Quatro DJs que viveram
os tempos áureos do mais emblemático clube de Nova York contam por que uma
noite por lá era considerada uma experiência espiritual
Por Adam Bychawski
“Missa de Sábado” era como as pessoas chamavam os sets do DJ
Larry Levan no clube mais lendário de Nova York, o Paradise Garage. “Da cabine,
Larry pregava através da música dele exatamente como um padre ou pastor faz do
púlpito”, diz o DJ David DePino, amigo próximo de Levan. Aliás, Levan fez seu
sermão todo santo fim de semana da abertura do clube, em 1977 (quando ainda
estava em construção), até o dia em que ele fechou as portas para sempre, no
verão de 1987.
Localizado, como o nome indica, em uma garagem na 84 King
Street, em Manhattan, o Garage foi um dos poucos clubes a ser construído para
um DJ específico. O local em si não era particularmente digno de nota, mas o
que faltava em decoração era compensado pelo seu reverenciado sistema de som e
apaixonados membros.
A lenda do Garage é interligada com a de Levan, que era o DJ
residente no sentido mais literal: a certa altura, ele chegou mesmo a morar no
clube. Ele tratava o Garage com a reverência concedida a um lugar de culto,
reposicionando o sistema de som durante a noite, parando o seu set às duas da
manhã para polir os globos espelhados e até mesmo se certificando de que as
lixeiras tivessem sido cuidadosamente limpas. Tudo isso parece impensável para
um DJ hoje, mas, na época, o Garage era mais do que um clube – era a visão de
Levan do paraíso.
Para a congregação do Garage, a política de acesso restrito
a sócios oferecia uma sensação de santuário e propriedade. Era um dos poucos
clubes de Nova York que os gays e, predominantemente, os afro-americanos e
latinos podiam verdadeiramente chamar de seu. “O Garage era um lugar para as
pessoas que não eram aceitas na sociedade, um lugar para elas serem livres,
serem elas mesmas”, diz Victor Rosado, que trabalhou no clube.
A ferveção na pista em 1979
Mesmo depois da Rebelião de Stonewall, a violência
homofóbica nas ruas e a repressão policial continuavam implacáveis. “Levou um
tempo para conquistarmos a confiança da comunidade gay”, diz DePino.
Eventualmente, as noites gay de sexta decolaram junto com os sábados, já
populares, atraindo um público mais diversificado.
Rosado, que deu continuidade ao legado do Garage através da
sua própria carreira como DJ, foi um dos poucos seletos para quem Levan deu a oportunidade
de tocar no clube. “Foi uma grande surpresa para mim, era meu aniversário. Já
tínhamos falado sobre música, mas eu definitivamente não esperava que o Larry
fosse me pedir para tocar daquele jeito, do nada”, ele diz.
Levan se divertia pregando peças tanto nos seus amigos
quanto no público, fosse tocando a mesma música várias vezes seguidas, durante
uma hora inteira, ou bombardeando a pista com uma explosão súbita de graves. Mas
a técnica que era a sua marca, era criar uma narrativa a partir dos sentimentos
e letras das faixas que tocava, descrevendo cada uma delas como uma nova frase
ou parágrafo das histórias que tentava contar ao longo dos seus sets de 12
horas.
Num domingo no final de novembro, Rosado, junto com DePino,
Danny Krivit e Joey Llanos – todos os quatro ex-DJs do clube – chegam ao
Ministry of Sound, em Londres, para um reencontro especial que buscava
arrecadar dinheiro para duas instituições de caridade de combate ao HIV: o Gay
Men's Health Crisis (GMHC), de Nova York, e o Terrence Higgins Trust, do Reino
Unido. Então pedimos a Rosado, DePino, Krivit e também ao Justin Berkmann, do
Ministry – que se inspirou nas suas experiências no Garage para montar o seu
próprio clube – que nos falassem das suas memórias do Garage.
A fila para entrar no
paraíso
ENTRANDO
Victor Rosado: A primeira vez que fui lá, esperei horas na
rua na esperança de que alguém fosse me perguntar se eu queria entrar. Então
conheci este cara, conversamos, acho que ele meio que gostou de mim, perguntou
se eu queria entrar, e isso foi o começo de tudo.
Justin Berkmann: A primeira vez que fui lá era uma sexta,
que eu não sabia que era a noite hétero. Era o único cara branco no lugar,
estava levando esbarrões e solavancos e não entendia o porquê de toda aquela
hostilidade. Eu já estava de saída quando um garoto apareceu e disse: Você não
devia ter vindo hoje à noite, mas fique à vontade para voltar amanhã.
Rosado: Eu meio que passei por um interrogatório na minha
primeira vez no clube, mas eles sossegaram depois de um tempo. Acho que eles só
encrencam se nunca te viram antes.
