Por Cezário Camelo
Estiquei as férias por tanto tempo, que resolvi voltar
sacaneando. Não peguei nenhum ataque terrorista do Estado Islâmico, mas, em
compensação, visitei tantos sebos de vinil na Europa que estou de pick-up duro.
No bom sentido, de fora pra dentro. Pessoas sensíveis, go home. Pessoas
brutalizadas, fuck off. Pessoas mais ou menos, go ahead. Vou falar sobre as
bolachas que ouvi, curti e afanei espiritualmente, e gostaria que os cachorros,
gatos e periquitos fossem postos pra fora da sala. Eles não vão entender o
espírito da coisa. E de espiritismo, entendemos nós.
Nos Estados Unidos, ela é chamada de mood music, música
ambiente. Na Inglaterra, de light music, música ligeira. No Brasil,
grosseiramente, de música de elevador. Grosseira e injustamente porque, hoje em
dia, só os melhores elevadores continuam oferecendo música a seus usuários.
Mas, para quem despreza o que se escuta neles, considerando-o o epítome da
caretice, ainda veremos o dia em que os elevadores tocarão The Who, Pink Floyd
ou Skank - embora, quando isso acontecer, eu pretenda estar absolutamente morto
e enterrado (desculpem o pleonasmo... machuquei alguém?). Cedo ou tarde, o
destino de toda espécie de música é o elevador, o consultório do dentista e o
toque do celular. Tom Jobim já está em todos eles, assim como Ary Barroso, Cole
Porter, Paul McCartney e Beethoven, e isso não os tornou menores.
Que espécie de música é essa – quase toda produzida nos anos
60 – que une os jazzistas, roqueiros e eruditos num desprezo comum? O que a
define? Digamos que ela seja uma diluição suavizada de certas formas musicais
que, em sua versão original, seriam muito barulhentas ou complicadas para se
ouvir quando se quer apenas relaxar. Imagine subir 30 andares ouvindo Air Mail
Special, de Lionel Hampton, com a orquestra do próprio a todo pano, ou fazer um
tratamento de canal ao som da Cavalgada das Valquírias, de Wagner, regida por
Stokowsky. O suicídio não seria uma má idéia. Mas, se for uma Air Mail Special
adocicada por Jonah Jones ou uma Cavalgada domada por Mantovani, tanto os
vácuos e solavancos do elevador quanto a broca do dentista serão quase
imperceptíveis. Se a música serve para tudo, por que não pode servir também
para zerar angústias? E por que a música explicitamente agradável se tornou
tabu?
Nos últimos tempos, nos Estados Unidos e na Inglaterra, o
conceito se expandiu e esse tipo de música passou a ser agrupado nas lojas sob
uma nova categoria, chamada easy listening. Significa toda espécie de música
popular que não seja jazz, rock ou um corpo estranho chamado world music. Bem,
considero também ofensiva essa marota classificação de easy listening – porque
dá a entender que, se ela é fácil de escutar, foi também fácil de fazer. O que
não é verdade – ao contrário de 50% do jazz e de 100% do rock disponíveis na
praça, fáceis de fazer e duríssimos de escutar. Além disso, easy listening
sugere um tipo de música que, se por acaso estiver ao alcance das suas orelhas,
tanto faz que você esteja ou não prestando atenção, porque ela não irrita nem
acrescenta.
Pois eis aí outra definição preconceituosa. Qualquer tipo de
música pode ser escutado com um ouvido só e, nesse caso, não nos acrescentará
nada – seja Villa-Lobos ou Abílio Farias, para ficar nos extremos. Mas suponha
agora que exista uma grande quantidade de mood music que mereça ser escutada
com atenção. A prova está numa série de extraordinários lançamentos importados,
trazendo de volta orquestras e conjuntos que, com todo o apelo comercial,
produziam música de espantosa qualidade e beleza.
Uma dessas orquestras, por exemplo, tinha como arranjador e
regente nada menos que o compositor clássico e maestro Morton Gould. Seu disco,
Blues in the Night, gravado em 1957 na RCA Victor, dá um caráter tão majestoso
a temas como Birth of the Blues e Mood Indigo que, hoje, é difícil acreditar
que possa ter sido gravado para servir de fundo musical a ouvintes distraídos.
