu estava me lembrando dentro do elevador, na
noite da véspera do Natal de 1978, quando, na companhia do jornalista Mário
Adolfo, estava indo ao encontro do ex-senador, que morava então,
solitariamente, no edifício Antônio Simões, no centro de Manaus.
Aquela história do senador já havia ganhado contornos de
lenda entre os militantes da esquerda amazonense.
Nos últimos cinco meses, minha vida havia virado de
ponta-cabeça.
Em agosto, liderei uma greve na Sharp, cujo desfecho teve
ampla cobertura do jornal A Crítica graças ao empenho do jornalista Mário
Adolfo, mas depois de uma semana de paralisação, eu e o engenheiro Geraldo
Nogueira (irmão do ex-secretário estadual de Educação Vicente Nogueira) fomos
sumariamente demitidos.
Uma semana depois, as demissões atingiam mais de seis
dezenas de pessoas.
Em setembro, vários amigos meus foram demitidos de outras
fábricas sob a alegação calhorda de que “a primeira turma de engenheiros
eletrônicos da Utam queria transformar o pacato Distrito Industrial no
conflagrado ABC paulista”.
Rolaram cabeças na Evadim, Semp-Toshiba, Sanyo, CCE e
Gradiente, entre outras.
E o pior é que a greve na Sharp tinha sido provocada por um
problema interno da empresa...
Nas duas ocasiões (na minha demissão e na demissão dos
companheiros de outras fábricas), por obra e graça do engenheiro Adalberto
Mello Franco (demitido da Semp-Toshiba), amigo de longa data da família do
senador, fomos nos aconselhar com Arthur Virgílio Filho.
Em novembro, o engenheiro Carlos Almeida (demitido da
Evadim) foi preso autoritariamente, sem ordem judicial, quando conversávamos no
bar Farol das Batidas, em frente à sede da TV Amazonas, na Cachoeirinha, numa
tarde de sábado, e levado pela Tropa de Choque da PM para lugar incerto e não
sabido.
E tudo por conta de um mal-entendido: Carlos confundiu um
sujeito vestido de pinguim (paletó de linho branco, calça preta e gravata
borboleta) com o garçom e pediu uma “caipirinha”.
O sujeito não disse nada e se dirigiu para o balcão do bar.
Dez minutos depois, ele surgiu na varanda do boteco comandando
uma tropa de choque da PM armada de metralhadora e escopetas.
Era um coronel aposentado ligado à 2ª Seção.
Os meganhas não quiseram nem saber dos nossos pedidos de
desculpas.
Colocaram Carlos no “alçapão” de uma camionete veraneio com extrema
violência, bateram a porta e as duas camionetes com os meganhas saíram cantando
pneus em direção ao bairro da Praça 14.
Foi um deus-nos-acuda.
Novamente o senador foi convocado para nos livrar da
enrascada.
Graças a um bilhete e a uma série de telefonemas endereçados
aos advogados do famoso escritório jurídico “Simonetti, Paiva e Valois”,
conseguimos localizar e libertar o engenheiro já na madrugada de domingo.
O incidente serviu para mostrar que os pit-bulls da ditadura
continuavam dando as cartas.
Agora em dezembro, eu e Mário Adolfo estávamos indo pela
primeira vez visitar o senador sem nenhum “problema” guardado na algibeira.
Pelo contrário. Eu estava levando um livro do Pablo Neruda
(“20 Poemas de Amor e uma Canção desesperada”) e uma dúzia de cervejas em lata.
Mário levava um livro do Vinicius de Moraes (“Antologia
Poética”), uma “Carta dos Direitos Humanos”, xerocopiada, em que habilmente
desenhara uma nova capa, alguns LPs e duas latinhas de castanhas de caju.
Moleques de famílias pobres, nascidos e criados na Cachoeirinha,
não tínhamos a menor ideia de que “presente de Natal” dar a um senador.
Os livros tinham sido a única opção condizente com a nossa
precária situação financeira.
As cervejas e as castanhas era o que havia dado pra comprar
com o “troco” dos presentes.
