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sexta-feira, outubro 09, 2009

Histórias de alguns velhos camaradas


No Amazonas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), também conhecido como Pecezão ou Partidão, foi fundado por pessoas humildes ligadas, basicamente, ao movimento operário. Entre os fundadores, meia dúzia deles se destacava pela coragem quase suicida e pelo apreço dedicado ao ideário marxista: Romeu Pimenta (guarda-livros), Belarmino Marreiro (barbeiro), Luís Capinha (sapateiro), Maria Pucu (doméstica), Geraldo Campelo (bancário) e Juca Moveleiro (carpinteiro).

Como em grande parte de sua história o partido sempre esteve na ilegalidade, as reuniões eram fechadíssimas e havia uma espécie de dispositivo paramilitar para garantir a integridade física dos militantes.

Numa das reuniões, logo depois do golpe militar de 64, o partido discutia a necessidade de executar ou não algumas tarefas de “agit-prop” (“agitação e propaganda”) contra o regime dos generais, ou seja, pichar muros, distribuir panfletos, fazer discursos relâmpagos em pontos de ônibus e por aí afora.

A velha-guarda (Romeu, Belarmino, Capinha, etc.) insistia que o partido tinha que enfrentar o poder militar, nem que fosse para marcar posição. Os novos militantes (Antenor Caldas, Paivinha, Felix Valois, etc.) pediam mais moderação porque vários camaradas já haviam “caídos” (sido presos), a repressão estava monitorando o movimento de todo mundo e era melhor dar um tempo até a poeira baixar.

Belarmino Marreiro pediu a palavra:

– Camaradas, essa proposta de imobilismo está me cheirando a reacionarismo...

Romeu Pimenta não tergiversou:

– Reacionarismo, uma ova! Isso está me cheirando mesmo é a cu-frouxismo !

E a própria velha-guarda se encarregou de fazer as tarefas de “agit-prop”.

2

Depois de uma disputa ferrenha pela direção do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação, Edson Padeiro, militante de base do PCB, conseguiu vencer a eleição e toda a velha guarda do partido foi prestigiar a posse do novo dirigente sindical.

Com a Casa do Trabalhador lotada de militantes, simpatizantes e aderentes, e os dirigentes comunistas babando de orgulho do seu novo líder operário, Edson começou seu inflamado discurso de posse:

– Companheiros e companheiras, meus camaradas e minhas camaradas, os pelegos que controlavam o sindicato passaro o tempo todo nos xingando, nos ofendendo e nos chamando de comunista. Pois eu quero dizer o seguinte: comunista são eles, que deixaro nossas crianças morrer de fome, que deixaro nossos companheiro ser demitido sem justa causa, que se vendero para os patrão. Eles é que são comunista, porque nunca lutaro pelos interesse do trabalhador, porque sempre chamaro a polícia pra bater nos grevista, porque sempre fizero o jogo da burguesia. Eles, esses cabras safados, é que são os verdadeiro comunista!

O secretário-geral do PCB, Geraldo Campelo, que ouvia o discurso na primeira fila, quase teve um troço.

3

Nos anos de chumbo, a cooptação de novos militantes para o Partidão era sempre motivo de dor de cabeça. Como o partido estava na ilegalidade, a questão da segurança dos militantes beirava a paranóia. As reuniões eram feitas em aparelhos (locais clandestinos, só conhecidos pela alta cúpula) e o horário tinha de ser cumprido religiosamente.

A quebra do horário preestabelecido era um indicativo claro de que o aparelho havia caído, ou seja, havia sido descoberto pelas forças de repressão, e a ordem era evacuar o recinto no menor espaço de tempo possível.

Encarregado de levar um novo militante à sua primeira reunião clandestina, Guilherme Leal se atrasou além do esperado, o que provocou pânico entre os dirigentes e a desmobilização imediata do aparelho.

Na reunião seguinte, Guilherme fez uma mea-culpa e contou o motivo do atraso:

– Camaradas, eu vinha me aproximando do aparelho, quando um gato preto cruzou o meu caminho. Aí eu me lembrei que era uma sexta feira treze. Procurei minha figa-de-guiné no bolso, não estava. Abri a carteira para ver se estava com o galhinho de arruda, também não estava. Resolvi, então, contornar o quarteirão para me proteger dos maus eflúvios e não cruzar com o caminho do gato preto, mas quando cheguei no aparelho os companheiros já haviam ido embora.

