Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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segunda-feira, outubro 19, 2009
O araçari do poeta
Lendo este post sobre o araçari do Altino Machado, me lembrei de uma história ocorrida há um bocado de tempo.
Tarde de sábado, em algum mês de 1985. A gente estava bebendo animadamente no “Recanto dos Crocodilos”, na casa do Aníbal Beça, quando fomos surpreendidos pelos gritos da Eugênia: uma cobra cipó havia invadido os domínios do poeta e avançava solertemente em direção à piscina.
Munido de um pedaço de pau, Aníbal Beça expulsou a invasora de volta para seu pântano particular – um verdadeiro matagal cheio de detritos, piuns e muriçocas, que começava nos fundos da residência do poeta e supostamente pertencia ao clube Guanabara.
Para evitar futuros acidentes, Aníbal Beça resolveu urbanizar o pantanal – e seu quintal foi aumentado em cinco metros.
Na nova área, ele e Eugênia plantaram diversas palmeiras (açaí, buriti, bacaba e patauá), árvores frutíferas, plantas medicinais e criaram um pequeno canteiro de rosas. O novo pomar afugentou as cobras, piuns e muriçocas.
Muitos anos depois, algum vizinho invejoso e dedo-duro (Odivaldo Guerra? Mauro Lima? H. Dias?) resolveu denunciar a presepada ao clube Guanabara e os diretores do clube entraram com uma ação de reintegração de posse contra o Anibal.
Ao mesmo tempo, convocaram seus acólitos para orquestrar uma campanha de difamação do poeta pelas páginas dos jornais. Nas várias colunas sociais, colunas políticas e colunas de opinião dos jornalões, Aníbal Beça passou a ser chamado de “latifundiário”, “invasor de terras alheias” e outras cretinices do gênero.
Munido de fotos aéreas (para mostrar que ele havia construído um oásis no meio de um pântano, já que o clube do Guanabara insistia em utilizar aquela área como lixeira viciada das casas de veraneio existentes em seu próprio terreno), Anibal foi se defender na Justiça. Eu e Antonio Paulo Graça éramos suas testemunhas.
A argumentação era de que se tratavam de terras devolutas, pertencentes ao estado, e que o poeta estava se valendo do instrumento do usucapião para tomar posse e urbanizar o lugar, até então um foco permanente de doenças.
Em agosto de 1993, enquanto a briga corria nos tribunais, o pomar do poeta estava cada vez mais bonito e atraía vários pássaros. Um tucano araçari começou a aparecer diariamente no local para se fartar dos frutos de buriti. Virou o quindim do poeta.
Naquele mesmo mês, Aníbal Beça ficou sabendo pelos jornais sobre o episódio conhecido como “Massacre do Haximu” e entrou em uma depressão de dar dó (o “brujo” sempre teve uma verdadeira simpatia pelos nossos índios).
Denunciado à Funai em agosto de 1993 pelos próprios yanomami, o massacre do Haximu foi mais um dos muitos nefastos episódios decorrentes da invasão da terra indígena por garimpeiros.
À época do massacre, estimava-se que aquela escaramuça dos invasores tivesse eliminado cerca de 70 índios, ou seja, praticamente todos os habitantes de duas malocas no Haximu, localizadas próximo à fronteira do Brasil, na Venezuela.
Após semanas de informações desencontradas e grande comoção nacional e internacional, um levantamento feito pelo antropólogo Bruce Albert, da Comissão Pró-Yanomami, constatou tratar-se de 16 yanonami, majoritariamente mulheres, velhos e crianças, mortos a tiros e golpes de terçados (facões).
O número de mortes só não foi maior porque grande parte da população do Haximu estava concentrada em outra maloca para a realização de rituais.
Segundo relatos recolhidos pelo antropólogo, a ação foi planejada por empresários de garimpo conhecidos em Roraima que, após o massacre, evadiram-se da área.
Baseado em detalhados relatos dos sobreviventes, Albert estimou que 14 garimpeiros protagonizaram a chacina.
Entretanto, apenas a metade pôde ser identificada pelos apelidos e codinomes e cinco foram condenados. Eles continuam presos até hoje por crime de genocídio.
Para sair da depressão, Aníbal Beça escreveu um poema em que associava o araçari que freqüentava seu pomar à alma de um dos indiozinhos mortos no massacre.
Alguns anos depois, o poema seria musicado por Armandinho de Paula e se transformaria em uma das composições mais conhecidas do poeta:
Sunimá Muiritepê
Curumim yanomami
Quer brincar com araçari
Mas o tucano pequeno
Fugiu do fogo da mata
Araçari do bico de ouro
Voou voou no vento de arribação
Comeu cajá no Mucajaí
Parou em Caracaraí
Foi beber água no Tarumã
Conheceu outra selva
Estranha no seu mormaço
E pousou num buriti
Araçari do papo azulado
Traz a chuva e leva o sol
Vem bincar no meu quintal
Clarear o meu lençol
No bico trouxe um açaí
Prenda roxa pra chunhantaí (Bis)
Quanto ao processo na Justiça? Bom, a ação foi julgada pela então juíza Graça Bandeira, que deu ganho de causa ao poeta.
Aníbal Beça aproveitou para estender seus domínios até às margens do igarapé (hoje conhecido como “Passeio do Mindu”), no que foi rapidamente seguido pelos demais moradores do conjunto Débora – incluindo, possivelmente, o vizinho invejoso e dedo-duro. Acontece.
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