Torquato Neto viveu o
suficiente para desafinar o coro dos contentes
Por Wally Sailormoon
Se vocês estiverem com dinheiro sobrando (o salário mínimo
vai aumentar agora em maio, certo? Comece a gastar por conta...), não deixem de
adquirir a monumental caixa “Torquatália”, de Torquato Neto. Org. Paulo Roberto
Pires. Editora Rocco. Volume I (“Do lado de dentro”), 368 páginas, R$ 44.
Volume II (“Geléia geral”), 408 páginas, R$ 49. O investimento vai valer a
pena.
Eu, particularmente, continuo reputando como tarefa ingrata
essa de reunir a obra completa de Torquato Neto (1944-1972). Ele não se deixava
apreender com facilidade, distribuiu seu talento por várias áreas, destruiu
muito do que escreveu antes de se matar aos 28 anos. Juntar o artista em dois
volumes é tentar dar-lhe contornos mais precisos. Mas, como não poderia deixar
de ser, as sensações de “Torquatália” sobrevivem em incongruências: “as
palavras arrebentadas, os becos, as ciladas etc. etc. ad infinitum”.
Os rastros de Torquato Neto foram agora mapeados pelo
jornalista, escritor, professor e editor Paulo Roberto Pires em “Do lado de
dentro” e “Geléia geral”. Os textos do piauiense estavam sumidos havia muito
tempo. É de 1982 a segunda e última edição de “Os últimos dias de paupéria”,
coletânea organizada pela mulher, Ana Maria Duarte, e por este vosso escriba.
Torquato sobrevivia de maneira mais próxima do público nas letras de canções, o
meio que lhe deu alguma celebridade.
O material traz inéditos, em livro ou não. De poemas da
adolescência, escritos em Salvador e no Rio entre 1961 e 1962, aos textos da
coluna Música Popular, do “Jornal dos Sports”, e do suplemento Plug, do
“Correio da Manhã”. Além das clássicas (“Minha senhora”, “Louvação”, “Três da
madrugada”, entre outras), há letras que os parceiros tiraram do baú e nunca
gravadas. Gilberto Gil e Caetano Veloso estão entre os que contribuíram com
redescobertas.
O melhor da nova fornada, entretanto, são as cartas trocadas
com Hélio Oiticica no início dos anos 70, quando o artista dos parangolés
estava em Nova York, ou melhor, em “Babylon”. Na confusão de duas cidades, na
correspondência entre dois mundos, encontra-se um painel saboroso da produção
cultural da época: os bastidores, as idéias, as disputas. Todo mundo andava
meio perdido, sem saber aonde ir, “quebração de cara geral”, resumia Torquato.
Sobram fofocas e achincalhes — a Gustavo Dahl, Nelson Motta
e Capinam, por exemplo. Oiticica escreve com afetação, é mais pródigo na
baixaria. A transa (gíria repetida em abundância por Torquato, hoje com sentido
mais determinado) de Torquato era sempre a busca da liberdade para o “lado de
dentro”, sem abandonar certa elegância, expressa em meio a todo o
coloquialismo. Suas fotografias não deixam as palavras mentir.
Todo dia era dia de libertação, dentro da cabeça e do país.
Mas a coisa ficou barra pesada, nos dois lugares, e ele não aguentou.
“Torquatália” confirma o talento múltiplo do jornalista, poeta, letrista, ator
e cineasta. Na maioria das vezes, artista inconcluso, como se algo nunca
pudesse ser efetivamente fechado. O suicídio é solução coerente com uma
vida-obra, mais do que idéias que são concebidas e transformadas em projetos
reais. Nem o jornalismo de Torquato conseguiu prender-se ao factual. Fez da
“Geléia geral” lugar-comum.
Faz sentido, então, perguntar: o que resiste da palavra
rabiscada nos cadernos de anotações ou do diário esboçado no Hospital
Psiquiátrico Pedro II? O que fica da frase datilografada? Rabiscos, esboços e
as marcas de tinta no papel-jornal são imagens que separam e unem as partes do
volume “Do lado de dentro”. Antecipam angústias contemporâneas com mais
brilhantismo do que outros companheiros de jornada na Navilouca tupiniquim,
talvez por conta de constante irracionalidade.
No dia 13 de novembro de 1971, pouco menos de um ano antes
de morrer, Torquato escreve: “a literatura, o labirinto perquiridor da
linguagem escrita, o contratempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. a
idade das massas, evidentemente, não comporta mais a literatura como uma coisa
viva e por isso em nossos dias ela estrebucha e vai morrer. a literatura tem a
ver com a moral individual e a moral individual não interessa — não existe
mais”. A crise ainda está aí, tal e qual o diagnóstico.
Se a literatura não resolve, cabe experimentar para todo
lado, com o risco da dispersão. Aconteceu com Torquato por necessidade vital
(ou o oposto disso), tem sido tentativa atual apenas dos que podem, por méritos
intelectuais e financeiros — normalmente juntos. Os que transitam entre as
artes têm sentido dificuldade por conta da imposição do rótulo, solicitado pela
mídia. A especialização, tudo o que não tem a ver com as transações de
Torquato, essa necessidade de foco de energia numa só coisa virou a moeda de
troca intelectual da qual o “anjo torto” procurou fugir desesperadamente.
Assim, a mais curiosa constatação de “Torquatália” é que
Tropicalismo e Tropicália parecem coisas passageiras diante de tantas outras
referências e atitudes. Nem merecem as maiúsculas, nesse caso. Essa ausência, o
próprio Torquato deve ter sentido. Abandonou o barco, foi “desafinar o coro dos
contentes” sem tribo, quase sozinho. Não dá mais para reduzir esse
multiprocessador de informações a um movimento manifesto. Além do valor de
relíquia, da recuperação de memória, os dois volumes têm o mérito do
estilhaçamento porque mostram como é difícil restringir Torquato, homem de
projetos inacabados. Daí a tarefa nobre e necessária da coletânea, porém
insuficiente por natureza.
Um ou outro deslize na edição, como a não referência à
gravação de “Mamãe, coragem” por Nara Leão em 1968, nem de longe prejudica o
trabalho de Paulo Roberto Pires, que assina ensaios introdutórios aos livros.
Por suas mãos, Torquato volta para nos alertar sobre a pasmaceira sem censura e
mercadológica que tomou conta do cenário cultural brasileiro, quando mais uma
vez começa a surgir a vontade de ir embora, quando a gente tinha tudo para
ficar. Sem medo de ser contente. “Aqui não tem nada, mas é a tal festa. Ninguém
se entende e o conformismo é geral: em ritmo de Brasil grande. Um inferno. Mas
eu continuo achando que não devo me apressar em nada. Quando as coisas
estiverem melhor arrumadas eu darei um pulo do lado de fora, ou farei logo o
filme, não sei”, escreve a Oiticica.
Torquato não foi grande crítico de música, mas agitou a
imprensa. Não deixou um livro publicado, mas se fez ouvir muito mais longe
(claro). Não montou o filme que havia rodado, mas deixou instruções para que se
pudesse fazê-lo. Tudo ao mesmo tempo agora, eis um lema pop e possível. Há quem
diga, afinal, que ele bolou um projeto de morte fazendo da própria vida a obra
no tempo. Sabe-se lá.
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