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terça-feira, abril 01, 2014

A sina do Cinna


Luís Fernando Veríssimo

Gosto daquela cena do Júlio César, de Shakespeare, em que um grupo de cidadãos, inflamado pelo discurso de Marco Antônio sobre o corpo recém-esfaqueado de César que começa como um lamento e termina como uma incitação à vingança, encontra Cinna, o Poeta, e o confunde com um dos assassinos. Cinna convence o grupo de que não faz parte da conspiração, mas isto não o salva. O grupo, exaltado, quer sangue. Cinna é apenas um poeta? Então “matem-no pelos seus maus versos!”, grita alguém. E Cinna é abatido. Quando os cães da guerra estão soltos, nos diz Shakespeare, ninguém é inocente.

Imaginei uma variação da cena em que Cinna se identifica, não como um poeta, mas como um humorista. O grupo não acredita, e desafia Cinna a provar que é o que diz. Cinna hesita.

– Sim, bem, hmm, deixa ver...

– Matem-no!

– Calma! Deixem eu pensar. Hmmm. Sim. Lá vai.

E Cinna começa a declamar.

– Eu sou Cinna, de Siena, em cena / porque esta é a cena do Cinna / que preferia ser Cinna lá em / cima, em Siena / do que Cinna em cena e sem rima. / Mas até quando, em Siena, se encena / esta cena com o pobre do Cinna / ele morre no fim, é uma pena / por absoluta falta de clima. / E assim cai em cena o de Siena / pois a cena do Cinna ensina / que ele morre em Siena ou em cena / porque esta é a sina do Cinna.

Todos se entreolham. Ouve-se uma risada. Depois outra. “Razoável”, diz alguém. Cinna se entusiasma.

– Vocês conhecem a história da mulher do Brutus? Todos sabem que a mulher de César precisa ficar acima de qualquer suspeita, e não apenas ser virtuosa, mas parecer virtuosa. Já com a mulher do Brutus é diferente: ela tem um fraco por homens mal-encarados. Gosta de ficar embaixo de qualquer suspeito. Hein? Hein?

Há mais risadas. Estou agradando, pensa Cinna. Talvez até me salve! Ele continua:

– Dizem que a mulher do Brutus recebe tantos homens na sua cama que quando o próprio marido a procura, ela diz “Até tu, Brutus?!”.

Mais risadas. Cinna levanta os braços e diz:

– Acabou, gente. Foi ótimo, mas tenho que ir. Vocês foram uma ótima plateia. Os que me emprestaram seus ouvidos os receberão de volta pelo correio. Mas sem os brincos. Rá rá. Tchau, hein turma?

Mas alguém grita:

– Matem-no!

Cinna é agarrado.

– O que é isto? Eu não provei que era humorista?

– Provou.

– Então por que vão me matar?

– Por fazer humor numa hora destas!

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