Lucio Branco
O ano da Copa do Mundo no Brasil mal começou e já promete em
termos de protesto contra a sua realização. Ao que tudo indica, 2013 foi apenas
um prelúdio do que virá pela frente.
As manifestações se iniciaram em junho último, durante – e
também por causa – da Copa das Confederações, e o fato de o Brasil ter se
sagrado campeão desta competição preparatória à Copa do Mundo não fez calar a
voz das ruas.
O espírito de mobilização se estendeu para dentro das quatro
linhas com a criação do movimento Bom Senso F.C., através do qual os jogadores
reivindicam melhorias para a sua categoria.
A contestação associada ao esporte mais popular do mundo não
é um fenômeno recente. E no Brasil nunca foi diferente. É o que Barba, cabelo e
bigode pretende abordar.
Afonsinho e Nei Conceição iniciaram as suas carreiras em
meados dos anos 1960, num momento histórico de forte repressão política no
país. Originalmente na condição de companheiros de uma consagrada geração de
craques do Botafogo, não abriram mão da liberdade justo quando a ditadura
militar decidiu convocar a si mesma para também entrar em campo.
Os generais de então concluíram que até o esporte mais
popular do país deveria ser escovado pelo pente fino da vigilância permanente:
a rotina dos clubes passou a ser regida pelos mesmos códigos que já vinham
condenando a sociedade civil ao arbítrio.
Munidos de bom senso bem antes de a expressão entrar em voga
no meio futebolístico, Afonsinho e Nei Conceição enfrentaram a imposição das
cartilhas de comportamento nos clubes, o regime de concentração, o controle
sobre as condutas extra-campo etc.
É curioso notar que a atual causa do passe livre na questão
do transporte público, que, em conjunto com a realização da Copa Mundo no país,
foi um das razões da mobilização popular desde junho passado, leve o mesmo nome
daquela que trouxe Afonsinho, em 1970 – noutro contexto e com outra
significação específica – para o centro das discussões sobre os direitos dos
profissionais da bola.
Quando o direito de ir e vir, seja dentro dos clubes, seja
entre eles através das transferências dos atletas, ficou comprometido pela situação
política nacional, atitudes pioneiras como as de Afonsinho e Nei Conceição
foram também emblemáticas de um comportamento social característico do período.
O futebol e a vida têm relações muito mais frequentes do que
se suspeita.
SOBRE O FILME
Barba, cabelo e bigode é um projeto de documentário de
curta-metragem que aborda a trajetória rebelde de dois históricos jogadores de
futebol que fizeram história em clubes de expressão do Brasil.
Barba, cabelo e bigode pretende ter como estrutura narrativa
o diálogo entre os seus depoimentos em primeira pessoa. Sua edição dinâmica
buscará confrontar e complementar as versões sobre os episódios rememorados e
os respectivos pontos de vista daí originados.
Flagrantes atuais de ambos, o seu acervo pessoal de fotos e
o material iconográfico de arquivos públicos consistirão em boa parte do
material visual do filme. Entre algumas das imagens históricas, contaremos com
aquelas do precioso documentário Passe livre, de 1974, de Oswaldo Caldeira,
sobre Afonsinho.
Barba, cabelo e bigode terá por volta de 30 minutos de
duração. O filme terá como cenário a ilha de Paquetá, onde ambos trabalham e
costumam se encontrar para disputar partidas no clube local.
Lucio Branco é bacharel em Ciências Sociais (com monografia
sobre Almir, o Pernambuquinho, jogador maldito do futebol brasileiro – condição
confirmada pelo seu atual ostracismo), mestre em literatura brasileira e doutor
em literatura comparada, mas trocaria essa titulação pela condição de
diretor, roteirista e realizador de Barba, cabelo e bigode.
Também é ex-livreiro, ex-office boy, ex-atendente de
locadora de vídeo, revisor, discotecário, produtor cultural, dentre outras
formas mais ou menos dignas de sujeição involuntária ao subemprego.
No audiovisual escreveu argumentos e roteiros não filmados.
Dirigiu o documentário da restauração do filme Copacabana, mon amour, do
cineasta Rogério Sganzerla, para servir como extra na sua versão em DVD.
Torce pelo Botafogo, dado mais importante que todos os
anteriores somados.
O valor que estamos pedindo é o de R$ 40.000,00. Com esse
valor, conseguiremos arcar com a pré-produção, a produção e a finalização do
documentário.
Iremos pagar uma pequena ajuda de custo para a equipe
envolvida (diretor, produção, fotógrafo, técnico de som, montador, mixador e
designer); aluguel de equipamento de câmera, luz e serviços de finalização;
transporte e alimentação para os dias de gravação; direito de uso de imagens de
arquivo etc.
