Pesquisar este blog

terça-feira, janeiro 23, 2018

Uma tragédia fellinianamente felina


Por Marcos de Vasconcellos

O Carlos Augusto Camargo foi visitar o Chaffic na sua casa de Petrópolis. Chaffic era professor de matemática na Faculdade, um sujeito moldado à antiga, arrogante, desdenhoso, debochava da nossa sagrada ignorância, superior, encastelado numa sub-cátedra. Não sei como o Camargo o tolerava.

A criançada da casa, delirante e galopante, veio mostrar ao Camargo o gatinho recém-chegado, um palmo, de felino ainda nos cueiros, torturado pelo carinho desesperador com que o cercavam sem interrupção. Ao gato chamou-se Pimpão.

– Aí – conta o ex-visitante – o Chaffic propôs uma partida de pingue-pongue. Eu sou fissurado no jogo e imediatamente aceitei o desafio. Nos primeiros quarenta minutos a partida estava equilibrada, mas na medida que fomos esquentando o jogo foi ficando violentíssimo, com cortadas mortais de parte a parte. Num dado momento, o Chaffic pegou a bola com absoluta perfeição e deu um tiro que bateu na quina da mesa. O projétil, possuído pelo demônio, tomou um efeito enlouquecido e eu, na tentativa de detê-los, dei um salto gigantesco para trás e caí com os dois pés numa coisa fofinha: exatamente o gato Pimpão.

– Foi apenas o começo do drama. Um veterinário que morava em frente foi chamado às pressas e quando viu o gato estrebuchante fez aquele não com a cabeça que corta qualquer esperança. O cara diz que o bicho tinha que ser sacrificado, mas infelizmente estava sem a injeção indicada para aquela hora de dor. A babá dos meninos, uma preta velha e fiel como uma cadela, associou-se aos meninos no ódio coletivo que se formava ao meu lado, enquanto eu meio com nojo, segurava os restos do Pimpão. Por fim, decidi afogá-lo, pois o Chaffic recusou-se me emprestar a escopeta. O miserável do gato levou quase uma hora para morrer.

E arrematou o drama:

– Eu ontem estava passando na rua 7 de Setembro, chegou um senhor seríssimo para mim e disse mordendo os dentes: assassino! Era um dos filhos do Chaffic...

A história do gato deve ser bem antiga.

Carlinhos Oliveira, um doido em forma de canção


Por Jason Tércio (*)

Lírico e indignado. Reflexivo e provocador. Por esses e outros motivos José Carlos (Carlinhos) Oliveira foi o cronista mais influente do Brasil durante 23 anos. Entre 1961 e 1984, quatro vezes por semana, a sua coluna no extinto “Jornal do Brasil” era leitura obrigatória. Quando morreu, 30 anos atrás, em 13 de abril de 1986, deixou um vácuo que ainda não foi preenchido.

“Surrealista por temperamento, anarquista por indisciplina de berço, boêmio por amor à vagabundagem, agregado à elite pensante por acaso”, era como se definia. Com personalidade complexa, incorporou diferentes papéis ao longo da vida: escritor maldito, criança abandonada, bon vivant mulherengo, intelectual perspicaz e independente. Mas para um de seus melhores amigos, César Thedim, ele era simplesmente “um doido em forma de canção”.

Apesar de ter sido um boêmio militante a vida toda, protagonista de porres e escândalos nos melhores botecos de Copacabana ao Leblon, seus temas iam muito além da fauna noturna. Em textos de alta voltagem literária, comentava todos os assuntos: religião, futebol, sexo, política, contracultura, drogas, boemia, moda, lazer, imprensa, carnaval, transformações urbanas, música popular, crime, neuroses, conflitos sociais, artes, televisão, ecologia. Sempre assumindo posições, expondo-se ao julgamento público, o que lhe rendeu bons debates e alguns desafetos.

Alternava amenidades inconsequentes com provocações e polêmicas, colocando o dedo na ferida da alma brasileira, sem perder a ternura. Para isso subverteu as convenções da crônica tradicional. Um dia era monólogo psicológico, outro dia era um esquete teatral ou fábula, diário, sátira, poema em prosa, pastiche, autoficção, estilo do qual foi precursor no Brasil. Em 1981 ele estendeu a autoficção da crônica para o romance “Um novo animal na floresta”, narrativa polifônica em que autor, narrador e protagonista se fundem num único sujeito.

Cronista vocacionado desde os 16 anos, aos 18, em 1952, já praticava o que só na década seguinte, nos Estados Unidos, seria denominado Novo Jornalismo, ou jornalismo literário. Como nas reportagens “O Café Vermelhinho até parece moça de boa família” (no livro “O homem na varanda do Antonio’s”) e “Mãos estendidas para o parlamento” (no livro “Máscaras e codinomes”).

Em 1953 já alertava sobre o problema do menor infrator: “Estamos criando uma geração de revoltados sociais”. Confessional por temperamento, transformou experiências, pensamentos e sentimentos pessoais em textos que transcenderam as circunstâncias imediatas.

Tratavam de violência, miséria social e moral, hipocrisia, injustiça, preconceitos, morte, intolerância, solidão, liberdade, amor, enfim, os labirintos e abismos da condição humana.

Por isso a maior parte de suas crônicas não envelheceu. Uma de suas frases se encaixa perfeitamente no atual momento brasileiro: “Alguma coisa está errada, alguma coisa está podre, e o fedor envenena a minha consciência”.

O conjunto de suas mais de 3 mil crônicas formaram um painel da sociedade brasileira nas efervescentes décadas de 1960 e 1970. Depois de ter organizado quatro volumes de crônicas dele (“O homem na varanda do Antonio’s”, “Máscaras e codinomes", “Flanando em Paris”, lançados pela Civilização Brasileira, e “O Rio é assim”, pela Agir), estou planejando mais três volumes, sobre os temas Humor, Mulher e Cultura, crônicas sobre música, cinema, teatro, imprensa, TV, artes plásticas e literatura nos anos 1960 e 70.

(*) Jason Tércio, jornalista e escritor, é autor da biografia de Carlinhos Oliveira, “Órfão da tempestade” (Objetiva)

segunda-feira, janeiro 22, 2018

Assédio e cantada


Por Felix Valois

​​Dar (ou receber) uma cantada já foi atividade trivial entre galãs de todos os gêneros. Falei no passado porque, nos tempos atuais, esse, digamos assim, esporte se transformou em algo da mais alta periculosidade. Assim como a caduquice foi rebatizada como mal de Alzheimer, a cantada se transmudou em assédio sexual e passou a integrar o índex dos politicamente corretos. Não há dia do calendário gregoriano em que a mídia deixe de estampar notícia de que alguém está às voltas com problemas nesse campo.

Nesta semana mesmo, foi a vez do Secretário de Cultura do município de São Paulo. Teve ele seus cinco minutos de celebridade por conta de uma viagem ao Canadá, na companhia de uma servidora do alto escalão de sua pasta. Os dois reconhecem que, por motivos de falhas na reserva, foram obrigados a compartilhar o mesmo quarto de hotel. Juram que em camas separadas e que, em nenhum momento, se dispuseram a brincar de papai e mamãe. Se isso é assédio, minha falecida avó deve ter tido dois pedais e um guidão. Seria uma bicicleta a velhinha.

​​Parto do princípio de que cantada e assédio não podem ser uma só e a mesma coisa, estabelecendo-se a confusão entre os termos apenas por conveniência de ocasião. Naquela, a aproximação mais ou menos sutil, com todas as nuances do que Machado de Assis chamava “o eterno diálogo de Adão e Eva”. No outro, a tônica seria a grosseria em si mesma, até com o uso, de todo em todo reprovável, de uma certa dose de coação, na hipótese de subordinação hierárquica.

O Trump mesmo, que tem “gesto e peito” de urso polar, já foi alvo de denúncias de comportamento assediante. Com ele especificamente fica complicada a distinção porque, gentil e educado como tem demonstrado ser, inclusive nas relações diplomáticas, dá para imaginar o teor de delicadeza da aproximação. Algo do tipo “dá logo que eu quero e é agora”.