O senador (que a gente, num arroubo de intimidade além da
conta, já chamava de “tio Ártur”, acentuando a primeira sílaba, como na
pronúncia inglesa, talvez porque ele tivesse a educação esmerada de um
verdadeiro lorde) ficou visivelmente emocionado.
Acostumado com a solidão (seus familiares moravam no Rio de
Janeiro), para ele aquela véspera de Natal seria apenas mais uma noite igual às
outras. Não foi.
Conversamos sobre isso e aquilo outro, mas, principalmente,
sobre política, e secamos algumas garrafas de vinho (depois que nossas cervejas
foram para o espaço).
O senador era um pote de erudição e ali estavam dois
ouvintes dispostos a saborear, com uma indisfarçável admiração, aquele jorro
vulcânico de quem sempre pautara a vida fazendo “o bom combate”.
Quando Arthur Virgílio Filho, recitando de cabeça um dos
muitos poemas de Neruda que sabia de cor, se aproximava da janela do 11º andar
para observar a cidade, Mário Adolfo, automaticamente, se levantava da poltrona
e ia atrás, possivelmente com medo de ver o senador se jogando pelo vazio – e o
jornalista não estar a postos para evitar a tragédia anunciada.
Mas era uma preocupação infundada. Arthur Virgílio Filho
amava a vida.
Deixamos o apartamento do senador, já com o dia amanhecendo,
completamente em êxtase.
No ano seguinte, acho que em março de 79, o senador patrocinou
uma feijoada em seu apartamento para nos apresentar seu filho mais velho, o ex-senador
e atual candidato a prefeito Artur Virgílio Neto.
No ano anterior, havíamos feito campanha para Artur Neto,
candidato a deputado federal pelo MDB, mas apesar da boa votação recebida ele
acabara na primeira suplência.
Eu e Mário Adolfo não o conhecíamos pessoalmente, mas
bastava ser filho do “tio Ártur” para ser um verdadeiro homem de bem.
Ficamos “amigos de infância” na mesma hora.
Artur Neto, que na época era militante do clandestino PCB,
trazia nas veias o idealismo do pai.
Praticar “o bom combate”, vimos logo, fazia parte da carga
genética da família.
Diplomata de carreira e orador brilhante, Neto ainda trazia
um outro diferencial que nos enchia de inveja: era professor de inglês e de
francês.
Quer dizer, ele tinha intimidade com o idioma e sabia o
significado das letras cantadas pelos Beatles, Bob Dylan, Pink Floyd, Rolling
Stones e tantos outros roqueiros que “traduzíamos” com uma dificuldade da gota
serena.
Em junho do mesmo ano, o senador Artur Virgílio Filho, na
companhia do Adalberto Mello Franco, me fez uma visita de cortesia.
Ainda desempregado, fiquei com vergonha de recebê-lo na
“tapera” de madeira carcomida em que estava morando – e, o que é pior, servindo
de “babá” para meus filhos gêmeos, Marcelo e Marcel, que mal haviam completado
dois anos, num dia-a-dia angustiante e completamente ocioso.
Tal como ele havia previsto, meu nome estava na “lista
negra” do Distrito Industrial.
Durante a tarde inteira em que ficamos conversando, o
senador falou das prisões arbitrárias que sofrera como quem fala de um
acontecimento fortuito, sem demonstrar uma ponta de mágoa ou ressentimento.
Para ele, aquilo tinha sido apenas um “acidente de
percurso”.
E traduziu magistralmente sua disposição de continuar o “bom
combate”, arriscando, se preciso, a própria vida, com uma frase inesquecível do
Che Guevara: “Prefiero morir de pie que vivir siempre arrodillado” (“Prefiro
morrer de pé do que viver sempre ajoelhado”).
Aquela lição de otimismo e desprendimento tem sido meu norte
ao longo da vida.
– Um dia você ainda vai rir muito disso tudo, meu filho! – vaticinou,
quando nos despedimos.
Acertou na mosca.
Em 28 de agosto de 1979, o presidente Figueiredo sancionou a
Lei n.º 6.683, de iniciativa do governo e aprovada pelo Congresso, anistiando
todos os cidadãos punidos por atos de exceção desde 9 de abril de 1964, data da
edição do AI-1.