O secretário-geral, Geraldo Campelo, não escondeu a irritação:

– Camarada, você há de convir que não fica bem colocar em risco a segurança dos companheiros por causa de uma superstição idiota como essa. Nós somos materialistas dialéticos, o nosso marxismo é científico. Nós temos um papel de vanguarda na revolução socialista e não podemos ficar preso a este tipo de irracionalismo da Idade Média. Portanto, companheiro, na próxima vez que um gato preto cruzar na sua frente, dê três batidinhas na parede e siga em frente, que a revolução não pode esperar.

4

O PC do B estava precisando arrecadar fundos de campanha e o presidente do partido, Eron Bezerra, organizou uma feijoada cívico-partidária no clube Nostalgia.

Os tarefeiros do partido se encarregaram de vender os ingressos e no dia combinado havia uma multidão de pessoas reunidas.

Ficou claro que a feijoada não ia dar pra todo mundo e os organizadores começaram a seguir o conselho do Chico Buarque: “vamos colocar mais água no feijão”.

Na hora de servir, haja capricho no caldo de feijão, na farofa e na couve picada e haja economia na carne de porco, no chouriço e na calabresa.

O jornalista Deocleciano Souza, que já havia tomado todas, entrou na fila onde estavam servindo a feijoada e estranhou quando a militante Selma Barsal (hoje professora universitária) encheu sua bandeja de arroz, couve picada e farofa, e depois despejou em cima uma mísera concha de caldo de feijão.

Nem sombra de calabresa, toucinho ou mocotó.

Deco não gostou. Apontando para um panelão, ele chamou a comunista à responsabilidade:

– O que é isso, companheira? Examine direito naquela panela ali e verifique se não sobrou pelo menos um pezinho de criança...

Selma Barsal ficou tão indignada que quase meteu a concha na cabeça do jornalista.

Naquela época, no inicio dos anos oitenta, os comunistas já haviam abandonado a prática de comer criancinhas.

5

Em 1975, um dirigente nacional do PCB, Sebastião Paixão, chegou a Manaus, para participar de uma “reunião ampliada” do partido num sítio clandestino existente no km 23 da estrada Manaus-Itacoatiara.

Nas reuniões ampliadas, iam militantes das diversas bases comunistas que, graças ao rigoroso sistema de segurança do partido, não se conheciam entre si – eles eram conhecidos apelas pelos principais dirigentes.

Em virtude de ser proprietário de um pequeno caminhão caindo aos pedaços, Juca Moveleiro ficou encarregado de levar um dos grupos ao local do encontro.

No dia combinado, Juca passou nos diversos “pontos” (locais secretos, combinados apenas entre os dirigentes comunistas e cada um dos militantes), apanhou cerca de doze pessoas e as distribuiu pelo caminhão.

Precavido, e para dar maior credibilidade à “fubica”, também colocou várias toras de madeira na carroceria do veículo.

Se desse algum galho com a polícia, eles argumentavam que eram carpinteiros, moveleiros e marceneiros, e se safavam numa boa.

Até a saída da cidade, a viagem prosseguiu normal, apesar de ninguém conversar com ninguém, pois todos eram desconhecidos entre si e nem sequer sabiam para onde o caminhão estava se dirigindo.

Aquilo era uma tarefa do Partidão, e tarefa não se discute, se cumpre e pronto.

No posto da Polícia Rodoviária, o caminhão foi parado e aproximaram-se vários guardas da Polícia do Exército portando metralhadoras. Começou a bater a tremedeira.

Um guarda rodoviário pediu os documentos, e enquanto conferia os dados, um outro guarda dava uma volta completa em torno do caminhão, observando atentamente o veículo.

Depois, os dois se afastaram um pouco, conversaram demoradamente e um deles voltou a se aproximar da boléia, onde Juca Moveleiro estava suando frio.

– Sinto muito, mas vocês estão detidos. O caminhão está irregular.

Juca Moveleiro sentiu o chão se abrindo aos seus pés. Ele havia “caído”, e o que é pior, com doze companheiros inocentes.

O outro guarda rodoviário se aproximou.

– O problema está nas toras de madeira. Para andar com toras de madeira na carroceria, tem que ter uma bandeira vermelha, de sinalização. Se vocês colocarem a bandeira vermelha, a gente libera vocês, sem problemas.

Juca Moveleiro, que estava com uma palidez cadavérica, só faltou beijar os pés dos guardas.

Em dois minutos apareceu um lenço vermelho, que foi logo improvisado em bandeira, e hasteado, com toda pompa e circunstância, na traseira do caminhão.

E os comunistas, agora devidamente “identificados”, puderam prosseguir em sua viagem para o sítio clandestino, onde haveriam de preparar a revolução.


6

Em 1985, os comunistas organizaram na Praça de São Sebastião um mega showmício para comemorar a legalização do PCB.

Como convidado de honra, levaram para a festa o barbeiro Belarmino Marreiro, verdadeiro tyranossaurus rex do Partidão, e outros ícones da velha guarda: Luís Capinha, Geraldo Campelo, Maria Pucu, Félix Valois, Paivinha e Juca Moveleiro.

Já castigado pela idade e com problemas de catarata nos olhos, Belarmino ficou sentado numa cadeira de macarrão, em um dos cantos do palco, tendo como guardiões o advogado Laerte Aguiar e o professor universitário Carlos Gomes.

Centenas de pessoas se comprimiram na praça e as dezenas de facções internas do partido disputavam a tapa o melhor lugar para hastear suas bandeiras, faixas e mensagens.

Comandado pelo artista plástico Roberto Cravo, um grupo de militantes não parava de gritar, requebrar e balançar uma chamativa faixa de cetim negro com palavras de ordem na cor dourada.

A faixa chamou a atenção do velho comunista, que pediu a Carlos Gomes para traduzir o que estava escrito. O professor não se fez de rogado:

– Está escrito “O PC Gay saúda a legalização do poderoso Partidão e pede passagem!”. Aquela moçada ali é formada exclusivamente por comunistas gays.

– E o que quer dizer gay? – quis saber Belarmino.

– Gay quer dizer viado! – explicou o jornalista Deocleciano Souza, que acompanhava a conversa a distância.

– Mas no partido já tem disso? – exasperou-se o velho.

– É a modernidade! – ironizou Deocleciano.

– No meu tempo, esses sujeitos iam se modernizar nos campos de concentração da Sibéria! – devolveu o velho comunista.

– Não liga pra isso não, Belarmino! – entrou na conversa Félix Valois. “Isso é coisa de meia dúzia de pequenos burgueses querendo chocar a nossa velha guarda. Como o partido agora é legal e está aberto pra todo mundo, eles resolveram sair do armário. São viados, mas são progressistas”.

Conservador até a medula, o velho comunista saiu do sério.

– Olha, Laerte, me tira daqui e me leva pra casa! Eu quero lá saber dessa sem-vergonhice! Não foi pra isso que a gente pegou tanta porrada da polícia! Viados? Quer dizer que agora tem viados no partido? Eu não acredito! Viados? Égua, onde já se viu uma barbaridade dessas? Viado não tem firmeza moral para agüentar tortura, meu filho, eles fofocam muito, não guardam segredo, são tudo uns frouxos! Puta que pariu, meu filho, se eu soubesse que ia acontecer essa esculhambação, tinha saído do partido enquanto ele estava na clandestinidade. Me leva pra casa! Me leva pra casa!

E Belarmino deixou o palanque amaldiçoando bicharada comunista.

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Simão
Eu navegando pela internet, não sei porque acabei entrando no seu blog e me deparei com a historia dos comunista da velha guarda e vi os nomes de meus padrinhos, Geraldo Campelo e Maria Pucu, que me criaram e moravam ali na Av. Manicoré -Cachoeirinha, a onde nasci e me criei , junto com meus irmãos, eu mesmo na minha juventude eu não via futuro na opção de meus padrinhos, e assistir o dia em que a policia comandada pelo Naldo barbosa, entrou de casa a dentro e prendeu o Geraldo, a Minha Madrinha Maria Pucu, conseguiu ir para nossa casa que era em frente a redidencia dela, e la em casa não tiveram como entrar, pois os meganhas fiaram com o´pé atras, pois fizemos a grande barreira, eu, meus irmãos, e mais aquela turma do Pompeia, todos pretos que naquela epoca impunha respeito, O negão ( ex-goleiro do fast ) fizemos pressão e a madrinha maria não foi....mais o Geraldo foi preso, ficou ali na Penitenciaria, hoje Raimndo Vidal, passei muito tempo indo aqui da cachoeirinha ao presidio levar o almoço dele, que pelo menos aquilo podia.Hoje eu vejo muitas pessôas falando na ditadura, gente que nunca nem participou, eu pelo menos conheço que enfrentou a parada......até o Luiz Santana, sapateiro, que era um ilusionario, e hoje não vemos ninguem falar nesse pessoal da antiga
Abraços
Edmilson