​​Catherine Deneuve, “La Belle de Jour”, caiu na besteira de assinar um manifesto contra essa demonização da cantada. Foi levada ao calvário pelos patrulheiros de plantão. Tanto lhe infernizaram a vida e as das demais atrizes cossignatárias, que a bela foi obrigada a pedir desculpas públicas. Fraquejou. Afinal de contas, expressou apenas uma opinião e, até onde me é dado compreender, restringir esse direito é procedimento usual nas ditaduras, mas não colhe bem num sistema democrático. Ninguém deve se desculpar por ter feito aquilo que acha correto. Muito menos deve dar satisfações aos que, também exercendo um direito, pensam o contrário.

​​Do jeito que a coisa vai, uma simples piscadela vai acabar fonte de ingresias insuportáveis, podendo até gerar registro de BO nas delegacias da Maria da Penha. É uma pena. Essa intolerância tola está colocando em desuso o brocardo de que “quem canta seus males espanta”, da mesma forma como transforma em temeridade a recomendação de Martinho da Vila: “canta, canta, minha gente”. Cuidado. Não vá cantar no momento errado. E muito menos a pessoa errada. Sua cantoria pode virar amargo pranto.

​​Lembro-me de que nos longínquos tempos do início da minha advocacia, os colegas da esfera cível diziam, meio que a brincar, mas traduzindo uma realidade, que deveria integrar o elenco das obrigações profissionais o seguinte item: “é dever do advogado tentar comer a desquitanda”. Se era razoavelmente jovem e não ostentasse feiura acachapante, a cantada era inevitável. Hoje, tendo a desquitanda virado divorcianda, os coleguinhas estariam em palpos de aranha. Seria assédio no mais elevado grau.

​​Por tudo isso, não há precaução que se mostre suficiente em terreno tão movediço. Deliberei, assim, fornecer uma sugestão inteiramente gratuita aos cantadores de todos os tipos. Escolhida a pessoa de interesse, é conveniente ser o mais formal possível, a ela dirigindo uma petição que pode ser vazada nestes termos:

“Excelentíssima Senhora Dona Maria dos Anzóis. Pascácio Ruela, brasileiro, cantador profissional, domiciliado e residente nesta bela cidade de Manaus, comparece à cativante presença de Vossa Excelência para expor e requerer o seguinte: Não é de hoje que “seu olhar me fascina e seu falar domina”. Quando a vejo, com esse seu andar de santa, é-me impossível não pensar nas delícias que adviriam se Vossa Excelência permitisse que eu lhe fosse ao leito. Garanto-lhe que minhas intenções estão acima de qualquer suspeita. Sou seu admirador de carteirinha e outra coisa não espero da vida que não seja sua aquiescência. Havendo reciprocidade de sua parte, queira se dignar de me levar à felicidade suprema enviando resposta para a caixa postal de número 0000. Termos em que, pede e, ansioso, espera deferimento”.

Seguem-se data e assinatura. Feitas as adaptações de gênero, o modelo pode servir a todos os apaixonados.

Almanaque do Braga


Por Mauro Santayana

Fui apresentado ao Rubem Braga por Hermenegildo Chaves – o lendário Monzeca, de Belo Horizonte – quando começava a trabalhar como jornalista. Rubem procurava um parceiro em Minas, para colaborar na redação de um “Almanaque da Literatura Brasileira”. Meu trabalho, ele me disse, era simples: selecionar uns vinte escritores mineiros de todos os tempos, escolher pequeno trecho de cada um, resumir sua biografia e fazer breve ensaio crítico.

Trabalhei duro, com a ilusão de que iniciaria uma carreira promissora de escritor. Seis meses depois procurei o Rubem no Rio, com o texto debaixo do braço.

– O que é isso? – perguntou-me, na certa assustado com a perspectiva de que eu lhe lesse um romance.

– É o almanaque! – respondi.

– Do Capivarol? Ou da Saúde da Mulher?

– É o Almanaque da Literatura Brasileira, a parte de Minas – expliquei.

– Boa ideia essa que você teve...

– Mas foi você que pediu que eu fizesse a parte de Minas...

– Ah, foi? Eu devia estar bêbado, eu só tenho boas ideias quando estou de fogo. Mas como a ideia é boa, deixa isso aí. Só faltam os outros vinte e pouco estados...

Deixei. E nunca mais falamos no assunto.

Receita pra lavar palavra suja


Por Viviane Mosé

Mergulhar a palavra suja em água sanitária. Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia. Algumas palavras alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza. Por exemplo, a palavra vida. Existem outras, e a palavra amor é uma delas, que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente. São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.

Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada. Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. Agora nunca vi palavra tão suja como perda. Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua. O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade.

Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras de uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó. O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha. Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade. Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.

Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido. A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com a palavra durante alguns dias. Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos.

À noite, permita que se deite, não a seu lado, mas sobre seu corpo. Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade. Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa. Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.

Um depoimento sobre Érico


Por Mauro Santayana

“Ontem, na Casa Panamericana, almoço em companhia de numerosos sul-americanos, dos quais um muito inteligente e os outros menos. Verissimo, homem de uma grande modéstia, me falou de meus livros. Ele é jovem, de aparência agradável.

À minha direita, uma espécie de bebê com bigodes me pergunta com uma voz já irada por que eu não escrevo romances sociológicos. Esse senhor sustenta que os romances devem servir a alguma coisa, que não fazem falta obras de arte que não sirvam a nada e que há um ‘grande perigo em ver tantos escritores como Julien Green’. Eu lhe disse que não existe tal perigo, e que ele não é tão grande assim – e todos se puseram a rir”. (Julien Green, L’Oeil de L’Ouragan – Diário de 4 de agosto de 1944).

Julien Green não identifica o “bebê com bigodes” que lhe reclamava engajamento sociológico.

sexta-feira, janeiro 19, 2018

Shane: os brutos também amam


Por Marcos de Vasconcellos

Paulo Perdigão, jornalista, autor de um alentado tratado sobre o Ser e o Nada, tocador de prato no Teatro Municipal, dono de um desmaio frente a uma Miss Brasil, rompeu com uma namorada quando lhe flagrou um pé, digamos, pouco asseado, apaixonado por cães, crítico de cinema, escolhedor oficial de filmes para a TV Globo e, além de tudo, possuidor de duas irremovíveis fixações: 16 de julho de 1950, quando perdemos a Copa para o Uruguai e Shane (“Os Brutos Também Amam”) famoso western  de George Stevens.

A paixão que Perdigão nutre por Shane é tamanha, que escreveu um ensaio sobre a fita mais grosso que o próprio roteiro original. Não, minto. A paixão é maior. Em uma entrevista concedida ao programa Globo Repórter, em 1989, ele admitiu ter visto 82 vezes a película de Stevens, sendo a primeira vez em 8 de abril de 1957, no auditório do MEC do Rio de Janeiro, em sessão promovida pelo extinto CCC (Centro de Cultura Cinematográfica).

Em 1969, ele estava na Califórnia e antes de partir para a costa leste, resolveu pôr em prática um velho plano: passar por Jackson Hole, estado de Wyoming, com a intenção – pasme-se – de visitar as locações onde rodaram o filme. Para sua sorte, soube que um fazendeiro de Wyoming, amigo de amigos, era casado com uma brasileira, portanto ponte para o sonho.

Foi recebido pelo casal com a maior alegria, hospedaram-no e – suprema glória – levaram-se às tais locações, filmadas em super-8 com unção religiosa pelo desvairado fã. E não ficou nisso. Recolheu num vidro a terra sagrada por onde andaram, cavalgaram e dispararam Allan Ladd, Van Heflin, Brandon Wilde, Jack Palance e o alvo do maior tiro que vi e ouvi num caubói, o Stone Wall (“Paredão”) Elicha Cook. Fora a terra, ele também apanhou um pedaço de pau do barracão de Van Heflin.