Berkmann: Depois de três tentativas frustradas, finalmente
consegui entrar numa noite de sábado [inicialmente, era uma noite
exclusivamente gay]. Estava com o meu amigo Jimmy de Los Angeles. Ele acampou
de um jeito escandaloso na porta. Não acho que eles tenham caído nessa, mas
provavelmente pensaram: Se eles estão dispostos a ir tão longe, então devem
querer mesmo entrar. Começamos a ir lá toda semana e, quando vimos, já tínhamos
nossos cartões de sócio.
A pista lotada em
1981
O LUGAR
Danny Krivit: Era dentro de uma garagem de caminhões de dois
andares. Você entrava subindo esta rampa iluminada por luzes coloridas dos dois
lados, com um grande letreiro de neon com o logotipo do Paradise Garage em
cima.
David DePino: Não era glamuroso, foi construído pensando
primeiramente e acima de tudo no som e no conforto absoluto dos membros. Tinha
dois lounges onde você podia relaxar e um cinema. Tinha até um piso de madeira
com amortecimento para que os seus pés não ficassem cansados, porque queríamos
que você ficasse até o fim.
Berkmann: Não tinha bebida ou bartenders, só um self-service
com vasilhas de ponche. Também tinha um cinema com 80 lugares, e você podia
assistir a filmes que estavam em cartaz em outros lugares na época. Não tenho
ideia de como eles conseguiram isso. Me lembro de assistir a Três Amigos! completamente chapado, acho
que nunca ri tanto na vida. É um bom filme, mas parecia ainda mais engraçado
naquela noite.
Público mix: hétero, gay, negros, amarelos, brancos e latinos
O SOM
DePino: É o melhor som que ouvi até hoje. As pessoas
seguidamente falam sobre o The Loft, que ele tinha o melhor sistema de som, mas
o The Loft tinha um som bonito. O som do Garage era violento. À medida que as
horas iam passando, o sistema de som se aquecia e as pessoas enchiam o
ambiente, a acústica do lugar mudava. Então o Larry ajustava o som ao longo da
noite para que ele permanecesse bom a noite inteira. De tempos em tempos, ele
ia até o centro da pista para ver como estava o som. No dia seguinte, tinha que
ser equalizado de novo, porque soava mal com o lugar completamente seco e
vazio.
Rosado: O volume era absurdamente alto, e você podia sentir
os graves pressionando o seu peito e ondulando pela pista. Eu não conseguia
ficar bem na frente de uma caixa de som, não conseguia aguentar a pressão do som.
Berkmann: Para mim, o som era o princípio e o fim de tudo.
Acho que era a filosofia por trás dele que o tornava tão incrível. O Richard
Long e o Levan estavam constantemente tentando melhorá-lo, afinando-o o tempo
todo. Em vez de equalizar o sistema, equalizavam o ambiente. Então eles pegaram
todo o conceito de sistema de som e o viraram de cabeça para baixo, fazendo o
ambiente se adequar ao som e não o contrário.
Rosado: O Larry estava sempre mexendo no sistema. Ele era
como um cientista maluco, fazendo experiências constantemente para tentar
melhorar as coisas.
O DJ Larry Levan e seu fã-clube
A EXPERIÊNCIA
Rosado: As noites de sábado eram mais terra de ninguém,
tinha algumas faixas que ele tocava aos sábados, que eram gay-friendly. As
sextas eram mais mainstream, enquanto no sábado o céu era o limite.
DePino: Ao longo da noite, você podia ir para a pista,
dançar umas duas ou três músicas e depois ir para os ambientes nos fundos e
falar com os seus amigos, assistir a um filme, talvez, e depois socializar um
pouco mais. Dançar não era o centro do clube, ele era uma experiência
completa.
Rosado: Era um refúgio, um lugar para ficar em paz. Parecia
que o Larry estava falando com você através da música, as mensagens dele eram
muito claras, e ele flutuava de uma mensagem para outra – isso era muito
poderoso. É o mais próximo que se pode chegar de uma experiência religiosa, eu
acho.
LARRY LEVAN
DePino: Eu sempre disse que as pessoas vinham para o Garage,
mas era o Larry quem as levava para o paraíso. Aquele momento de êxtase vinha
depois de cinco ou seis faixas, ou talvez duas, mas quando acontecia, era tipo:
‘Ah... Meu... Deus’. Desculpe o meu vocabulário, mas é como quando um homem se
masturba [risos] e consegue o que está tentando alcançar... Algumas pessoas
descrevem isso como uma experiência religiosa, mas para outras, é sexual. E
algumas vezes parecia que o sermão dele estava falando diretamente com você,
talvez você tivesse terminado com o seu namorado e ele estivesse tocando quatro
ou cinco músicas sobre ser magoado. Se o Larry estava de mau humor... Ah,
garoto, se ele estava apaixonado, então a música era linda, mas se ele estava
irritado, a música era pesada.
