Daniela Dacorso, de Belém (PA)
Na imponente construção neoclássica de 134 anos, inspirada
no Teatro Scala de Milão, cadeiras tropicais de madeira e palha trançada.
No palco, garotos fazem som eletrônico da periferia com
roupas que simulam futuristas pinturas indígenas que brilham no escuro.
A senhora de anos canta versos que louvam, com divertida
conotação sexual, o “tremor” causado na boca (e no corpo todo) pelo jambu —
verdura típica da culinária local que causa dormência na língua.
Os músicos da orquestra de violoncelistas dançam com seus
instrumentos como se estivessem num misto de arrasta-pé e baile de tecnobrega.
Guitarras cultivadas por décadas em bordéis fuleiros
dialogam com a vanguarda da juventude classe média.
Duas musas iluminam o olhar lançado dali sobre o mundo exterior:
“Ela é americana/ Da América do Sul” e “Essa ‘lorinha’ americana/ Está querendo
me esculachar/ Dizendo que eu sou neguinho/ E na América eu não posso entrar”.
No fim, a diva pop pós-moderna comanda o carimbó.
Realizada entre 31 de julho e 4 de agosto no Teatro da Paz,
em Belém, a terceira edição do Terruá Pará – espetáculo de quase três horas
unindo artistas do estado, entre 20 e 90 anos, de diferentes gêneros –
sintetiza um tanto da teia de informações que gera a força da produção cultural
paraense hoje.
Uma produção cultural que não se limita à música, sua
vitrine mais evidente, mostra também nas artes visuais, na moda, no teatro, na
literatura e no audiovisual que pode aceitar facilmente definições-clichês como
“exuberância amazônica” e “diversidade de floresta tropical”, justificando,
enfim, os olhares atraídos pelo estado recentemente como o polo cultural mais
interessante do país.
O terruá (termo criado pelo evento a partir do francês
terroir, que indica identidade local) paraense não nasce do acaso.
Ele é fruto de uma conjunção de fatores que vão desde a
formação histórica da cidade até iniciativas (de Estado ou de “guerrilha”)
feitas ao longo da última década que, por um lado, permitiram que surgisse uma
geração de público e artistas especialmente criativa e, por outro, deram visibilidade
ao que já vinha sendo feito há muito tempo.
A cantora Lia Sophia foi
uma das atrações do Terruá Pará, que aconteceu no Theatro da Paz
Avaliando o que acontece na música, Ney Messias, secretário
de Comunicação do estado e idealizador do Terruá Pará, defende que na base de
tudo está um resgate de um “sotaque perdido”:
– O projeto “Mestres da guitarrada”, que Pio Lobato criou em
2003, é o marco zero. Ninguém falava em guitarrada então, era como se não
existisse. Mas, a partir dali, as pessoas do Pará voltaram os olhos novamente
para essa bagagem, antes desprezada, e viram que havia valor ali. Não só na
guitarrada, mas no carimbó e em outros gêneros locais. O que o Terruá Pará faz
quando aparece em 2006 (uma segunda edição foi realizada em 2011) é
sistematizar esse movimento, dar um sentido a ele.
Festivais de rock como o Se Rasgum a cada edição se abriam
mais para o tal “sotaque perdido”, dando espaço para artistas locais
tradicionais, o som da periferia do tecnobrega e a nova geração que aparecia
misturando esses elementos. O público acompanhava a transformação.
– Lembro que meus amigos riam do Pinduca, e hoje no Se
Rasgum tem roda de pogo para suas músicas – diz o cineasta Vladimir Cunha,
diretor do documentário “Brega S/A”. “Essa geração que surge agora já cresceu
com essa abertura. E é mais esperta com relação à produção, cresceram vendo o
Se Rasgum, viajam, têm referências para saber como fazer as coisas. O resultado
é algo como o Mongoloid Festival, produzido por moleques de 20 anos, que vai
ter bandas indianas, mexicanas e o bregueiro Cacique Cara de Pau juntos. Totalmente
diferente da Belém onde eu cresci, onde as pessoas brigavam por música.
Metaleiros com punks, essas coisas.”
Gaby Amarantos no
festival Terruá Pará
A efervescência da música paraense e a atenção que ela tem
recebido acabam dando frutos para outros terrenos, como as artes visuais.
E oferecem oportunidades para que a obra de artistas como
Berna Reale, Keyla Sobral (atualmente com a exposição “Meu livro de memórias”
no Rio, na Galeria do Ateliê) e Roberta Carvalho rompam os limites do estado.