Quando chegou de volta ao Rio, o inspetor da Alfândega estranhou aquele pó.

Desculpa do Perdigão: sou geólogo.

Faz seca mas chove chato


Por Manuel Bione, de Recife (PE)

Como diria o Barão de Itararé, a terra é redonda, mas está ficando chata. Há certo tempo, eu publiquei no mui lido Papa-Figo uma pequena lista com os tipos mais comuns de chatos que tenho encontrado vida afora. Aqui vão mais alguns, afinal a lista, se não infinita, chega perto ali do ponto em que duas retas paralelas se encontram.

O BARCHATO – É boçal ao extremo. Humilha o garçom, devolve prato, só toma uísque em copo baixo com duas pedras de gelo. Exige o “choro”. Se o prato demora ele reclama e se vem rápido demais, ele reclama também, pois ainda estava degustando a entrada. E quando ele quer dar uma de entendido pra cima de você? Se você pede uma cachaça com limão, ele determina que você está estragando a pinga. Se você bota água de coco no uísque, ele vaticina a manjada frase: “O homem passou dois mil anos para conseguir tirar o açúcar do uísque e em dois minutos você estraga tudo!”.

O MANJADO ENOCHATO – Quando pede vinho, é outra tragédia previsível. Depois de verificar atentamente o rótulo, cheirar a rolha, balançar a taça, bochechar e fazer um bocado de mesura, determina que o vinho está avinagrado e devolve. Uma vez, li uma entrevista com o dono do Fasano, considerado o melhor restaurante do Brasil. Perguntado qual o vinho que ele tomava. Ele respondeu que eram os devolvidos pelos enochatos que frequentavam seu estabelecimento.

O INTELECHATO – Ele sabe tudo. Não consegue escutar uma frase inteira, que discorda logo. De Einstein a Levi-Strauss, de Freud a Spinoza – até discordando desses pensadores. Metido a traduzir “do original”, inclusive cortando versos e frases dos autores, “que estavam sobrando”. Na realidade, pega traduções já existentes e altera algumas palavras, pois de língua estrangeira só sabe mesmo “The book is on the table”.

CINECHATO – Não te deixa assistir teu filme em paz. No cinema fala ao celular. Conversa com a patroa sobre coisas que não têm nada a ver com o que está passando na tela. Em casa, te cutuca ao “adivinhar” o que vai acontecer na cena seguinte, sempre acompanhado com a expressão “quer apostar?”. E se já assistiu ao filme, não se controla até revelar que o assassino foi o mordomo...

O ENGRACHATO – Ele vai fazer piadas e trocadilhos infames a todo custo para todos ouvirem – normalmente sem graça. Quer ser o centro das atenções e para isso recorre ao pior meio que poderia. Ninguém ri de seus gracejos. Mas não tem problema: ele mesmo ri e está feliz demais consigo mesmo para notar os olhares recriminadores a sua volta.

O ECOCHATO – Junto aos politicamente corretos é o tipo que mais se expande. Sabe tudo de efeito estufa, degelo das cordilheiras, de espécies em extinção. Tudo se torna uma questão concernente à natureza e como salvá-la do ser humano, esse predador degenerado. Certa feita, contei na mesa do Barbosa, que há algum tempo ganhei um tatu congelado de um paciente e preparei e comi com os amigos. Uma colega que estava na mesa me deu um esculacho da goitana e até hoje não fala mais comigo.

Que tiro foi esse que tá um arraso...


Por Liduina Mendes, de Fortaleza (CE)

As gravadoras investem, os cantores se vestem e se revestem de estratégias para emplacar o Fodástico Hit do Carnaval – mas o público ainda define o jogo, seja pelo besteirol, leseira, protesto ou tédio, e a onda se agiganta, se torna um viral e as celebridades assumem o leme, daí já foi. Nem vou entrar ainda no mérito da polêmica de incentivo ao crime – fica para o segundo bloco. Porque eu já usei essa expressão ”que tiro é esse...” em vários posts e textos – vide página do Bazar Garimpo quem quiser conferir – como elogio, lacre, arrasou, mitou, divou, antes de se tornar sucesso da nova “filósofa contemporânea” Jojo Todynho... e nunca como apologia à violência. Expressão de estilo já usada fartamente pra quem acompanha no Instagran o Hugo Gloss, Alfinetei e outros perfis de notícias de “espuma glam”.

Pois bem, quem trabalha com mídias sociais – no caso eu também – sabe que há marolas e grandes ondas, adorei aquela do “Logo Eu”... “Quis me dar boa noite, Logo Eu, William Bonner”, “Pensou que iria me enganar, Logo Eu, pode de sorvete com feijão dentro”, e seguiu o baile.

Jojo Todynho, funkeira de comunidade e nenhum padrão de beleza convencional – teve peito, e bota peito nisso, dez litros e dá pra chutar o balde que tem mais – e o mérito de ser ela mesma. Gravou um clip barato e com amigos, tosco e explodiu: mais de 17 milhões de cliques no Youtube. Caiu na boca dos famosos – Anitta, Nego do Borel, Giovanna Ewbank, filhos do Luciano Hulk e outros já decoraram e cantaram a faixa por aí.

Virou meme – famosos e anônimos compartilham vídeos em que se jogam no chão após a frase-título da música. Neymar colocou como frase de um post, e todos só esperam o momento em que ele comemore um gol com a dita coreografia – a exemplo do “Ai se eu te pego” que ganhou mundo. E o principal: falaram mal. Criou polêmica.

Eu levo como brincadeira divertida, como uma gíria que manifesta surpresa positiva sobre algo que viu. A foto nova do crush? Que tiro! A roupa escolhida para a festa? Que tiro!

Diferente do funk “Só surubinha de leve”, do MC Diguinho, que faz uma apologia ao estupro e que dispensa comentários – banido dos canais da internet. “Que tiro foi esse?”, a exemplo do hit “Metralhadora”, da Banda Vingadora – alguém lembra ainda? –, que balançou o carnaval de 2016, também vai se esvair com as cinzas do carnaval, é descartável.

Resta Jojo Todynho aproveitar o lacre de passar em poucas horas de mil seguidores, para 1,400 mil seguidores. Se alguém duvida da força da internet – cega, torta, leiga ou emburrecida – se liga, porque a internet para políticos, pode não dar um voto, mas tira todos! Derruba ditaduras, tem a força de um tribunal relâmpago: condena e absolve em horas. Encontra pessoas desaparecidas, denuncia maus policiais e ajuda na captura de bandidos e muito mais.

É uma força avassaladora, temida por muitos, amada e odiada por quase todos, cultuada por mais da metade do planeta. E como toda força, tem facetas, uma delas no momento reflete o funk como hit do momento – engole o choro – eu também lamento. Mas dou de ombros e deixo a onda chegar e ir embora, como um tiro, exercitando meu tirocínio para princípios mais elevados, sem esquecer do bom humor, da leveza de viver com as diferenças de coisas que não concordo, mas que não me impede de ir até a varanda ver a banda passar na rua.

E saber por antecipação que nos trios elétricos desse ano, vai ter um mar de gente caindo coreograficamente no chão ao som do hit “Que tiro é esse, viado?”, mais da metade de um Brasil no chão, teleguiado pela Jojo Todynho, que tá mandando melhor em seu reinado, que o atual presidente, pretensos candidatos e afins, só curte o momento, não tem culpa se há espaço e novos compositores não alçaram vôo. E espero que depois dos tiros, surjam nomes legítimos para reinados administrativos que chamamos de República. Triste do povo que precisa de heróis. Quero apenas novos cantores e compositores e um candidato preparado. Aguardo agora a onda pós Carnaval.

quinta-feira, janeiro 18, 2018

O cão chupando manga e a sobremesa divina


Por Marcos de Vasconcellos

Carlos Augusto Camargo, arquiteto, foi visitar um amigo e, diante da insistência da mãe, ficou para jantar, mesmo contrariado. Quem não conhece mãe de amigo, que é obcecada para agradar? Mas não é comum, por cortesia. É derramamento de agrado, catadupa de atenções, cachoeiras de Jocastas. No ensarilhar de talheres:

– Foi bem servido. Carlos Augusto?

