Um típico sound system
jamaicano dos anos 60: música nas ruas
Na música “Forward march”, Derrick Morgan celebrava, em
agosto de 1962, o novo status de seu país, após mais de três séculos como
colônia britânica, cantando: “Vamos nos juntar, irmãos e irmãs/ Somos
independentes”.
Mas foi o jovem Jimmy Cliff, então com 14 anos, quem
conquistou o topo das paradas com “Miss Jamaica”, o primeiro hit daquele
período de euforia.
Na letra, carregada de simbolismos, ele comparava a pequena
ilha caribenha, de praias paradisíacas, a uma beleza que o mundo iria conhecer:
“Embora você não tenha um tamanho fabuloso/ Comparado ao resto do mundo/ Você é
do meu tamanho/ É tudo o que eu preciso/ Você é minha Miss Jamaica/ Estou te
coroando agora”.
Na próxima segunda-feira, aquela “miss” completa 50 anos,
sendo conhecida do mundo não apenas pelas suas belezas naturais, mas também
pelo incrível poder da sua música.
Do ska ao ragga, passando pelo enfumaçado dub e pelo seu
maior produto de exportação, o reggae, a Jamaica — cujos sons serão celebrados
ao longo dos próximos 12 meses em shows, discos e exposições — influenciou
decisivamente muito do que se ouviu e do que se ouve no planeta, fertilizando a
disco, o rock, o hip-hop, a eletrônica e a MPB.
De quebra, deu ao mundo um dos seus maiores ícones, Bob
Marley, de adoração comparável a Elvis Presley e aos Beatles, e cujos discos
não param de vender, mesmo após a sua morte, em maio de 1981, de câncer. A
compilação “Legend”, de 1984, por exemplo, já vendeu 25 milhões de cópias em
todo mundo, tornando-se o maior sucesso da história do reggae.
– É realmente incrível pensar que uma ilha, pequena daquele
jeito, tenha tido essa importância para a contemporanidade musical do planeta –
diz Gilberto Gil, possivelmente o artista brasileiro mais associado ao reggae e
aos ritmos da Jamaica, onde gravou, em 2002, o disco “Kaya n’Gand Daya”. “Mas a
cultura musical do país é muito rica. E foi ela que nos deu Bob Marley, um
talento extraordinário, um gênio que eu comparo a Tom Jobim e João Gilberto”.
No jubileu da Jamaica, a figura de Marley é lembrada na
exposição “Messenger”, em exibição até 22 de outubro, no museu interativo The
British Music Experience, em Londres.
A capital inglesa – onde os sons jamaicanos encontraram uma
segunda casa – recebe também, durante os Jogos Olímpicos, a Jamaica House e o
festival Respect Jamaica 50, ambos na Arena O2, onde até 12 de agosto vão se
apresentar DJs como Jah Shaka e David Rodigan e artistas como Lee Perry, U-Roy,
Damian Marley e Jimmy Cliff.
– A influência da música jamaicana na Inglaterra é imensa.
E, a partir dali, ela se espalha pelo mundo – conta David Katz, autor do livro
“Solid foundation: an oral history of reggae”. “Isso remonta aos anos 1960,
quando o ska foi adotado pelos mods e, mais tarde, pelos skinheads. Depois, foi
Bob Marley conquistando o público do rock e os punks se apaixonando por roots
reggae. As conexões se estendem até o lovers rock e à influência dos MCs no
surgimento do jungle. É uma união bastante antiga e rica.”
Nas próximas semanas chega às ruas uma série de lançamentos
também celebrando a data. A gravadora VP Records vem com “Out of many: 50 years
of reggae music”, com três CDs, cada um trazendo um hit de cada ano na Jamaica,
de 1962 até 2012.
A Trojan
surge com “Freedom sounds: a celebration of Jamaican music”, com cinco CDs.
Mas o pacote mais farto vem da Island Records. A gravadora
fundada na Jamaica aparece com “Soundsystem”, caixa de oito CDs acompanhada por
um livro de cem páginas.
Os dois últimos lançamentos chegam ao Brasil até o fim do
mês, importados pela Universal.