Entre presos, cassados, banidos, exilados ou simplesmente
destituídos dos seus empregos, a Lei de Anistia beneficiou 4.650 pessoas, entre
as quais os ex-governadores Gilberto Mestrinho, Leonel Brizola e Miguel Arraes,
os ex-líderes estudantis Vladimir Palmeira e José Dirceu, e o ex-senador Artur
Virgílio Filho.
Em dezembro daquele ano, durante nossa tradicional
celebração natalina, Tio Ártur levantou uma interessante hipótese para “justificar”
sua cassação pelos militares.
Em 1967, um dos mais badalados futurólogos internacionais,
Herman Kahn, 150 quilos, QI de 130, calmo, extremamente feio, vaidoso e
arrogante, esteve no Brasil defendendo a transformação da Amazônia num grande
lago (ou isso ou a internacionalização da região).
Diretor do Hudson Institute, um organismo que congregava
dezenas de cientistas de renome internacional, Herman Kahn defendia a
construção de barragens edificadas ao longo dos grandes rios da planície
amazônica.
O projeto de Kahn resultaria na interligação de cinco nações
sul-americanas por meio da inundação das bacias dos principais rios (a barragem
do rio Amazonas seria no estreito de Óbidos, no Pará), possibilitando o tráfego
direto e permanente em toda a região.
A equipe do cientista chegou a sobrevoar trechos imensos da
Amazônia colombiana, estudando a sua execução.
A criação do “grande lago” melhoraria o potencial de
navegação e levaria a um grande desenvolvimento econômico na região,
determinado pela circulação fácil dos produtos e mercadorias.
Isso soava como música no ouvido de muitos militares brasileiros,
cada vez mais paranoicos com a necessidade de colonizar a Amazônia.
Legítimo representante da região amazônica no Congresso
Nacional, o senador Artur Virgílio Filho foi uma das primeiras vozes a se
insurgir contra a “ideia estapafúrdia de meia-dúzia de cientistas de araque” e
logo a briosa imprensa nacional caiu de pau no lombo do futurólogo.
A ideia do “grande lago” foi abortada num piscar de olhos.
– Bom, mas aquilo não era motivo para provocar a cassação
política de alguém, senador – eu intervinha.
– Pois é. Mas, quem sabe o que se esconde na cabeça desses
gorilas fardados? – dizia.
Aí, enquanto acendia mais um cigarro, encerrava o assunto:
– Um dia a gente ainda vai rir muito disso tudo, meu filho!
Só então a ficha caía: por mais paradoxal que fosse, a
violência contra o senador tinha sido tão absurda que ele buscava uma
“justificativa” plausível em fatos surrealistas.
Era um iluminista. Ou, quem sabe, um iluminado.
Eu, Mário Adolfo e o resto dos “meninos” continuamos a frequentar
a casa do tio Ártur ao longo dos anos seguintes e se embebedando daquele
humanismo tão pródigo e generoso.
Quando, em 1984, a “Oposição Sindical Metalúrgica” ganhou a
eleição daquele ano e fui eleito vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos,
telefonei para ele, para dar a notícia.
– Só estou nessa luta por causa daquela nossa conversa de 79
– avisei.
– Faça o que tem que ser feito, meu filho, só não traia seus
princípios – aconselhou.
Em maio de 1985, ele foi nomeado pelo presidente Sarney para
dirigir o INPS e se mudou para o Rio de Janeiro.
Foi a última vez que falei com ele, outra vez em companhia
do Adalberto Mello Franco.
O senador me presenteou com um livro do Neruda, “Memorial de
Isla Negra”, que tenho até hoje.
Em novembro daquele ano, para não “trair meus princípios”,
renunciei ao cargo de vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, que havia
se transformado em um pestilento antro de corrupção – e nunca mais deixou de ser.
Foi uma grande oportunidade de colocar em prática mais um dos
tantos generosos e pródigos ensinamentos recebidos do senador.
Dois anos depois, no dia 31 de março, o senador Artur
Virgílio Filho foi se encontrar pessoalmente com Pablo Neruda.
Estava com apenas 66 anos de idade.
Tenho (temos) saudade.
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