Você pode contribuir com a realização desse filme, e ainda
ganhar outros bônus pela sua contribuição. Dependendo da cota escolhida (que
vão de R$ 25,00 a R$ 2.000,00), você pode levar – além da gratificação de ter
ajudado na realização da obra – o seu nome nos créditos como agradecimento,
versões estendidas e exclusivas das entrevistas que ficarão de fora do
documentário, DVD do filme, imãs, camisetas e cartazes autografados e até mesmo
uma tarde em Paquetá jogando pelada com Afonsinho e Nei Conceição.
Sua contribuição é essencial para resgatar/valorizar essa
história e levarmos ao conhecimento de um público maior a trajetória de dois
craques que sempre souberam fazer a diferença.
AGORA, UM BREVE
PERFIL BIOGRÁFICO DOS JOGADORES:
Afonso Celso Reis Garcia, o Afonsinho, é conhecido por ser o
primeiro jogador a conquistar o passe livre no futebol brasileiro. A aura de
jogador rebelde, além de confirmada na barba e nos cabelos compridos quando
ninguém ainda os exibia nos gramados, transparecia na consciência política
desenvolvida em plenos anos de chumbo. Evidentemente, esses são aspectos
singulares.
Mas há algo que deveria ser considerado com mais frequência
sobre ele: é que o seu engajamento talvez não tivesse a mesma ressonância
histórica não fosse a sua intimidade com a bola. Afonsinho foi um craque
monumental. Isso, por si só, já lhe atraía os holofotes. E o fato de ter sido
pouco convocado à seleção nada teve a ver com critérios técnicos.
Ainda muito novo, Afonsinho era uma promessa nas divisões de
base do XV de Jaú. Apostando no próprio potencial, fez as malas para o Rio de
Janeiro em 1965, movido pela mesma vontade de independência que foi a constante
da sua carreira. O apelo da mística do Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton
Santos falou mais alto e ele não hesitou em escolher o seu novo destino na
metrópole.
Após breve passagem pelos juniores, Afonsinho foi alçado à
condição de reserva, e logo, à de titular na meia-direita na equipe principal
de General Severiano. Foram alguns anos assim. Ciente da curta vida útil do
atleta profissional, e também pelo desejo de se emancipar, dividia o período de
treinos e concentração com a faculdade de medicina. E não demorou a se
converter, para a diretoria, numa incômoda exceção à regra.
Afonsinho era articulado e exercia uma liderança espontânea
entre os companheiros. Defendia direitos elementares que só o clube teimava em
não considerar como tais. O pagamento em dia dos prêmios pelas vitórias do time
era um deles.
O diretor de futebol Zeferino Xisto Toniato e o técnico
Mario Jorge Lobo Zagallo passaram a considerá-lo muito destoante do restante do
grupo. A começar pela sua aparência. Implicaram com a sua barba rala, o cabelo
um pouco maior que o permitido pelo padrão vigente: – “Quer parecer um tocador
de guitarra, um cantor de iê, iê, iê?” – perguntaram, tentando dar um tom
brando à censura.
Em protesto, deixou-os crescer ainda mais. Afonsinho
reivindicava melhores condições de trabalho para si e os outros jogadores.
Dentre todas as reivindicações, a do passe livre tornou-se aquela que
historicamente mais se associaria ao seu nome. Verdadeiro grilhão que aprisiona
o jogador ao clube, o passe era – e ainda é, para quem não o detenha – a
principal garantia de controle sobre os atletas por parte dos cartolas.
Após longa batalha judicial contra os dirigentes alvinegros
pela disputa do seu passe, a Justiça, de forma inédita (e inesperada), deu-lhe
ganho de causa. O sinal de alerta foi ligado nas outras agremiações. O camisa 8
tornou-se um exemplo perigosamente influente dentro do sistema do futebol
brasileiro.
General Severiano foi a primeira estação da sua trajetória
cigana pelo profissionalismo. Uma trajetória marcada, principalmente, pelos
embates com a cartolagem e os códigos disciplinares de todos os clubes pelos
quais jogou. Além dos outros três grandes do Rio, a lista inclui Santos,
Olaria, Madureira e América-MG.
Não é de surpreender que fosse fichado no DOPS, ou que
tivesse seus passos vigiados de perto tanto nas concentrações – mesmo quando em
excursões internacionais – como na sua rotina universitária. Os infiltrados
devem ter tido muito trabalho, já que Afonsinho frequentava círculos que não só
o do futebol.
A amizade com músicos rendeu “Meio de campo”, de Gilberto
Gil, em louvor a sua luta. A canção aparece como um dos elementos narrativos de
Passe livre, formidável documentário em longa-metragem de 1974, de Oswaldo
Caldeira, que flagra o seu nomadismo clubístico ao sabor das desavenças que ia
acumulando com dirigentes e treinadores.
Entre as rescisões de contrato, excursionava em esquema
mambembe com o Trem da Alegria, time que reunia artistas, jornalistas e
jogadores temporariamente desempregados como ele. Era a solução para se manter
em forma e melhor viver a liberdade conquistada.
Contestador em nome da classe, e não por ressentimento
pessoal, Afonsinho se relaciona com o mundo à maneira do seu antigo fino trato
com a bola. Outros reivindicaram direitos antes dele, mas nenhum o fez com
tamanha consciência. Ou mesmo conseguiu conquistá-los como ele conquistou.
Isolado, lutou pioneiramente por todos. Foi, com o perdão do trocadilho, um
solidário solitário. E também um revolucionário, fazendo jus ao título como
ninguém.
Outros dissidentes do futebol trilharam o caminho que ele
pavimentou. Quanto à lei do passe, até os atletas mais alienados vieram a ser
beneficiários do seu gesto precursor. A geração atual de jogadores
profissionais não sabe, mas tem uma dívida descomunal para com Afonsinho.
Consta que Nei Conceição, na véspera da sua transferência do
Botafogo para o Palmeiras, não parecia dar muita importância ao que estava para
se consumar dentro de algumas horas. Ele iria integrar a histórica Academia
Palmeirense, a maior geração de jogadores formada no Parque Antártica.
Era o início dos anos 1970, e, naquele dia, como de costume,
Nei estava passando tempo na célebre comuna dos Novos Baianos, em Jacarepaguá.
Caso se desse por sua falta em General Severiano, já era sabido o seu
paradeiro. Havia até quem achasse que ele preferia treinar com Moraes Moreira e
seus parceiros de banda – conhecidos também pelo espírito peladeiro – do que
com seus companheiros de clube.
E naquela ocasião em particular, Nei intuiu a promessa de
uma confluência astral com outra frequentadora do lugar, e pernoitou por lá
mesmo. Sua cabeça não estava ocupada com certos detalhes da viagem como, por
exemplo, a hora marcada do voo. Ou, ainda, a coletiva de imprensa e os
dirigentes e torcedores alviverdes que o aguardavam para a apresentação formal
do dia seguinte. Por ele, São Paulo podia esperar.
Num arroubo de responsabilidade profissional raro entre
músicos do período, seus anfitriões tentaram convencê-lo que o melhor era ir.
Afinal, ele iria jogar ao lado de Ademir da Guia, simplesmente, o maior ídolo
da história do clube paulistano. Mas não deu resultado. E o fim foi mais que
previsível: perdidos o voo e a transferência, Nei prosseguiu ganhando menos no
Botafogo. Pelo menos, não teria que pegar a ponte área quando quisesse visitar
os seus amigos em Jacarepaguá – deve ter calculado assim.
Nei da Conceição Moreira é um craque injustamente pouco
comentado do futebol brasileiro. Habilidoso, do gênero que matava a bola no
peito como ninguém e a fazia correr colada aos pés, tinha, em igual medida ao
seu talento, horror à cartilha que rege a rotina dos clubes. Os ponteiros do
seu relógio pessoal tinham vida própria, funcionavam conforme um compasso fora
do tempo ordinário.
O técnico Zagallo, mesmo tendo sido testemunha diária do seu
temperamento no Botafogo, não abriu mão de tê-lo entre os primeiros convocados
logo que assumiu o grupo que viria a se sagrar, meses depois, tricampeão na
Copa do México, em 1970.
Mas a aposta não foi muito longe: acabou barrando-o. O
motivo alegado? Indisciplina. O regime da seleção era outro, mais rigoroso, sob
intervenção militar – modelo que, dentro em breve, passaria a ser adotado pela
maioria dos clubes do país.
Assim, paradoxalmente, voltou à “Selefogo” – um esquadrão de
craques permanentemente a postos para qualquer convocação ao escrete canarinho
–, mas na condição de não selecionável. Seguiu apresentando a mesma categoria e
estilo de comportamento no clube que o revelou até encerrar a carreira,
prematuramente, pelo CSA de Alagoas, em 1975.
Nei Conceição era insubmisso por reflexo até numa pelada.
Numa delas, novamente com os Novos Baianos, no clube Caxinguelê, no Horto, ele
foi além da conta. Após driblar o time adversário inteiro, incluindo o goleiro,
e com o gol escancarado, pronto para o chute fatal, decidiu voltar e repetir o
feito.
Gostou tanto da experiência que quis vivê-la mais uma vez.
Porém, diante da censura dos companheiros de equipe, desistiu. E na
justificativa, saiu-se com essa: “Aqui eu não pago pra jogar? Então faço o que
eu quero!”.
Mais Nei Conceição, impossível.
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