– Fui, sim senhora. Um esplêndido jantar.

– Tem certeza que não quer mais um peitinho de frango?

– Não senhora. Muitíssimo obrigado. Estou repleto.

– Uma saladinha?

– Não, D. Zilu. Realmente comi como um abade. Não me cabe uma isca.

– Não me faças cerimônia, hein! A casa é sua como se fosse de um filho. Aqui é assim. Tudo é de todos. Vamos, coma mais um franguinho! Você está muito magrinho!

O filho tenta acudi-lo:

– Mamãe. O Camargo não quer mesmo.

A mãe atropeladora, amuada, manda tirar a mesa. A contragosto naturalmente; gostaria que o Camargo lhe lambesse as migalhas.

Sobremesas, preparem-se. Mãe de amigo, as gordotas mais afoitas babam-se por oferecer doces. D. Zilu, então, para exibir-se ao visitante, ativou todos os doces da geladeira, mesmo os da semana passada. O pudim de pão foi remontado às pressas, ganhou calda nova e carapuça de ameixa. E, presidindo a mesa (o destino bate à sua porta): o doce de mamão verde!

Interrompo esta singular narrativa para uma informação necessária. Conheço o Camargo há muitos anos. Fizemos o vestibular juntos, cursamos a faculdade juntos, partilhamos muito tempo o mesmo escritório. É uma pessoa extremamente afável, decerto, pelo que se depreende do diálogo acima reproduzido, jamais ergue a voz, anda invariavelmente de terno, é educadíssimo. Para se ter uma ideia, é um dos raros brasileiros que não usam secretária para chamados telefônicos e marca visita com antecedência.

Duas coisas, porém, transtornam o Camargo. Duas coisas que ele abomina com todas as forças dos nervos, com todo o ardor do coração: jogador que perde pênalti – e exatamente! – doce de mamão verde.

Ninguém sabe porquê, mas suspeita-se de um trauma infantil, como a história do primeiro porre: se foi de gin, diz-se, nunca mais pronuncia-se essa palavra maldita. Tudo, menos doce de mamão verde.

Entra de volta D. Zilu, a boca encharcada de prazer insopitável:

– Um docinho, Carlos Augusto?

– D. Zilu, agradeço muito, mas não costumo comer sobremesa. Vou esperar pelo cafezinho.

Até aquela hora o Camargo não tinha reparado no cardápio rico de doces, à sua frente, entretido que estava, bem à vontade, falando sobre o fim dramático de uma aventura na serra: a morte trágica do gato Pimpão.

D. Zilu:

– Um pedacinho de pudim de coco? De pão?

– Não senhora. Obrigado, D. Zilu. Mas aí, o Chaffic propôs uma partida de pingue-pongue. Eu sou fissu...

– Vou botar um pouquinho pra você provar.

– D. Zilu, eu realmente não como sobremesa. Só vou tomar o cafezinho.

– Ora, Carlos Augusto, não seja enjoado, pára como essa cerimônia. Pelo menos um pouquinho de doce de mamão verde. Fiz especialmente para você. Vá.

Camargo fingiu que não ouviu para não ter que acreditar.

– Mas aí, começou a partida. Eu e o Chaffic. Em volta, a criançada brincado com o gato, o Pimpão. O Chaffic joga muito bem e...

– Olha, Carlos Augusto, botei um pouquinho para você.

  Camargo ainda tentou apelar, justiça lhe seja feita.

– D. Zilu! Sou diabético!

D. Zilu trila o apito:

– Ah, ah, ah, ah, ah, essa é boa! Você é uma bola! Ah, ah, ah, Carlos Augusto! Vá! Experimente só um bocadinho! Não me faça desfeita.

Na frente do Camargo o desgraçado do prato de doce de mamão verde, igual à abominável iguaria servida em sua casa, provavelmente com aquele mamão vindo do sítio de Correas, trazido na mala do carro, colhido fora de tempo, disentérico.

Confusas lembranças de infância somaram-se à matraca que à sua frente ria e empurrava-lhe, goela e moral abaixo, aquela abominação.

Camargo levantou-se, esgazeado, empunhou a colher, segurou o prato com a pasta verde translúcida e deu a primeira colherada. O projétil pegou o pescoço do pato sangrando, natureza morta de Oswaldo Teixeira. A segunda, melou os cristais do lustre cintilante comprado com sacrifício em S. Simon. A terceira, compôs estalactites na alvura do teto recém- pintado e a quarta inutilizou o lorgnon que madame assestara para, horrorizada, acompanhar a melação do jogo, o jogador desvairado.

Esgotada a munição do pratinho, Camargo atacou o paiol, a terrina com o resto do TNT verde. Sobraça o pirex e, com a catapulta de prata na outra mão, vai saindo aos berros, varejando bocados de doce de mamão verde em tudo que encontrava pelo caminho: no Lacoonte de bronze, no espelho de cristal bisotado, na cara de Roberto Carlos, no Graff-Zeppelin, no dó, no dó sustenido, no ré, no fá, no Lello Universal, na Santa Ceia...

– Eu detesto doce de mamão verde! Eu odeio doce de mamão verde! A senhora pega seu doce de mamão verde e enfia no cu!

...colherada no Juscelino dedicado, no Genaro, no Kirmã e foi saindo porta afora. Na rua ainda gritava:

– Velha maluca! Olha aqui o doce de mamão verde!

E arrepanhava as partes, sacudindo-as.

Pra encurtar: secou a terrina, varejou tudo na calçada, deixando atrás de si um rastro verde e inesquecível que vinha desde o campo da batalha principal – onde derrotou as travessas de D. Zilu – ultrapassava a soleira e parava no coração aliviado, na infância restada e nos intestinos vingados.

Heróis de antologia: os mágicos magiares


Por Sílvio Lancellotti

Em 1949, Gustav Sebes, ministro de Esportes da Hungria, decidiu construir um time de futebol invencível. Depois de viajar a sua pátria, por 12 meses, na procura de jovens talentos, Sebes congregou todos os seus descobertos num único clube, o Honved de Budapeste. Deu-lhes postos militares, moradia, salários generosos, farta alimentação, assistência médica, apoio psicológico. Em 1950, o Honved conquistou o título nacional.

Em 1952, desenhada à sua imagem e à sua semelhança, a seleção da Hungria levou o ouro da Olímpiada de Helsinque, na Finlândia. Em 1953, numa excursão pela Europa, a Hungria ignorou a pompa do templo sagrado de Wembley e dilacerou o time da Inglaterra: 6 a 3. Numa revanche, em Budapeste, em 1954, reprisou a humilhação: 7 a 1. Os nomes dos craques magiares, como Ferenc Puskas, Sandor Kocsis e Zoltan Czibor, logo viraram sinônimo da categoria – numa época sem muitas estrelas. Naqueles idos, o elenco da Hungria era o único que se aquecia com antecedência antes das pelejas.

Mesmo sem nenhuma conexão com o chamado soccer, o governo dos EUA determinou que a sua incipiente CIA negociasse a defecção dos magiares. A Federação da Hungria, então, tinha um dirigente de dupla face, Janos Kantos, ou Janos Molgar, um provável espião. Caberia a Kantos/Molgar convencer Puskas & Cia a escapulirem para o Ocidente. Desconfiados, Puskas & Cia optaram por aguardar uma chance melhor. Além disso, desejavam conquistar a Copa da Suíça. Perderam a decisão por 3 a 2, fisicamente dilapidados pelo campo pesadíssimo e pela violência da Alemanha.