– O reggae continua sendo a maior fonte de inspiração e de
orgulho para os jamaicanos – diz Carolyn Cooper, professora da University of
West Indies, em Kingston, e autora de livros sobre o assunto como “Sound clash:
Jamaican dancehall culture”. “Mas há jovens que não conhecem sua história. Tive
um aluno que me confessou só ter descoberto Peter Tosh recentemente. É trágico.
O dancehall é o som dos novos tempos, é a música que ecoa junto às novas
gerações. Mas há artistas de dancehall, como Queen Ifrica, I-Octane, Romaine
Virgo, Etana e Tarrus Riley, que se equilibram entre a modernidade e a tradição
roots.”
No Brasil, as conexões com a Jamaica – acionadas pela
primeira vez no começo dos anos 1970, por artistas como Caetano Veloso e Jards Macalé
– continuam à vista.
Além de notórios relacionamentos – do samba-reggae, na
Bahia, ao som das radiolas, no Maranhão – novidades não param de dar na praia.
No Recife, o grupo Ska Maria Pastora, que debutou
recentemente com o disco “As margens do Rio Doce”, liga o balanço jamaicano com
o frevo, enquanto produtores como Bid vão ainda mais longe, aproximando baião e
maracatu do ska e do dancehall, como no disco “Bamba dois”, gravado na ilha,
com estrelas locais como Luciano e Sizzla.
– O reggae tem uma divisão rítmica parecida com a do forró,
por exemplo. A diferença é que a gente usa triângulo, zabumba e sanfona, e os
jamaicanos usam baixo e bateria para a marcação – diz Gil. “Mas são parentes
muito próximos.”
Autor de “Não chores mais”, um clássico da fusão
Jamaica-Brasil (versão de “No woman, no cry”, de Bob Marley), Gil completa:
– Reggae, ska, afoxé, xote, é tudo uma pulsação só. Lembro
da primeira vez que mostrei um reggae para Dominguinhos, em 1975, e ele me
respondeu, brincando: “Mas que xotezinho sem-vergonha, Gil”.
Adaptação local para
os sound systems caribenhos, onde se dança as “pedras” (sucessos, na gíria
local do Maranhão)
São Luís curte o reggae há mais de 30 anos, de um jeito
bastante particular. E não há sinais de que essa conexão vá cair.
Na capital maranhense, o ritmo jamaicano ainda é o som da
massa, dançado juntinho, seja nas famosas radiolas — adaptações locais para os
sound systems caribenhos — ou em bares espalhados pela cidade.
Nas gigantescas caixas, nada de ritmos digitais, como
dancehall ou ragga.
O que une os casais é a batida marcada, macia e envolvente
do som roots, típico dos anos 1960, como se as duas ilhas tivessem parado no
tempo.
Mas há algumas novidades no ar. E uma polêmica também.
Até o começo dos anos 2000, os DJs locais disputavam com
ferocidade o privilégio de tocar uma “pedra” (sucesso, na gíria local) com
exclusividade.
Para isso, alguns, como Edmílson Tomé, mais conhecido como
Serralheiro, uma lenda local, chegavam a viajar até a Jamaica em busca de um
compacto.
Era esse o combustível para animar os bailes de radiolas
como Voz de Ouro Canarinho e Águia do Som.
Com as facilidades obtidas pelos avanços tecnológicos, o
cenário mudou um pouco.
Agora, o que os novos DJs tocam, em seus laptops, são
produções feitas em estúdios locais, com a ajuda de bases eletrônicas, o
chamado “robozinho”.
É o que se escuta na domingueira Chama-Maré, realizada na
beira da praia da Ponta d’Areia, frequentada por um público mais “classe
média”, como explica Fauzi Beydoun, DJ e cantor do grupo Tribo de Jah, mas não
o que rola em bares de “resistência” como o Kingston 777, na periferia da
cidade, comandado pelo DJ Jr Black, que só toca vinil.
– O robozinho é um som muito repetitivo, por causa das
programações eletrônicas, e às vezes soa artificial. Aí surgiu esse movimento
de resistência, e hoje há dezenas de bares pela cidade tocando sons mais
orgânicos – conta Beydoun. “A única coisa que não mudou em São Luís é que o
reggae continua sendo o som do povão, a forma de lazer mais barata, a
identidade cultural da cidade.”
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