– Ser de Belém, que outrora gerava um preconceito, hoje é
quase pré-requisito para você conseguir mostrar sua arte – brinca Roberta, que
desenvolve um trabalho de mapping, projetando imagens em árvores, quase sempre
de temas amazônicos. “Nas primeiras vezes em que estive em São Paulo, as
pessoas se surpreendiam: ‘Olha, ela é do Norte e está trabalhando com
tecnologia.’ Temos uma tradição forte de artes visuais, sobretudo a fotografia
paraense, uma escola muito valorizada no mundo.”
Editora e fundadora da revista eletrônica de arte e cultura
contemporânea “Não-lugar”, Keyla lança uma provocação:
– Há grupos como o Qualquer Coletivo, gente como Orlando
Maneschy, uma grande diversidade. Podíamos ter um Terruá Pará de artes visuais.
Berna mira nas artes plásticas, mas vai além quando aponta
para a questão-chave para se pensar cultura no Pará: a dependência das
políticas públicas e das empresas (como a Vivo, que no projeto Conexão Vivo
apoia festivais, shows e gravação de CDs):
– Infelizmente uma cidade como Belém não tem mercado para
sustentar a arte – diz.
O grupo de carimbó
Uirapuru abriu a programação na noite de estreia
Mesmo a falta de recursos revela soluções que mostram a
força da cultura paraense.
O Teatro Cuíra é um exemplo claro: criado em 2006 para ser a
casa do grupo homônimo (há 30 anos em atividade), o espaço, que fica numa
região de prostituição da cidade, era um casarão centenário com as paredes
internas derrubadas para virar estacionamento.
A configuração acabou favorecendo o grupo, que montou sua
sala, com cadeiras compradas de um cinema fechado e arquibancadas e aparelhos
de ar-condicionado doados.
Assim, surgiu um palco a mais na cidade para outras
companhias e músicos, prêmios e patrocínios para projetos específicos – peças
do grupo que quase sempre trazem prostitutas da região no elenco.
– Quando chegamos, a primeira pessoa a meter a cabeça aqui
dentro e perguntar “o que vocês vão fazer aí?” foi uma prostituta. Vimos que
tínhamos que trazer as pessoas daqui para dentro do grupo. É uma forma de
interagir com a cidade, e teatro se faz assim – defende o dramaturgo e diretor
Edyr Augusto Proença, insatisfeito com os rumos da política cultural de Belém.
– O Terruá Pará reúne artistas ótimos, mas a realidade da
cultura paraense é essa aqui (olha em volta, mostrando as instalações simples
do teatro), não é a do festival.
Escritor com vários romances publicados, Proença vê surgir
na literatura uma exploração original dos cenários de Belém, longe da
folclorização amazônica e mais interessada na complexidade do cenário urbano de
uma cidade encravada na floresta:
– Exploro essa linguagem policial, cinematográfica, sempre
em histórias passadas em Belém. Jovens escritores como Marcelo Damaso (produtor
do Se Rasgum, ele tem o romance “Iracundo” pronto, à procura de editora) e
Cacho Ishak conversam comigo nesse sentido, falam a mesma língua.
Ishak vê as mesmas afinidades. A vista panorâmica da varanda
de seu apartamento parece reafirmar seu pensamento: prédios altíssimos acusam a
especulação imobiliária de um lado, enquanto a periferia pobre se espalha
rasteira do outro.
A orquestra de cellos foi uma das sensações do evento
Alguns artistas ressaltam a curiosidade e o desejo de se
“amostrar” do “cabôco” (uma espécie de caboclo com a especificidade de Belém)
como determinantes para o que acontece no Pará. Um traço que conversa com a
formação clássica, herança da fase áurea da borracha.
O resultado aparece em trabalhos como o erudito-pop da
Orquestra de Violoncelistas da Amazônia e cantoras líricas como a jovem Thaina
Souza, que, oriunda do tradicional Conservatório Carlos Gomes, acaba de ganhar
uma bolsa para estudar em Viena – há cantores líricos paraenses espalhados pela
Europa.
O audiovisual acompanha o momento, com nomes como Vladimir
Cunha, Jorane Castro, Roger Elarrat, Cássio Tavernard e Priscila Brasil.
Filha de família tradicional, com direito a aulas de francês
e piano na infância, Priscila chamou a atenção como diretora do clipe de
“Xirley”, de Gaby Amarantos, a cantora de origem pobre, “cabôca”, do bairro de
Jurunas, que abraçou a tecnologia.
O encontro das duas – hoje a primeira é empresária da
segunda – traz, de certa forma, as possibilidades oferecidas por essa cultura
paraense que agora se mostra para o Brasil.
Dos salões do conservatório às aparelhagens, todos estão sob
a mesma opressão da umidade e do calor, lembrada a todo tempo pelo brilho do
suor nos rostos – como se diz em Belém, todos breados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário