Ruth Barbosa Sampaio e
Jorge Álvaro Marques Guedes
Jorge Álvaro (*)
Morávamos na avenida Joaquim Nabuco, casa de nº 1.261,
próximo à Primeira Igreja Batista de Manaus, que ainda hoje recebe seus
frequentadores no mesmo endereço. Era o ano de 1960. As casas daquele
quarteirão ficavam com os fundos para a avenida Getúlio Vargas. Menino de três anos
de idade, entre curioso e extasiado, dependurado no muro de trás, assistia aos
trabalhos dos tratores e máquinas que cobriam as pedras daquela rua com o negro
asfalto da moderna urbanização que escurecia as cores da cidade.
Na tríplice esquina com a rua Tarumã, onde atualmente existe
um posto de combustível, havia um terreno baldio que servia para a realização
dos comícios políticos que aconteciam em época de eleições. Obviamente que
aquelas manifestações em nada se comparam com as de hoje, que tem a participação
de um considerável número de pessoas. Dali ouvi os primeiros xingamentos entre
políticos e seus correligionários. Lembro pelo menos do embate entre Plínio
Ramos Coelho e Paulo Pinto Nery, ou entre o Partido Trabalhista Brasileiro –
PTB e o Partido Social Progressista – PSP, isso na período pré-eleitoral para o
governo do Estado, em 1961.
Minha tia Maria, professora do Grupo Escolar Luizinha
Nascimento, que até hoje funciona no bairro da Praça 14 de janeiro, era
ferrenha defensora das ideias do “Dr. Paulo”. O primeiro foi governador do
Estado em dois mandatos, até sua cassação pelo governo militar em 1964,
sucedido por Arthur Reis e, o segundo, deputado federal, prefeito de Manaus e,
por último, vice-governador do Estado em 1978 na chapa de José Lindoso, do
Partido Democrático Social – PDS, assumindo o governo em pequeno período, de
1982 a 1983.
Naqueles anos 60, as residências recebiam costumeiras
visitas dos padres católicos, que sempre tiveram a missão de arrebanhar fiéis.
A nossa casa não ficou imune a isso. Aprendi a ler com cinco anos de idade. O
caminho inicial que me impuseram foi a cartilha “ABC dos Animais”. A letra “A”
era representada pela águia, a “B”, borboleta e por aí adiante, até chegar ao
“Z de zebra. Difícil para mim era o “D” de dromedário – que palavra horrível de
soletrar!
Voltemos à visita do padre. Não lembro ou não me foi dito o
seu nome. Deu-me o meu primeiro livro. Era um desses catecismos, onde estão
resumidos os dogmas e as orações da Igreja. Ao sair, com o olhar severo dos
mestres, disse que voltaria na semana seguinte, a fim de saber se eu havia
aprendido as orações do catecismo. Com o pavor de ser considerado um pecador,
cujo destino seria o fogo dos infernos, pus-me a decorar as orações do pai
nosso, ave maria e salve rainha, essa última a mais difícil para mim.
Na semana seguinte esperei pela visita, inutilmente. O
padre, ao que parece, morreu ou acreditou que eu sucumbiria sob o seu já dito
olhar severo de mestre. Até hoje, ou pelo menos até mudarmos para outro endereço,
jamais retornou, frustrando o que deveria ter sido a minha primeira prova oral.
Com a leitura já fácil, lia tudo que me chegava às mãos ou
aos olhos, dos livros de bolso ou fotonovelas, preferidos de minha mãe, até aos
nomes dos poucos ônibus que circulavam na cidade. Alguns dos livros sofriam a
censura materna e eram escondidos debaixo do colchão da cama, mas eu, sabendo
de tal esconderijo, várias vezes burlei a legislação doméstica para entrar no
mundo da fantasia, imaginando os personagens de cada uma das histórias e
criando suas fisionomias.
Até hoje acho que o leitor é um eterno cúmplice do escritor,
pois é ele quem faz o “acabamento” de cada um dos personagens, dando novas
feições a eles e até modificando mentalmente o que já possa ter sido criado. Se
hoje a facilidade tecnológica nos traz em segundos tudo o que possa ser lido,
imaginem a dificuldade de acesso para os leitores daquela época. Pra mim, a
salvação da lavoura foi a pequena biblioteca da tia Maria, uma estante de
madeira que deveria conter cerca de cem livros.
Lá encontrei Machado de Assis, com Dom Casmurro, Jorge Amado
e os seus Subterrâneos da Liberdade, Érico Veríssimo com O Tempo e o Vento e,
quem diria, O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, dentre outros. Como era bom
ler todos. Do colchão da cama, as inesquecíveis fotonovelas italianas das
revistas Capricho, Ilusão, Noturno, os gibis X-9 e os livros de bolso das
histórias do faroeste americano. Não encontrei nenhum Schopenhauer ou
Nietzsche, a quem só fui apresentado décadas depois.
(*) Jorge Álvaro é desembargador do Tribunal Regional do
Trabalho e fundador da Banda Independente Confraria do Armando (BICA)
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