Dois anos depois, quando os tanques da URSS invadiram a Hungria, Puskas & Cia, em excursão com o Honved, ludibriaram a segurança da sua delegação e se refugiaram na Espanha. Puskas só retornaria à sua pátria em 1987. Kocsis e Czibor soçobraram em destinos mais cruéis. Artilheiro da Copa da Suíça, 11 tentos em cinco prélios, Kocsis se suicidou. E Czibor morreu louco. Ah, nunca mais a Hungria reuniria um elenco tão precioso...

A hospitalidade carioca na terra do acarajé


Por Marcos de Vasconcellos

Por força de uma transferência de cargo, um casal carioca mudou-se para Salvador, carregando filharada e teréns. Depois do incêndio da mudança, ainda no rescaldo, mal tinham assentado o rabo na casa nova, bate-lhes à porta um companheiro de escritório, de passagem pela Bahia.

Era um sujeito corpulento e vinha resfolegante, suado, reclamando do calor desgraçado. Estava de avião marcado para dali a três horas, a visita era rápida, entregar uns papéis mandados do Rio e algumas explicações. Entrou, abancou-se. Dadas as instruções, tomado o café e o copo d’água, meia hora depois, levantou-se para ir embora.

Os donos da casa encresparam:

– Mas ir esperar duas horas pelo avião naquele calor insuportável do aeroporto de Salvador? Não faça isso não. Fiquei aqui em casa mais um pouco, é mais fresco, mais agradável. Você devia é tomar um banho. Com este maldito calor, vai se sentir bem melhor.

Tanto insistiram que o visitante, agradecido, aceitou o convite e alegremente foi para o banho restaurador.

Quando faltavam quarenta minutos para a viagem, o casal resolveu chamar o cidadão que, com certeza, dormira no banheiro pois o ocupava há mais de uma hora.

Não houve meios de acordá-lo, por mais que esmurrassem a porta, por mais que gritassem. Sem outra alternativa, o anfitrião involuntário abriu a porta do banheiro e, de fato, o cavalheiro estava dormindo na banheira: o sono eterno. Qual Marat esfaqueado pelo coração, o defunto jazia com pose de escândalo. Aí, começou o inferno.

Polícia civil, investigadores, delegados, legistas, polícia técnica, peritos, repórteres, a privacidade do lar conspurcada por um cadáver e uma multidão de curiosos. A boataria, tão ao gosto baiano, fervilhou no prédio, desceu à portaria, saiu para a rua, invadiu o quarteirão, a cidade, quase o país. Houve até um vizinho meio surdo que garantiu ter ouvido tiros.

Quando conseguiram serenar as situações policiais, restaram o casal e o cadáver a ser despachado para o Rio, encargo que coube ao feliz hospedeiro do maldito cardíaco.

Depois de dias de peregrinação, sem conseguir localizar nenhum parente do falecido ou sequer um amigo e aconselhados por um servente do Instituto Médico Legal da terra do acarajé, experimentando no métier, despacharam o morto num engradado de laranjas. Destinatário: o patrão. Remetente: o Mercado Modelo.        

A bunda mais bonita da cidade


A indiana Sumeet Sahni, considerada a dona da bunda mais bonita do planeta

Por Samy Wursman

Os dois tapinhas que o Dr. Freitas lhe deu no bumbum, assim que nasceu, fizeram Lucinha chorar pela primeira vez. Doze anos depois, o bumbum já era bunda, e o Dr. Freitas a faria chorar novamente, quando cedeu a um ímpeto desenfreado de deslizar suas mãos pelas nádegas da menina, enquanto ela dormia. Por este tempo, Lucinha já sabia a diferença entre um carinho afetuoso, uma apalpada clínica e um sarro. Já havia lido O Médico e o Monstro, e encarou o gesto do Dr. Freitas com repugnância.

E a bunda crescia... Por debaixo das calças cada vez mais apertadas, um gigante adormecido ia se insuflando sem ser notado. Enquanto todos dormiam, na mansidão da noite, células adiposas e epidérmicas se agitavam freneticamente, dando relevo, volume, textura e cor ao traseiro que estaria sempre à frente, conduzindo por onde passasse as outras partes do corpo, como um comboio que segue o líder para não descarrilar.

Foi depois de umas palmadas do severo pai, por conta de alguma nota baixa na escola, que ela se revelou ao mundo em todo o seu esplendor. No terceiro tapa desferido, seu Moacir mirou mais fixamente a bunda da filha, e teve a sensação de que estava cometendo um pecado. Lembrou-se de Carla Perez, Tiazinha, Feiticeira... “Esta bunda vai ser patrimônio nacional, tombado. Como eu ouso tocar nela?”, ele pensou. “Se ontem eles comiam nossas bananas, hoje eles querem comer nossas bundas”.

Seu Moacir encheu-se de sonhos sobre o futuro da filha. Tirou-a da escola, matriculou-a em aulas de dança de “axé music”, em academias de lambaeróbica, em cursos de canto, e fazia arguição oral para checar se ela sabia as letras de todas as músicas de pagode. Como explicar para o leitor a perfeição daquela bunda? Era mais que o contorno. Era mais que a maciez e o colorido. Era mais que a rigidez e firmeza. Como uma obra de arte, a bunda de Lucinha podia ser apreendida pelos sentidos, mas não pela razão.

Apesar de provocar os homens usando shortinhos justos, biquínis encravados ou saias curtas que se suspendiam com um mero suspiro masculino, Lucinha jamais deixava homem algum tocar em sua bunda. “Esta bunda é uma dádiva do Senhor, sua criação sublime. Seria uma heresia alguém tocá-la”, dizia o pai zeloso. O Dr. Freitas ainda tinha o consolo de poder aplicar-lhe injeções quando ela estava gripada, mas era só.

Foi-se a virgindade e a bunda permanecia intacta. Podiam beijá-la na boca, acariciar-lhe os seios, possuí-la no maior fervor, mas que não encostassem um dedo na região sacra! E todos respeitavam a restrição imposta. Lucinha resolveu que também os objetos não poderiam mais tocar em sua bunda. Nenhuma cadeira. Nenhuma roupa. Nenhuma toalha. Só a chuva, o vento e os raios do Sol é que teriam o privilégio de estabelecer contato. Lucinha chegou a usar repelente, para afugentar os mosquitos mais excitados.

O sucesso chegou quando Lucinha foi convidada a rebolar num grupo de pagode e a posar em revistas masculinas. Ficou rica e famosa. Elegeu-se deputada, com o discurso de que toda mulher brasileira deveria ter acesso a uma alimentação básica que lhes desse o direito de ter uma bunda saudável e em forma.

Em uma de suas viagens pela África, foi coroada rainha de uma tribo local. Lá, então, comeram a bunda de Lucinha! Foi um grupo de canibais famintos. Que, posteriormente, se tornaram vegetarianos, para manterem eternamente o sabor daquela bunda em suas bocas...

A origem das milagrosas garrafadas nordestinas


Por Marcos de Vasconcellos

Essa história me foi contada pelo senador Ruy Palmeira (PFL-AL). Havia no interior de Pernambuco um conhecido boticário que juntava às funções de aviador de receitas, as de médico, cirurgião, conselheiro técnico e matrimonial. Tal prática é costumeira no Nordeste sobretudo nos municípios mais carentes, ou seja, todos.

Chegou na farmácia, carregado numa padiola improvisada, um cidadão que tinha levado uma carga de chumbo nos peitos e carga das mais competentes: cartucho 12, caroço 3.

O peito do infeliz era uma pasta de carne, sangue, pano e chumbo, beirando o desengano, mas o factótum mandou que o levassem para os fundos da botica. Lá, esvaziou um cartucho do mesmo calibre que esbagaçou o injuriado e laboriosamente o foi reenchendo com os grãos retirados da ferida. Horas depois, o cartucho cheio até a boca, deu por finda a catação.

O ferido gemeu cinco dias, afogueou-se em febre e delírio mais oito, deu por tenência de si no nono, convalesceu, sarou. A cicatriz restante não fazia jus ao estrago, tão bom foi o trabalho de restauração do boticário. O homem foi-se embora como novo para voltar uma semana depois com queixa:

– Ainda tem chumbo no ferimento, dotô...