O mesmo se aplica a Easy Jazz, com a orquestra de Paul Weston (enriquecida por
solistas como o trompetista Ziggy Elman, o pianista Paul Smith e o guitarrista
George Van Eps), num repertório que inclui Body and Soul, Georgia on my Mind e
My Funny Valentine. Weston morreu há cinco anos, aos 84 anos, respeitado como
um dos maiores arranjadores do século por sua delicadeza para combinar cordas e
metais.
E, até que enfim, os discos de Jackie Gleason renascem em
CD. Gleason, mais conhecido no Brasil como ator (era o gordo que perseguia Burt
Reynolds nos filmes da série Agarra-me Se Puderes), foi uma potência da música
americana nos anos 50 – sem tocar qualquer instrumento e sem ler uma nota de
música. Os discos de sua orquestra vendiam-se aos milhões: eram ótimos para
dançar, ouvir ou criar climas para coisa mais séria entre um homem e uma
mulher. E como Gleason conseguia isso? Com sua tremenda musicalidade intuitiva,
orientando seus arranjadores para o tipo de som e de andamento que queria – o
que ele fazia cantarolando e regendo naipes imaginários com um cigarro como
batuta. Se você quiser ouvir para crer, a pedida é Velvet Brass - How Sweet It
Is, na verdade muito mais swing que sweet.
O humorista americano Ambrose Bierce, autor do Dicionário do
Diabo, chamou o acordeon de “um instrumento com os sentimentos de um
assassino”. Mas isso é porque ele nunca ouviu seu compatriota, o acordeonista
Art Van Damme, nascido em 1920. Van Damme praticamente introduziu o acordeon no
jazz e, por volta de 1950, influenciou adivinhe quem no Brasil: João Donato.
Depois de décadas esquecido, alguns de seus discos antigos estão saindo no
Japão e na Alemanha – alguns deles, Martini Time e State of Art. Os quase
surdos os rotularão de música para coquetel, pelo pecado de serem de audição
agradabilíssima. Mas vá tentar fazer o que ele faz.
Art Van Damme está para o acordeon como um xará seu para o
piano: Art Tatum. E um de seus mais deliciosos contemporâneos também foi
redescoberto: o pianista Page Cavanaugh. Entre outras coisas, o trio de
Cavanaugh foi a principal influência do conjunto vocal carioca Garotos da Lua,
cujo crooner em 1951 chamava-se João Gilberto. Depois, como pianista, ele seria
o acompanhante ideal de Doris Day e Frank Sinatra. Pois Cavanaugh foi posto
para gravar de novo e o resultado, até agora, são dois lindos discos chamados
The Digital Page (Page One e Page Two).
A grande sensação, no entanto, é a série de 12 CDs
individuais da Capitol intitulada Ultra-Lounge, contendo o máximo do repertório
de mod music desta gravadora nos anos 50 e 60. É a absoluta volta a um tempo em
que o homem se vestia inteiro para levar uma mulher a uma boate ou para
recebê-la em seu apartamento. E essa mulher, naturalmente, exorbitava em seus
decotes, sedas e no vermelho do batom.
Homens e mulheres equipavam-se para seduzir e a música era
parte importante nesse jogo. Cantores e orquestras eram movidos a hormônios na
tentativa de estabelecer uma atmosfera densa e sensual. A música podia ser
americana, latina, francesa ou com toques negros - mas era sempre dançante,
sensual e envolvente, ideal para preliminares elegantes. Ir para a cama com
alguém devia ser uma batalha naquele tempo, mas, até chegar lá, as mulheres não
se queixavam de falta de romantismo.
É esse o clima passado pelos CDs desta série, como Bachelor
Pad Royale, Rhapsodesia, Cocktail Capers, The Crime Scene, A Bachelor in Paris,
Cha-Cha de Amor e os outros. Cada um deles tem 18 faixas, estreladas por
grandes nomes como Nelson Riddle, Bobby Darin, Billy May, Jonah Jones, Ray
Anthony, Dean Martin, Leroy Holmes, Peggy Lee, Perez Prado, Julie London, Cy
Coleman, Sam Butera, Les Baxter, etc etc.
Grandes sons – arranjos fabulosos, que induzem um casal a
sair dançando lentamente em direção ao leito ou que, no caso dos mais tímidos,
também permitem grandes momentos de mãos dadas no sofá da sala. Se este for o
seu caso, não se torture: esta é uma música que também pode perfeitamente ser
apenas escutada. Eu, por exemplo, quero ouvir com a Hedôzinha colocando a boca
no meu trombone de vara. Se é que me entendem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário