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sábado, outubro 17, 2009

Palavra de índio!


1
Em 1995, uma epidemia de cólera na aldeia Belém do Solimões, em Tabatinga, vitimou nove tikunas.

A Equipe de Saúde Indígena (Esai) da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) esteve no local e constatou que os índios consumiam as águas sujas do rio Solimões, sem nenhum tipo de tratamento.

Análise feita na água dos igarapés que cortavam a aldeia atestou que eles também estavam contaminados pela bactéria intestinal chamada escherichia coli.

Crianças com até cinco anos de idade eram as maiores vítimas da diarréia aguda provocada pela bactéria. Havia mais de 60 curumins com a doença.

Localizada num platô, tendo pela frente o rio Solimões e na parte de trás um pântano semelhante aos Everglades, da Flórida, a aldeia Belém do Solimões possui 3 mil tikunas que vivem, basicamente, da pesca.

É impossível produzir qualquer coisa, além de mosquitos da malária, naquele chavascal fedorento.

Os técnicos da Funasa prometeram colocar um poço artesiano no local, aplicaram o tratamento básico de água de superfície nos igarapés, ensinaram os tikunas a colocar hipoclorito de sódio na água para consumo humano e tomaram chá de sumiço. Nunca mais voltaram na aldeia.

Em julho de 1998, o candidato a governador pela oposição, Eduardo Braga, acompanhado do seu pequeno Exército de Brancaleone (o deputado Joaquim Corado, os vereadores Ari Moutinho, Bosco Gomes e Chico Preto, o levantador de toadas Arlindo Jr., o advogado Julio Pinheiro e o jornalista Eduardo Gomes), encostou o barco de campanha no porto de Belém do Solimões e foi recebido por um bando de tikunas de cara fechada. Há três anos eles aguardavam pela desforra.

Mal a comitiva subiu o barranco e colocou os pés na aldeia, o cacique deu logo a decisão:

– Sifô pra mintí, pode imbora...

Cinquenta guerreiros armados de bordunas cercaram os intrusos. Eduardo Braga tomou um susto. Foi um custo convencer o cacique de que ele não tinha nada a ver com a epidemia de cólera e diarréia que atingira a aldeia.

Os culpados eram o presidente Fernando Henrique Cardoso, que havia reduzido o orçamento da Funai para combater o déficit público, e o governador Amazonino Mendes, que abandonara os índios à própria sorte. Eles dois, explicou Eduardo, eram candidatos à reeleição.

Para mudar aquele estado de coisas, os tikunas teriam que votar nos candidatos da oposição: Eduardo pra governador e Lula pra presidente.

O cacique ouviu calado as ponderações do candidato e deu a decisão:

– Tikuna nué iguá branco, qui mente. Tikuna tem palavra. Nós vai votá nupusição. Vai votá sim.

Em setembro, Eduardo voltou à aldeia para garantir definitivamente os 1.235 votos tikunas. Ficou surpreso ao perceber um verdadeiro carnaval no platô, motivado por um pequeno trator (“jerico”) pilotado desajeitadamente por um tikuna.

Havia dezenas de índios encarapitados no veículo e uma multidão acompanhava aos gritos as idas e vindas do jerico pelas ruas da comunidade.

– Que diabo é isso? – questionou Eduardo, divertido.

– Ah, prisente do governadô Mazonino – explicou o cacique. “É do Tecero Chico. Veio junto furno de manioca pra fazê farini e antene pirabólica...”

– Mas vocês vão usar o trator aonde? O solo aqui não serve pra agricultura... – insistiu Eduardo.

– Vamo usá qui mermo. Só passeio. Aldeia gosta, curumim brinca, todo mundo alegri. Bom, muito bom – contra-argumentou o cacique.

– De qualquer forma, aquele nosso acordo ainda continua de pé, não é não, cacique? – desesperou-se Eduardo.

– Tikuna nué iguá branco, qui mente. Tikuna tem palavra. Nós vai votá no Mazonino e Frando Irriki. Vamo votá sim.

Eduardo deixou a aldeia bufando de raiva. Quando as urnas foram abertas, Amazonino e FHC obtiveram 90% dos votos da aldeia. Tikuna tem palavra.

2
Quase um mês depois, ainda ressabiado pela desfeita do cacique, Eduardo levou um susto quando o deputado Joaquim Corado o convidou para um encontro com os capitães tikunas da aldeia Campo Alegre, em São Paulo de Olivença.

– Não vou perder meu tempo lá não, Corado. Não quero mais papo com esses índios!

– Mas lá vai ser diferente – avisou o deputado. “Campo Alegre e Betânia são as duas principais comunidades de índios batistas do Solimões”.

– E daí?... Eu estou atrás de votos, não estou atrás de oração – explodiu o candidato, que já estava com os nervos à flor da pele.

Eduardo Braga acabou sendo convencido pelo argumento definitivo do vereador Bosco Saraiva, candidato a deputado federal:

– Porra, Dudu Nobre, pra quem já está no inferno, não custa nada dar um abraço no Diabo... Vamos lá, meu brother!

Depois de seis horas de voadeira, a comitiva chegou a Campo Alegre. A aldeia estava de ponta-cabeça. Índios brigando, índios discutindo, índios vomitando, índios tropeçando nos arbustos e se arrebentando no chão. Um verdadeiro inferno.

O contato do deputado Corado, um dos capitães da tribo, foi recepcionar a comitiva, completamente desolado:

– Discupa, deputado, num dá pra fazê reunião hoje não. Hoje é domingo, tá todo mundo truvisco. Tão até o tucupi de pajauaru. Mas pode deixá que nós vai votá em vocês...

Puto da vida, Eduardo não quis nem provar do pajauaru (cachaça feita de mandioca fermentada) oferecido pelo capitão. Aboletou-se na voadeira e tocou de volta para Tabatinga.

Quando as urnas foram abertas, Bosco, Corado, Eduardo e Lula, obtiveram 90% dos votos da aldeia. Tikuna tem palavra.

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