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sexta-feira, outubro 02, 2009
Recordando o Woodstock brasileiro
A revista Tpm (também conhecida como “Trip da mulherada”) de setembro publicou uma matéria interessante sobre o Festival de Águas Claras, do qual eu mesmo nem me lembrava mais – apesar de tê-lo acompanhado por meio da revista Geração Pop, que colecionava.
Pelo menos nesse quesito, os manauaras foram pioneiros. Enquanto o Festival do Lixo rolou no mesmo ano do Festival de Woodstock, o Festival de Águas Claras só aconteceu seis anos depois. Mas até hoje é considerado o “Woodstock canarinho”.
O texto é da jornalista Luara Calvi Anic, diretamente de Iacanga. As fotos da matéria fazem parte do arquivo pessoal de Carlos Alberto de Carvalho Maria, Giséle Calvi Anic, Leivinha, Mário Thompson, Mauro Scarpinatti, Sétima Lua, Susi Tavares, Victor Gottez, Viviane Xavier Sacramento e Zé Brasil.
Se você participou dos festivais, o documentaristas Thiago Mattar está interessado na sua história. Entre em contato pelo e-mail memoriafestival@hotmail.com.
Mas chega de lenga-lenga e deliciem-se com a matéria da Luara:
O Festival de Águas Claras não existiu. Pergunte àquela tia riponga e ela vai te contar. Ou não. Aos moldes do Woodstock, cada uma das quatro edições reuniu mais de 30 mil pessoas sem memória.
“Pra fazer esta matéria você vai ter que escavar as camadas mais ancestrais da cabeça de quem for entrevistar. É um tema apagado da memória pela cannabis”, acredita a atriz Marisa Orth. Ela esteve lá e preservou a lembrança. Mas muita gente não lembra do que viveu ali. E quem não foi, pouco ouviu falar.
Aos 16 anos, Marisa era virgem e não tinha escolhido ser bicho-grilo. Topou acompanhar a prima num show de três dias e, sem nunca ter montado uma barraca, partiu para a cidadezinha de Iacanga, a 376 quilômetros de São Paulo, onde aconteceu o festival.
Arnaldo Baptista, ex-Mutante, não tem ideia do que se passou lá. “Infelizmente o Arnaldo não tem nenhum registro e também não se lembra do que ocorreu”, avisou Lucinha Barbosa, sua esposa, por e-mail.
Acompanhando a banda Patrulha do Espaço, ele não conseguiu tocar. O músico passou exatas três horas em cima de uma árvore tocando flauta – jura de pé junto o iacanguense Nicolau Abdala Neto, um dos organizadores do festival.
Foi por Nicolau que Maria José Abdala Neto, paulista de Sorocaba, se apaixonou entre um show e outro. Até hoje, há exatos 30 anos, estão juntos – vivem em Iacanga desde 1979.
Ela resume bem o clima do evento: “Todo mundo em paz, nenhuma briga. Deixava meu filho solto na multidão, sempre tinha alguém cuidando dele. Um tinha arroz, outro feijão. Todos se ajudavam”.
Marisa Orth se diverte lembrando dos dias em que passou na fazenda – garante que seus pais só a deixaram ir porque não tinham noção do que acontecia lá. “A maconha era absolutamente liberada, a moeda de troca”, conta.
Apesar de o LSD também rolar, eram especialmente a maconha e os cogumelos que faziam a cabeça dos malucos.
Na edição de maior sucesso, em 1981, o festival levou para a cidade artistas como Raul Seixas, Hermeto Paschoal, João Gilberto, Egberto Gismonti, Gilberto Gil, Alceu Valença e mais de 15 nomes do rock nacional e da música popular brasileira.
Os shows começavam no fim da tarde e se estendiam pela madrugada. As quatro edições – 1975, 1981, 1983 e 1984 – são lembradas por muitos como a versão brasileira do Woodstock.
Para o grande responsável, o ex-barbudo e hoje advogado Antonio Checchin Junior, o Leivinha, a festa foi “uma grande quermesse brasileira”. Hippie que é hippie não perdeu.