Berkmann: Ele era um cara contando uma história, não tinha
nada a ver com qual faixa soa bem mixada com aquela outra, tinha a ver com
criar uma narrativa através do sentimento e das letras das próprias faixas.
Então ele contava uma história com começo, meio e fim, depois a música parava,
todo mundo aplaudia e ele começava outra história. Era totalmente diferente do
que se faz hoje.
Rosado: Ele tinha muito culhão e não tinha medo mostrar isso
[risos]. Ele não aceitava desaforo de ninguém. Ele não dava a mínima para o que
os donos pensavam ou diziam, não ligava para o que ninguém pensava ou dizia.
Ele sempre fazia o que queria. E se isso significava tocar duas faixas ao mesmo
tempo ou tocar a mesma música repetidamente, era o que ele fazia.
Larry na cabine, comandando a massa
Berkmann: Ele era muito brincalhão, um cara muito engraçado.
Adorava provocar as pessoas. Quando discotecou no Ministry [depois do
fechamento do Garage], tocou “Finally”, da CeCe Peniston, em loop por 45
minutos. Isso mostra o tipo de cara que ele era, ele provocava o público
tocando a porra de um disco por 45 minutos. Depois, quando ele trocou a música por
outra coisa, todo mundo disse “Finally” [“finalmente”], e essa era a piada.
Tudo isso por uma recompensa de dez segundos.
Rosado: Ele era o mestre da manipulação. As pessoas vinham
querendo ser manipuladas por ele. Como Larry costumava dizer: ‘Eles querem que
eu foda com eles, então é melhor que eu faça um bom trabalho’ [risos]. E às
vezes as pessoas se sentiam assim literalmente, gritavam ‘Quero ter filhos com
você’ da pista quando ele tocava certas faixas, sabe.
DePino: Mas a coisa toda era muito estratégica também, ele
se adaptava à recepção do público. Era como se estivesse jogando xadrez com a
pista: ‘Ah, você fez essa jogada, então só espere para ver o que eu vou fazer
em seguida’. Em momentos como esse, Larry tinha o maior sorriso do mundo no
rosto porque a pista o estava desafiando, e ele sabia que o público estava
esperando uma reação dele.
Som de preto, mas sem preconceito
TOCAR NO GARAGE
Krivit: O Larry só me avisava casualmente: ‘Vou descer para
dançar, toque algumas faixas, está bem?’
Rosado: Era como se ele me passasse o controle de um avião,
eu podia ter feito o troço bater e explodir – mas graças a Deus isso não
aconteceu. Quando toquei minha primeira faixa e o público gritou, a energia era
tanta que tive que me afastar dos decks porque achei que ia ter um infarto.
DePino: Eu acabei entrando por acaso. Trabalhava no Garage e
comecei a tocar no lugar do Larry quando ele estava atrasado, e o público me
aceitou porque eu trabalhava ali e era amigo dele. Eu tinha respeito, se tocava
pelas primeiras duas ou três horas, sabia que era só para aquecer o público e
não tocava as faixas que sabia que o Larry tocaria.
Berkmann: Eu o trouxe para o Ministry porque o clube dele e
ele próprio me inspiraram a criar o meu clube. Então eu queria o carimbo de
autoridade dele, era o meu sonho fazê-lo tocar lá. Era para ele ficar só por um
fim de semana, mas em vez disso ele chegou oito dias atrasado e ficou três
meses.
A 84 King Street hoje
POR QUE O CLUBE ERA
ESPECIAL
DePino: Toda casa noturna é um refúgio, e eu acho que o
Garage também era. Você não ia para o Garage todo arrumado para pegar um garoto
ou garota, ia de jeans e até levava uma muda de roupa para se trocar se ficasse
suado – o clube tinha até vestiários. Então todo mundo era bem-vindo, você
podia ter 18 ou 80 anos, ser branco ou negro, asiático ou hispânico, hétero ou
gay, iam cadeirantes também. Se você vinha para se divertir, era tudo o que
importava.
Rosado: Era como estar em casa, um refúgio, e essa
experiência compartilhada nos reuniu. Tinha gays, héteros, drag queens,
brancos, negros, asiáticos. Era um caldeirão. Todos eles vinham para se
expressar.
DePino: As noites de sexta demoraram mais para decolar
porque levou um tempo até que se espalhasse que o Garage era um lugar seguro
para os gays, e levou um tempo até as pessoas perceberem que a polícia não ia
entrar no clube. A comunidade gay tinha que ser mais cuidadosa, eles nunca
sabiam o que esperar. Mas quando finalmente rolou, era como entrar em um mundo
de aceitação, um mundo onde as pessoas não julgavam.
Siga o Adam no Twitter: @adambychawski
Tradução: Fernanda Botta
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