Conheci a advogada Débora Sávia na “Casa do Veraneio”, da
Gracionei Medeiros, em meados dos anos 90, e, depois de alguns minutos de
conversa, soube que ela era uma das filhas do saudoso professor, pesquisador,
escritor e folclorista José Silvestre do Nascimento e Souza, o responsável por
ter trazido a ciranda de Tefé para Manaus. A advogada me apresentou ao seu pai.
Em uma das inúmeras conversas que tive com ele, Silvestre me
contou a seguinte história:
Março de 1963. Professor de Português do Colégio Comercial
Sólon de Lucena, em Manaus, Silvestre era um guapo de pouco mais de 30 anos
oriundo de Tefé. Ele havia deixado o torrão natal para continuar seus estudos
superiores na capital como era prática comum entre muitos jovens nascidos no
interior.
Um dia, ele foi chamado na sala da diretoria pelo diretor
Bartolomeu Dias de Vasconcelos.
– Silvestre, você conhece algum cordão folclórico desses que
se apresentam ao público por ocasião das festas juninas? – indagou o diretor.
– Conheço vários deles, inclusive alguns que ainda não se
apresentaram aqui em Manaus, como o Papagaio Verde, a Ciranda, o Barqueiro, a
Pomba e o Bem-te-vi – respondeu Silvestre. – Todas essas brincadeiras eram
apresentadas pelos meus familiares na cidade de Tefé, onde nasci!
– Que bom, meu amigo, que bom! Me diz uma coisa: você quer
cooperar com o nosso colégio, montando um desses cordões folclóricos da sua
terra natal, que você deve conhecer de cor e salteado? – insistiu o diretor.
– Quero sim, mas desde que possa contar com o seu apoio
total e sua irrestrita colaboração! – devolveu Silvestre.
– Está certo, podes contar comigo e com os demais
professores do colégio! – encerrou Bartolomeu, dispensando o professor.
Silvestre recrutou os músicos, escolheu os alunos e começou
a ensaiar um cordão folclórico na quadra da escola.
Dois meses depois, ele foi chamado às pressas na sala da
diretoria do colégio, onde se deparou com uma senhora quase discutindo com o
diretor.
– Este aqui é o professor Silvestre, madame! – disse
Bartolomeu.
Sem perda de tempo, a mulher soltou logo os cachorros:
– Foi ele que faltou com o respeito com a minha filha! Foi
ele! Foi ele!
Silvestre quase caiu para trás. Apesar de jovem e boa-pinta,
ele era decente e íntegro até a medula. Não havia nenhuma hipótese de o
professor se envolver com alguma Lolita do colégio.
Como não tinha a menor ideia do que diabos estava
acontecendo, ele pediu para falar com a suposta “vítima”. Bartolomeu mandou
alguém chamar a garota.
Daí a pouco entrou na sala uma menina loura, de
aproximadamente 11 anos, que era uma das melhores alunas do professor.
– Minha filha, eu lhe faltei com o respeito em algum momento?
– questionou Silvestre.
– Não, professor, acho que foi a mamãe que não entendeu
direito! – explicou a garota. – Na semana passada, nós estávamos almoçando em
família, eu, papai, mamãe e meus irmãos. Aí, ao terminar o almoço, eu me dirigi
à mamãe e fiz um pedido: “Mamãe, a senhora deixa eu dançar na Pomba do
professor Silvestre?...” A mamãe arregalou os olhos, ficou branca como uma
defunta, quase teve um troço e, na mesma hora, me colocou de castigo!
– A sua filha tinha razão de lhe fazer aquele pedido, minha
senhora! – esclareceu Silvestre. – A Pomba é um cordão folclórico que estou
ensaiando no colégio a pedido do diretor, mas os brincantes têm de pedir
autorização de seus responsáveis para participar da brincadeira. Se a senhora
quiser pode aguardar alguns minutos até a hora do recreio, quando realizarei o
ensaio com as crianças, para a senhora ver pessoalmente que não tem nada de
extraordinário na dança... É apenas uma brincadeira do folclore de Tefé, como a
Dança do Corrupião e a Dança do Papagaio Verde!
Ainda contrariada, a mulher questionou:
– Por que, então, o senhor não muda o nome do cordão para
Dança do Pombo? Fica menos escandaloso... Dançar na Pomba, convenhamos, soa
meio pornográfico...
– Vou pensar seriamente no seu caso, minha senhora! – avisou
o professor, se despedindo e indo cuidar de seus afazeres.
Depois do terceiro ensaio, para evitar novas aporrinhações,
Silvestre resolveu parar de ensaiar a Dança da Pomba e começou a ensaiar a
Dança da Ciranda (que se tornou conhecida como “Ciranda de Tefé”), contando com
a colaboração de dois conterrâneos tefeenses, Ambrósio Ramos Correa e Gaudêncio
Gil.
O resultado foi a criação de um dos mais bonitos e
aplaudidos cordões folclóricos de todos os tempos, que ganhou o Festival
Folclórico de Manaus daquele mesmo ano.
A segunda ciranda
criada em Manaus foi a da escola Senador Lopes Gonçalves, que participou do
Festival Folclórico de 1965.
Nos anos 70, foi criada a Ciranda do Ruy Araújo, na
Cachoeirinha, que se tornou a maior campeã da história do Festival Folclórico
do Amazonas de todos os tempos.
Para se ter uma pálida ideia, somente sob a presidência de
Adelson Cavalcante, o “Adelson da Ciranda”, a Ciranda do Ruy Araújo conquistou
12 títulos consecutivos e é até hoje a única Supercampeã do Festival por ter
obtido, em uma das edições, mais pontos do que todos os demais conjuntos
campeões das diversas categorias.
A Ciranda do Ruy Araújo continua em plena atividade até os
dias de hoje e costuma realizar seus ensaios na quadra do GRES Andanças de
Ciganos.
No início dos anos 80, sob a orientação do próprio
Silvestre, a professora Perpétuo Socorro de Oliveira levou a brincadeira para
Manacapuru, montando a ciranda Flor Matizada na Escola Estadual Nossa Senhora
de Nazaré.
O sucesso foi imediato e, rapidamente, duas outras escolas
entraram na brincadeira: a Escola Estadual José Mota, que criou a ciranda
Guerreiros Muras, e a Escola Estadual José Seffair, com a sua Ciranda
Tradicional.
Em 1997, o prefeito de Manacapuru, Angelus Figueira,
organizou o 1.º Festival de Cirandas do município, dando um caráter competitivo
às apresentações, o que proporcionou um verdadeiro salto de qualidade na
brincadeira.
O resto, conforme se diz, é história.
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