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domingo, agosto 05, 2012

Diversidade na 3ª edição do Terruá Pará



Daniela Dacorso, de Belém (PA)

Na imponente construção neoclássica de 134 anos, inspirada no Teatro Scala de Milão, cadeiras tropicais de madeira e palha trançada.

No palco, garotos fazem som eletrônico da periferia com roupas que simulam futuristas pinturas indígenas que brilham no escuro.

A senhora de anos canta versos que louvam, com divertida conotação sexual, o “tremor” causado na boca (e no corpo todo) pelo jambu — verdura típica da culinária local que causa dormência na língua.

Os músicos da orquestra de violoncelistas dançam com seus instrumentos como se estivessem num misto de arrasta-pé e baile de tecnobrega.

Guitarras cultivadas por décadas em bordéis fuleiros dialogam com a vanguarda da juventude classe média.

Duas musas iluminam o olhar lançado dali sobre o mundo exterior: “Ela é americana/ Da América do Sul” e “Essa ‘lorinha’ americana/ Está querendo me esculachar/ Dizendo que eu sou neguinho/ E na América eu não posso entrar”.

No fim, a diva pop pós-moderna comanda o carimbó.

Realizada entre 31 de julho e 4 de agosto no Teatro da Paz, em Belém, a terceira edição do Terruá Pará – espetáculo de quase três horas unindo artistas do estado, entre 20 e 90 anos, de diferentes gêneros – sintetiza um tanto da teia de informações que gera a força da produção cultural paraense hoje.

Uma produção cultural que não se limita à música, sua vitrine mais evidente, mostra também nas artes visuais, na moda, no teatro, na literatura e no audiovisual que pode aceitar facilmente definições-clichês como “exuberância amazônica” e “diversidade de floresta tropical”, justificando, enfim, os olhares atraídos pelo estado recentemente como o polo cultural mais interessante do país.

O terruá (termo criado pelo evento a partir do francês terroir, que indica identidade local) paraense não nasce do acaso.

Ele é fruto de uma conjunção de fatores que vão desde a formação histórica da cidade até iniciativas (de Estado ou de “guerrilha”) feitas ao longo da última década que, por um lado, permitiram que surgisse uma geração de público e artistas especialmente criativa e, por outro, deram visibilidade ao que já vinha sendo feito há muito tempo.


A cantora Lia Sophia foi uma das atrações do Terruá Pará, que aconteceu no Theatro da Paz

Avaliando o que acontece na música, Ney Messias, secretário de Comunicação do estado e idealizador do Terruá Pará, defende que na base de tudo está um resgate de um “sotaque perdido”:

– O projeto “Mestres da guitarrada”, que Pio Lobato criou em 2003, é o marco zero. Ninguém falava em guitarrada então, era como se não existisse. Mas, a partir dali, as pessoas do Pará voltaram os olhos novamente para essa bagagem, antes desprezada, e viram que havia valor ali. Não só na guitarrada, mas no carimbó e em outros gêneros locais. O que o Terruá Pará faz quando aparece em 2006 (uma segunda edição foi realizada em 2011) é sistematizar esse movimento, dar um sentido a ele.

Festivais de rock como o Se Rasgum a cada edição se abriam mais para o tal “sotaque perdido”, dando espaço para artistas locais tradicionais, o som da periferia do tecnobrega e a nova geração que aparecia misturando esses elementos. O público acompanhava a transformação.

– Lembro que meus amigos riam do Pinduca, e hoje no Se Rasgum tem roda de pogo para suas músicas – diz o cineasta Vladimir Cunha, diretor do documentário “Brega S/A”. “Essa geração que surge agora já cresceu com essa abertura. E é mais esperta com relação à produção, cresceram vendo o Se Rasgum, viajam, têm referências para saber como fazer as coisas. O resultado é algo como o Mongoloid Festival, produzido por moleques de 20 anos, que vai ter bandas indianas, mexicanas e o bregueiro Cacique Cara de Pau juntos. Totalmente diferente da Belém onde eu cresci, onde as pessoas brigavam por música. Metaleiros com punks, essas coisas.”


Gaby Amarantos no festival Terruá Pará

A efervescência da música paraense e a atenção que ela tem recebido acabam dando frutos para outros terrenos, como as artes visuais.

E oferecem oportunidades para que a obra de artistas como Berna Reale, Keyla Sobral (atualmente com a exposição “Meu livro de memórias” no Rio, na Galeria do Ateliê) e Roberta Carvalho rompam os limites do estado.

– Ser de Belém, que outrora gerava um preconceito, hoje é quase pré-requisito para você conseguir mostrar sua arte – brinca Roberta, que desenvolve um trabalho de mapping, projetando imagens em árvores, quase sempre de temas amazônicos. “Nas primeiras vezes em que estive em São Paulo, as pessoas se surpreendiam: ‘Olha, ela é do Norte e está trabalhando com tecnologia.’ Temos uma tradição forte de artes visuais, sobretudo a fotografia paraense, uma escola muito valorizada no mundo.”

Editora e fundadora da revista eletrônica de arte e cultura contemporânea “Não-lugar”, Keyla lança uma provocação:

– Há grupos como o Qualquer Coletivo, gente como Orlando Maneschy, uma grande diversidade. Podíamos ter um Terruá Pará de artes visuais.

Berna mira nas artes plásticas, mas vai além quando aponta para a questão-chave para se pensar cultura no Pará: a dependência das políticas públicas e das empresas (como a Vivo, que no projeto Conexão Vivo apoia festivais, shows e gravação de CDs):

– Infelizmente uma cidade como Belém não tem mercado para sustentar a arte – diz.


O grupo de carimbó Uirapuru abriu a programação na noite de estreia

Mesmo a falta de recursos revela soluções que mostram a força da cultura paraense.

O Teatro Cuíra é um exemplo claro: criado em 2006 para ser a casa do grupo homônimo (há 30 anos em atividade), o espaço, que fica numa região de prostituição da cidade, era um casarão centenário com as paredes internas derrubadas para virar estacionamento.

A configuração acabou favorecendo o grupo, que montou sua sala, com cadeiras compradas de um cinema fechado e arquibancadas e aparelhos de ar-condicionado doados.

Assim, surgiu um palco a mais na cidade para outras companhias e músicos, prêmios e patrocínios para projetos específicos – peças do grupo que quase sempre trazem prostitutas da região no elenco.

– Quando chegamos, a primeira pessoa a meter a cabeça aqui dentro e perguntar “o que vocês vão fazer aí?” foi uma prostituta. Vimos que tínhamos que trazer as pessoas daqui para dentro do grupo. É uma forma de interagir com a cidade, e teatro se faz assim – defende o dramaturgo e diretor Edyr Augusto Proença, insatisfeito com os rumos da política cultural de Belém.

– O Terruá Pará reúne artistas ótimos, mas a realidade da cultura paraense é essa aqui (olha em volta, mostrando as instalações simples do teatro), não é a do festival.

Escritor com vários romances publicados, Proença vê surgir na literatura uma exploração original dos cenários de Belém, longe da folclorização amazônica e mais interessada na complexidade do cenário urbano de uma cidade encravada na floresta:

– Exploro essa linguagem policial, cinematográfica, sempre em histórias passadas em Belém. Jovens escritores como Marcelo Damaso (produtor do Se Rasgum, ele tem o romance “Iracundo” pronto, à procura de editora) e Cacho Ishak conversam comigo nesse sentido, falam a mesma língua.

Ishak vê as mesmas afinidades. A vista panorâmica da varanda de seu apartamento parece reafirmar seu pensamento: prédios altíssimos acusam a especulação imobiliária de um lado, enquanto a periferia pobre se espalha rasteira do outro.


A orquestra de cellos foi uma das sensações do evento

Alguns artistas ressaltam a curiosidade e o desejo de se “amostrar” do “cabôco” (uma espécie de caboclo com a especificidade de Belém) como determinantes para o que acontece no Pará. Um traço que conversa com a formação clássica, herança da fase áurea da borracha.

O resultado aparece em trabalhos como o erudito-pop da Orquestra de Violoncelistas da Amazônia e cantoras líricas como a jovem Thaina Souza, que, oriunda do tradicional Conservatório Carlos Gomes, acaba de ganhar uma bolsa para estudar em Viena – há cantores líricos paraenses espalhados pela Europa.

O audiovisual acompanha o momento, com nomes como Vladimir Cunha, Jorane Castro, Roger Elarrat, Cássio Tavernard e Priscila Brasil.

Filha de família tradicional, com direito a aulas de francês e piano na infância, Priscila chamou a atenção como diretora do clipe de “Xirley”, de Gaby Amarantos, a cantora de origem pobre, “cabôca”, do bairro de Jurunas, que abraçou a tecnologia.

O encontro das duas – hoje a primeira é empresária da segunda – traz, de certa forma, as possibilidades oferecidas por essa cultura paraense que agora se mostra para o Brasil.

Dos salões do conservatório às aparelhagens, todos estão sob a mesma opressão da umidade e do calor, lembrada a todo tempo pelo brilho do suor nos rostos – como se diz em Belém, todos breados.

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