– Não tem.

– Tem.

O doutor apalpou o peito do ressuscitado por desencargo de consciência. De fato, não tinha chumbo nenhum, mas o homem queria um remedinho. O dono da casa encheu um vidro médio com água destilada, coloriu com um pouco de azul-de-metileno, macerou erva-de-santa-maria e misturou mode ficar com gosto ruim, mode dar fé na cura. Recomendou: uma colher de manhã e uma de tarde, quando o sol se for. Até acabar o vidro. Nome do “remédio” escrito à mão na etiqueta: Chumbol.

Três meses depois, o doutor não tinha mãos a medir, tantas as encomendas do milagroso Chumbol. Em terra de muito tiroteio, a poção mágica fez extraordinária sucesso e logo foram acrescentados parentes na família: Facol, Porretol, Peixerol.

Mais tarde, contou Ruy Palmeira, o boticário, já riquíssimo, vendeu tudo e mudou-se para o Recife.

É como diz o Mauritônio Meira: o mundo se acaba e o Nordeste não se rende.

quarta-feira, janeiro 17, 2018

Quantos nomes de Bandas Nacionais vocês conseguem identificar nesta cena?


Revista FLASHBACK nº 10 - janeiro de 2006

Por Marcivaldo Lira

Em janeiro de 2006, comprei a edição nº 10 da revista Flashback que, como o nome sugere, relembrava vários programas, filmes, desenhos, bandas e eventos já antigos na época, iniciando a onda de Nostalgia que vem crescendo cada vez mais.

Pois bem, entre muitas matérias, uma página dupla me chamou a atenção por mostrar uma grande cena com diversos elementos estranhos e com a seguinte proposta: Cada grupo de figuras representa uma banda nacional. Você consegue identificar todas?

Lógico que passei um bom tempo verificando e consegui descobrir a maioria, porém algumas continuaram muito estranhas para mim. A resposta poderia ser vista no site ou na edição seguinte.

O problema é que essa foi a última edição da Flashback, e eu não possuía acesso à internet na época. Resultado: ainda não solucionei toda a imagem.




CLIQUE NA IMAGEM PARA AMPLIAR

Por isso que, ao reencontrar recentemente esse meu exemplar, gostaria de compartilhar esta brincadeira. Quantos vocês identificaram?

NOTA DO EDITOR DO MOCÓ:

Por enquanto, já consegui identificar as seguintes bandas:


Catedral. Júpiter Maçã. Legião Urbana. Vulcano. Hanói Hanói. Barão Vermelho. 14 Bis. Angra. Nenhum de Nós. Blitz. Cachorro Grande. O Rappa. Lobão e seu Ronaldos. João Penca e os Miquinhos Amestrados. Cólera. Velhas Virgens. Jota Quest. Los Hermanos. Patrulha do Espaço. Capital Inicial. Skank. Pato Fu. Camisa de Vênus. Ratos de Porão. Placa Luminosa. Os Replicantes. Os Mutantes. Planta e Raiz. Detonautas. TNT. Roupa Nova. Engenheiros do Hawai. Móveis Coloniais de Acaju. Picassos Falsos. Ira. Made in Brasil. Os Titãs. Língua de Trapo. Metrô. A Cor do Som. Acústicos & Valvulados. Sempre Livre. Nação Zumbi. Garotos Podres. Kid Abelha e as Abóboras Selvagens. Biquíni Cavadão. Cidade Negra. Tianastácia. Grafite. Rádio Táxi. Dominó. Polegar. Magazine. Mukeka di Rato. Joelho de Porco. Lulu Santos. Inimigos do Rei. Ultraje a Rigor. Lixo de Luxo. Paralamas de Sucesso. Cidadão Instigado.

terça-feira, janeiro 16, 2018

A História do Paradise Garage


Quatro DJs que viveram os tempos áureos do mais emblemático clube de Nova York contam por que uma noite por lá era considerada uma experiência espiritual

Por Adam Bychawski

“Missa de Sábado” era como as pessoas chamavam os sets do DJ Larry Levan no clube mais lendário de Nova York, o Paradise Garage. “Da cabine, Larry pregava através da música dele exatamente como um padre ou pastor faz do púlpito”, diz o DJ David DePino, amigo próximo de Levan. Aliás, Levan fez seu sermão todo santo fim de semana da abertura do clube, em 1977 (quando ainda estava em construção), até o dia em que ele fechou as portas para sempre, no verão de 1987.

Localizado, como o nome indica, em uma garagem na 84 King Street, em Manhattan, o Garage foi um dos poucos clubes a ser construído para um DJ específico. O local em si não era particularmente digno de nota, mas o que faltava em decoração era compensado pelo seu reverenciado sistema de som e apaixonados membros.

A lenda do Garage é interligada com a de Levan, que era o DJ residente no sentido mais literal: a certa altura, ele chegou mesmo a morar no clube. Ele tratava o Garage com a reverência concedida a um lugar de culto, reposicionando o sistema de som durante a noite, parando o seu set às duas da manhã para polir os globos espelhados e até mesmo se certificando de que as lixeiras tivessem sido cuidadosamente limpas. Tudo isso parece impensável para um DJ hoje, mas, na época, o Garage era mais do que um clube – era a visão de Levan do paraíso.

Para a congregação do Garage, a política de acesso restrito a sócios oferecia uma sensação de santuário e propriedade. Era um dos poucos clubes de Nova York que os gays e, predominantemente, os afro-americanos e latinos podiam verdadeiramente chamar de seu. “O Garage era um lugar para as pessoas que não eram aceitas na sociedade, um lugar para elas serem livres, serem elas mesmas”, diz Victor Rosado, que trabalhou no clube.


A ferveção na pista em 1979

Mesmo depois da Rebelião de Stonewall, a violência homofóbica nas ruas e a repressão policial continuavam implacáveis. “Levou um tempo para conquistarmos a confiança da comunidade gay”, diz DePino. Eventualmente, as noites gay de sexta decolaram junto com os sábados, já populares, atraindo um público mais diversificado.

Rosado, que deu continuidade ao legado do Garage através da sua própria carreira como DJ, foi um dos poucos seletos para quem Levan deu a oportunidade de tocar no clube. “Foi uma grande surpresa para mim, era meu aniversário. Já tínhamos falado sobre música, mas eu definitivamente não esperava que o Larry fosse me pedir para tocar daquele jeito, do nada”, ele diz.

Levan se divertia pregando peças tanto nos seus amigos quanto no público, fosse tocando a mesma música várias vezes seguidas, durante uma hora inteira, ou bombardeando a pista com uma explosão súbita de graves. Mas a técnica que era a sua marca, era criar uma narrativa a partir dos sentimentos e letras das faixas que tocava, descrevendo cada uma delas como uma nova frase ou parágrafo das histórias que tentava contar ao longo dos seus sets de 12 horas.

Num domingo no final de novembro, Rosado, junto com DePino, Danny Krivit e Joey Llanos – todos os quatro ex-DJs do clube – chegam ao Ministry of Sound, em Londres, para um reencontro especial que buscava arrecadar dinheiro para duas instituições de caridade de combate ao HIV: o Gay Men's Health Crisis (GMHC), de Nova York, e o Terrence Higgins Trust, do Reino Unido. Então pedimos a Rosado, DePino, Krivit e também ao Justin Berkmann, do Ministry – que se inspirou nas suas experiências no Garage para montar o seu próprio clube – que nos falassem das suas memórias do Garage.


A fila para entrar no paraíso

ENTRANDO

Victor Rosado: A primeira vez que fui lá, esperei horas na rua na esperança de que alguém fosse me perguntar se eu queria entrar. Então conheci este cara, conversamos, acho que ele meio que gostou de mim, perguntou se eu queria entrar, e isso foi o começo de tudo.