O clima de quermesse a que se refere estava em atrações como o globo da morte, a competição de motocross, um balão colorido e os palhaços de perna de pau que bailavam durante o show de Egberto Gismonti.
Na época, o cantor lançava o disco Circense. A apresentação de Egberto, Raulzito bebaço sem conseguir cantar e João Gilberto emudecendo a plateia diante do seu “dim dim dom” são os momentos mais lembrados.
“João Gilberto tocou às cinco da manhã, chovendo e no meio da lama. Só tinha bêbado, chapado, o povo viajando, cheio de ácido na cabeça. E ele não parava de tocar!”, lembra Cláudio Prado, um dos organizadores do festival e ex-produtor de shows de bandas como Os Mutantes e Novos Baianos.
A folia toda aconteceu graças ao pai de Leivinha. Fazendeiro e dono de farmácia, ele queria que o filho – que aos 22 anos já tinha rodado meio mundo – se aquietasse no Brasil. Para “segurá-lo”, liberou a house party ao ar livre.
Leivinha, envolvido com teatro e rodeado por amigos músicos, agilizou tudo. “O objetivo era abrir a cabeça dos jovens interioranos para a música brasileira”, explica o próprio.
Tal qual o Woodstock, o que era para ser uma pequena apresentação no campo virou um festão. “Começou a chegar aquele povo que andava pelo Brasil inteiro, os hippies. Eles não carregavam nada, só bondade. Eram muito educados”, recorda o ex-policial de Iacanga José Carlos Biondo, 53, enquanto varre as folhas da frente de sua casa.
Trio maravilha: Raul Seixas, Wanderléa e Leivinha, o cabeça do festival
Na época em que José estava na ativa, a cidade tinha 3 mil habitantes (hoje tem 9 mil). Edgard Cantão, 45, músico e radialista de Iacanga, não se esquece da multidão – brasileiros e sul-americanos aos punhados – desembarcando na praça central.
“No começo o povo estranhou, achava que os hippies comiam criancinhas”, conta, e garante que estava na praça quando Gilberto Gil chegou lá com sua banda. “Com aquela bolsinha de lado e o cabelo torneado, perguntou se podia fumar maconha. Eu disse que sim.”
Na primeira edição de Iacanga, 1975, dez anos antes do fim da ditadura, grandes shows ao ar livre não faziam parte do cotidiano da juventude, principalmente a interiorana. “O que aconteceria ali era uma incógnita para nós, da organização. A ideia de deixar a cidade cheia de gente estava no nosso imaginário, mas não tínhamos como medir de que tamanho seria aquilo”, conta Cláudio Prado, um dos organizadores.
“O primeiro sinal de que ia rolar eram as bandas topando. Isso resultou numa avalanche de gente.” Raul Seixas ligou pessoalmente para Leivinha querendo participar. O músico, festejado mês passado por causa dos 20 anos de sua morte, na época era o rei da hipparada. O Maluco Beleza ganhou seu lugar no palco às cinco da manhã.
Lagoa azul: o banho era no lago e as vestes, mínimas
A água era escassa e a comida também. Os mercadinhos de Iacanga não deram conta daquele mundaréu de gente em nenhuma das quatro edições do festival. O banho era no rio, o banheiro, ao natural, e as vestes, mínimas.
“Tinha um lago onde todo mundo nadava nu, menos eu”, garante Marisa Orth. “Lembro de um cara que andava pelado e usava só uma bandana no pescoço. Ele se apaixonou por mim e eu era novinha, virgem, ficava superconstrangida!”
A atriz lembra que, na época, mulher bonita tinha cabelo crespo, bunda grande e peito pequeno – o modelo de beleza da Gal Costa.
Alceu Valença, que tocou na edição de 1981 e na época estava lançando o álbum Coração Bobo, se lembra bem dessas mulheres. “Eram lindas, gostosas. Iacanga tinha um clima de sonho, de delírio. Era uma coisa natural, não se usava camisinha, namorar era fácil. Arranjei muitas gatas nessa época”, conta o músico pernambucano.
Músicos topando, ingressos vendendo, Leivinha entendia de política e foi atrás de uma autorização dos militares.
Especial sobre o festival na Geração Pop, revista de comportamento jovem extinta em 1979
“No começo ouvi um ‘não’ do delegado da cidade. Fui para São Paulo e passei um mês esperando o coronel Erasmo Dias (secretário da Segurança Pública durante o regime militar) me atender. Mandaram, então, eu falar com Silvio Pereira Machado, delegado do Deops (Departamento de Ordem Política e Social). Tive de assinar um termo atestando que o festival não teria nenhuma subversão ou apologia às drogas”, conta.
Maria José, a que foi pra Iacanga e não voltou, se emociona ao relacionar o festival à ditadura: “Na escola não podíamos falar nada, dar opinião sobre o governo. No festival não se tocou na palavra ‘ditadura’ , mas aquilo era claramente um movimento de libertação”.
Sônia Abreu, uma das primeiras DJs de São Paulo e maluca beleza nos anos 70, sente saudades daqueles dias “pulsantes, de música o dia todo, paz e multidão”. Era ela quem, nos intervalos dos shows, acionava o play para soltar os hits de Woodstock: Joe Cocker, Jethro Tull, Janis Joplin. Enquanto a música soava nos alto-falantes, a moçada curtia a quermesse mais livre que o Brasil já teve.
Flyer do evento
Na juventude, Sétima Lua e Maria José estiveram no Festival de Águas Claras, em Iacanga. Quase três décadas depois da primeira edição do evento elas continuam na cidade.
Na época, a paulistana Sétima Lua, apelido de Rosa Maria Cheixas, tinha 20 anos, três namorados e rodava o Brasil vendendo artesanato. Ela não acreditou muito quando ouviu falar do evento: “Tantos artistas conhecidos numa cidade que eu nunca tinha ouvido falar?”.
Mesmo assim, convenceu um dos três namorados e, um mês antes do início da festa, já estava na estrada. De carona em carona, chegou até a cidade dez dias antes da abertura. Montou sua barraca e viu a fazenda ser preenchida por cerca de 30 mil pessoas.
Depois do festival, Sétima Lua morou em outras cidades brasileiras, mas ao engravidar da primeira filha, Aluana, hoje com 22 anos, resolveu que era em Iacanga que ela seria criada. Aos 47 anos, Sétima mora em Iacanga com dois dos três filhos e uma neta. É conhecida na cidade como “A hippie” e virou amiga de Maria José.
Sétima Lua e sua neta
Maria José Abdala morava em Sorocaba, SP, quando soube do Festival de Águas Claras. Tinha 19 anos, disse para a mãe que passaria uma semana na casa de uma amiga e partiu para Iacanga. Sem mochila nem barraca, só com a roupa do corpo.
Chegando lá, encontrou amigos de Sorocaba e, com pouca grana no bolso, resolveu pular a cerca e não pagar ingresso. Nicolau Abdala Neto, um dos organizadores do evento e seu futuro marido, viu Maria José invadindo a fazenda. O clima era de comunidade, ele deixou passar.
Meses depois a sorocabana foi apresentada ao cúmplice por meio de amigas em comum. Se apaixonou, casou e voltou para a cidade onde tinha vivido “a maior emoção da vida”, o Festival de Águas Claras.
Aos 55 anos, Maria José tem dois filhos, Pablo e Adelita, trabalha com artesanato e como assistente social de Iacanga. “Nunca imaginei que voltaria para Iacanga para casar e criar meus filhos”, diz emocionada.
Na sua gaveta ainda estão guardadas as fotos dos shows e o vestido usado no festival. Memórias de quem viu de perto todas as quatro edições do Woodstock brasileiro.
Vista aérea da fazenda Santa Virgínia, em Iacanga
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Um comentário:
Pô Simão, q legal vc falar do Festival!! Massa! Esse papo é um tesouro cultural do país. Esse mesmo país tem pouca memória p isso ... Não faz mal, há algumas memórias e visões como a tua por aí. Q ótemo heim! Excelente página a tua, parabens!!! (apareço)bjka
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