Justin Berkmann: A primeira vez que fui lá era uma sexta, que eu não sabia que era a noite hétero. Era o único cara branco no lugar, estava levando esbarrões e solavancos e não entendia o porquê de toda aquela hostilidade. Eu já estava de saída quando um garoto apareceu e disse: Você não devia ter vindo hoje à noite, mas fique à vontade para voltar amanhã.

Rosado: Eu meio que passei por um interrogatório na minha primeira vez no clube, mas eles sossegaram depois de um tempo. Acho que eles só encrencam se nunca te viram antes.

Berkmann: Depois de três tentativas frustradas, finalmente consegui entrar numa noite de sábado [inicialmente, era uma noite exclusivamente gay]. Estava com o meu amigo Jimmy de Los Angeles. Ele acampou de um jeito escandaloso na porta. Não acho que eles tenham caído nessa, mas provavelmente pensaram: Se eles estão dispostos a ir tão longe, então devem querer mesmo entrar. Começamos a ir lá toda semana e, quando vimos, já tínhamos nossos cartões de sócio.


A pista lotada em 1981

O LUGAR

Danny Krivit: Era dentro de uma garagem de caminhões de dois andares. Você entrava subindo esta rampa iluminada por luzes coloridas dos dois lados, com um grande letreiro de neon com o logotipo do Paradise Garage em cima.

David DePino: Não era glamuroso, foi construído pensando primeiramente e acima de tudo no som e no conforto absoluto dos membros. Tinha dois lounges onde você podia relaxar e um cinema. Tinha até um piso de madeira com amortecimento para que os seus pés não ficassem cansados, porque queríamos que você ficasse até o fim.

Berkmann: Não tinha bebida ou bartenders, só um self-service com vasilhas de ponche. Também tinha um cinema com 80 lugares, e você podia assistir a filmes que estavam em cartaz em outros lugares na época. Não tenho ideia de como eles conseguiram isso. Me lembro de assistir a Três Amigos! completamente chapado, acho que nunca ri tanto na vida. É um bom filme, mas parecia ainda mais engraçado naquela noite.


Público mix: hétero, gay, negros, amarelos, brancos e latinos

O SOM

DePino: É o melhor som que ouvi até hoje. As pessoas seguidamente falam sobre o The Loft, que ele tinha o melhor sistema de som, mas o The Loft tinha um som bonito. O som do Garage era violento. À medida que as horas iam passando, o sistema de som se aquecia e as pessoas enchiam o ambiente, a acústica do lugar mudava. Então o Larry ajustava o som ao longo da noite para que ele permanecesse bom a noite inteira. De tempos em tempos, ele ia até o centro da pista para ver como estava o som. No dia seguinte, tinha que ser equalizado de novo, porque soava mal com o lugar completamente seco e vazio.

Rosado: O volume era absurdamente alto, e você podia sentir os graves pressionando o seu peito e ondulando pela pista. Eu não conseguia ficar bem na frente de uma caixa de som, não conseguia aguentar a pressão do som. 

Berkmann: Para mim, o som era o princípio e o fim de tudo. Acho que era a filosofia por trás dele que o tornava tão incrível. O Richard Long e o Levan estavam constantemente tentando melhorá-lo, afinando-o o tempo todo. Em vez de equalizar o sistema, equalizavam o ambiente. Então eles pegaram todo o conceito de sistema de som e o viraram de cabeça para baixo, fazendo o ambiente se adequar ao som e não o contrário.

Rosado: O Larry estava sempre mexendo no sistema. Ele era como um cientista maluco, fazendo experiências constantemente para tentar melhorar as coisas.


O DJ Larry Levan e seu fã-clube

A EXPERIÊNCIA

Rosado: As noites de sábado eram mais terra de ninguém, tinha algumas faixas que ele tocava aos sábados, que eram gay-friendly. As sextas eram mais mainstream, enquanto no sábado o céu era o limite.

DePino: Ao longo da noite, você podia ir para a pista, dançar umas duas ou três músicas e depois ir para os ambientes nos fundos e falar com os seus amigos, assistir a um filme, talvez, e depois socializar um pouco mais. Dançar não era o centro do clube, ele era uma experiência completa. 

Rosado: Era um refúgio, um lugar para ficar em paz. Parecia que o Larry estava falando com você através da música, as mensagens dele eram muito claras, e ele flutuava de uma mensagem para outra – isso era muito poderoso. É o mais próximo que se pode chegar de uma experiência religiosa, eu acho.

LARRY LEVAN

DePino: Eu sempre disse que as pessoas vinham para o Garage, mas era o Larry quem as levava para o paraíso. Aquele momento de êxtase vinha depois de cinco ou seis faixas, ou talvez duas, mas quando acontecia, era tipo: ‘Ah... Meu... Deus’. Desculpe o meu vocabulário, mas é como quando um homem se masturba [risos] e consegue o que está tentando alcançar... Algumas pessoas descrevem isso como uma experiência religiosa, mas para outras, é sexual. E algumas vezes parecia que o sermão dele estava falando diretamente com você, talvez você tivesse terminado com o seu namorado e ele estivesse tocando quatro ou cinco músicas sobre ser magoado. Se o Larry estava de mau humor... Ah, garoto, se ele estava apaixonado, então a música era linda, mas se ele estava irritado, a música era pesada.

Berkmann: Ele era um cara contando uma história, não tinha nada a ver com qual faixa soa bem mixada com aquela outra, tinha a ver com criar uma narrativa através do sentimento e das letras das próprias faixas. Então ele contava uma história com começo, meio e fim, depois a música parava, todo mundo aplaudia e ele começava outra história. Era totalmente diferente do que se faz hoje. 

Rosado: Ele tinha muito culhão e não tinha medo mostrar isso [risos]. Ele não aceitava desaforo de ninguém. Ele não dava a mínima para o que os donos pensavam ou diziam, não ligava para o que ninguém pensava ou dizia. Ele sempre fazia o que queria. E se isso significava tocar duas faixas ao mesmo tempo ou tocar a mesma música repetidamente, era o que ele fazia. 


Larry na cabine, comandando a massa

Berkmann: Ele era muito brincalhão, um cara muito engraçado. Adorava provocar as pessoas. Quando discotecou no Ministry [depois do fechamento do Garage], tocou “Finally”, da CeCe Peniston, em loop por 45 minutos. Isso mostra o tipo de cara que ele era, ele provocava o público tocando a porra de um disco por 45 minutos. Depois, quando ele trocou a música por outra coisa, todo mundo disse “Finally” [“finalmente”], e essa era a piada. Tudo isso por uma recompensa de dez segundos.

Rosado: Ele era o mestre da manipulação. As pessoas vinham querendo ser manipuladas por ele. Como Larry costumava dizer: ‘Eles querem que eu foda com eles, então é melhor que eu faça um bom trabalho’ [risos]. E às vezes as pessoas se sentiam assim literalmente, gritavam ‘Quero ter filhos com você’ da pista quando ele tocava certas faixas, sabe.

DePino: Mas a coisa toda era muito estratégica também, ele se adaptava à recepção do público. Era como se estivesse jogando xadrez com a pista: ‘Ah, você fez essa jogada, então só espere para ver o que eu vou fazer em seguida’. Em momentos como esse, Larry tinha o maior sorriso do mundo no rosto porque a pista o estava desafiando, e ele sabia que o público estava esperando uma reação dele.


Som de preto, mas sem preconceito

TOCAR NO GARAGE

Krivit: O Larry só me avisava casualmente: ‘Vou descer para dançar, toque algumas faixas, está bem?’

Rosado: Era como se ele me passasse o controle de um avião, eu podia ter feito o troço bater e explodir – mas graças a Deus isso não aconteceu. Quando toquei minha primeira faixa e o público gritou, a energia era tanta que tive que me afastar dos decks porque achei que ia ter um infarto.

DePino: Eu acabei entrando por acaso. Trabalhava no Garage e comecei a tocar no lugar do Larry quando ele estava atrasado, e o público me aceitou porque eu trabalhava ali e era amigo dele. Eu tinha respeito, se tocava pelas primeiras duas ou três horas, sabia que era só para aquecer o público e não tocava as faixas que sabia que o Larry tocaria.

Berkmann: Eu o trouxe para o Ministry porque o clube dele e ele próprio me inspiraram a criar o meu clube. Então eu queria o carimbo de autoridade dele, era o meu sonho fazê-lo tocar lá. Era para ele ficar só por um fim de semana, mas em vez disso ele chegou oito dias atrasado e ficou três meses.


A 84 King Street hoje

POR QUE O CLUBE ERA ESPECIAL

DePino: Toda casa noturna é um refúgio, e eu acho que o Garage também era. Você não ia para o Garage todo arrumado para pegar um garoto ou garota, ia de jeans e até levava uma muda de roupa para se trocar se ficasse suado – o clube tinha até vestiários. Então todo mundo era bem-vindo, você podia ter 18 ou 80 anos, ser branco ou negro, asiático ou hispânico, hétero ou gay, iam cadeirantes também. Se você vinha para se divertir, era tudo o que importava.

Rosado: Era como estar em casa, um refúgio, e essa experiência compartilhada nos reuniu. Tinha gays, héteros, drag queens, brancos, negros, asiáticos. Era um caldeirão. Todos eles vinham para se expressar.

DePino: As noites de sexta demoraram mais para decolar porque levou um tempo até que se espalhasse que o Garage era um lugar seguro para os gays, e levou um tempo até as pessoas perceberem que a polícia não ia entrar no clube. A comunidade gay tinha que ser mais cuidadosa, eles nunca sabiam o que esperar. Mas quando finalmente rolou, era como entrar em um mundo de aceitação, um mundo onde as pessoas não julgavam.


Siga o Adam no Twitter: @adambychawski


Tradução: Fernanda Botta

segunda-feira, janeiro 15, 2018

Defendemos a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual


Em texto publicado no “Le Monde”, com o título deste post, um coletivo de 100 mulheres, incluindo Catherine Millet, Ingrid Caven e Catherine Deneuve, afirma sua rejeição a um certo feminismo que expressa um “ódio aos homens”. Leiam o texto completo e tirem suas próprias conclusões:

Na sequência do caso de Weinstein, houve uma consciência legítima da violência sexual contra as mulheres, particularmente no local de trabalho onde alguns homens abusam do seu poder. Ela era necessária. Mas essa libertação do discurso torna hoje o seu oposto: somos intimadas a falar corretamente, silenciar o que incomoda e aquelas que se recusam a cumprir tais injunções são consideradas traidoras, cúmplices!

Mas é característico do puritanismo pedir emprestado, em nome de um suposto bem geral, os argumentos da proteção das mulheres e sua emancipação para melhor vinculá-las ao status de vítimas eternas, coitadinhas sob a influência dos falocratas demoníacos, como nos bons velhos tempos da feitiçaria.

Delações e acusações

De fato, #metoo iniciou na imprensa e nas redes sociais uma campanha de denúncia e acusação pública de indivíduos que, sem ter a oportunidade de responder ou se defenderem, foram colocados exatamente no mesmo nível que os agressores sexuais. Esta justiça expeditiva já tem suas vítimas, homens impedidos do exercício de sua profissão, obrigados a demitir-se, etc., quando seu único erro foi terem tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falado sobre coisas “íntimas” em um jantar de negócios ou enviado mensagens sexualmente explícitas para uma mulher com a qual a atração não era recíproca.

Essa febre de enviar “porcos” ao matadouro, longe de ajudar as mulheres a se emancipar, na verdade serve aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários e daqueles que acreditam, em nome de uma concepção substancial do bem e da moral vitoriana que o acompanha, que as mulheres são seres “à parte”, crianças com rosto de adulto, exigindo proteção.

Diante disso, os homens são convocados a vencer sua culpa e encontrar, no fundo de sua consciência retrospectiva, um “comportamento mal colocado” que eles poderiam ter tido dez, vinte ou trinta anos atrás, e dos quais eles deveriam se arrepender. É a confissão pública, a incursão de promotores autoproclamados na esfera privada, que instaura um certo clima de sociedade totalitária.

A onda purificatória parece não ter limites. Aqui, censuramos um nu de Egon Schiele em um cartaz; ali pedimos a remoção de uma pintura de Balthus de um museu com base em que seria uma apologia à pedofilia; na confusão do homem e da obra, pedimos a proibição da retrospectiva Roman Polanski na Cinémathèque e obtemos o adiamento daquela dedicada a Jean-Claude Brisseau. Uma acadêmica considera o filme de Michelangelo Antonioni Blow Up “misógino” e “inaceitável”. À luz deste revisionismo, John Ford (The Prisoner of the Desert), e até mesmo Nicolas Poussin (The Abduction of the Sabines) não estão numa situação melhor.

Alguns editores já estão pedindo a algumas de nós que façamos nossos personagens masculinos menos “sexistas”, que falemos sobre sexualidade e amor com menos desmedida ou ainda que deixemos o “trauma sofrido pelas personagens femininas” mais óbvio! À beira do ridículo, um projeto de lei na Suécia quer impor um consentimento explicitamente notificado a qualquer candidato para relações sexuais! Só mais um esforço e dois adultos que quiserem dormir juntos deverão preencher via um “App” em seu telefone celular um documento em que as práticas que eles aceitam e aquelas que eles recusam serão devidamente listados.

Indispensável liberdade de ofender

Ruwen Ogien defendeu uma liberdade de ofender indispensável à criação artística. Do mesmo modo, defendemos a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual. Somos hoje suficientemente conscientes para admitir que a pulsão sexual é por natureza ofensiva e selvagem, mas também somos suficientemente clarividentes para não confundir paquera desajeitada e assédio sexual.

Acima de tudo, temos consciência que a pessoa humana não é monolítica: uma mulher pode, no mesmo dia, liderar uma equipe profissional e gostar de ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma “vagabunda” ou uma vil cúmplice do patriarcado. Ela pode cuidar para que seu salário seja igual ao de um homem, mas não se sentir traumatizada para sempre por um esfregador no metrô, mesmo que isso seja considerado um delito. Ela pode até mesmo considerar isso como a expressão de uma grande miséria sexual, como um não-evento.

Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além da denúncia de abusos de poder, toma forma de ódio aos homens e à sexualidade. Acreditamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de importunar. E consideramos que é preciso saber responder a essa liberdade de importunar de outra forma que se encerrando no papel de presa.

Para aquelas de nós que escolhemos ter filhos, sentimos que é mais sensato criar nossas filhas de modo que sejam suficientemente informadas e conscientes para viver suas vidas sem se deixar intimidar ou culpabilizar.

Os acidentes que podem tocar o corpo de uma mulher não atingem necessariamente sua dignidade e não devem, por mais difíceis que possam ser, necessariamente torná-la uma vítima perpétua. Porque não somos redutíveis ao nosso corpo. Nossa liberdade interior é inviolável. E essa liberdade que estimamos não vem sem riscos ou responsabilidades.

As redatoras deste texto são Sarah Chiche (escritora, psicóloga clínica e psicanalista), Catherine Millet (crítica de arte, escritora), Catherine Robbe-Grillet (atriz e escritora), Peggy Sastre (autora, jornalista e tradutora) e Abnousse Shalmani (escritora e jornalista).

Assinam também: Kathy Alliou (curadora), Marie-Laure Bernadac (curadora geral honorária), Stephanie Blake (autora de livros infantis), Ingrid Caven (atriz e cantora), Catherine Deneuve (atriz), Gloria Friedmann (artista visual), Cécile Guilbert (escritora), Brigitte Jaques-Wajeman (diretora), Claudine Junien (geneticista), Brigitte Lahaie (atriz e apresentadora de rádio), Elisabeth Lévy (editora-chefe da Causeur), Joëlle Losfeld (editora) Sophie de Menthon (presidente do movimento ETHIC), Marie Sellier (autora, presidente da Société des gens de lettres).


Viva a França!