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sábado, outubro 03, 2009

Síndrome do Cólon Irritável


Em 1989, o prefeito de Manaus, Artur Neto, um cristão-novo do recém-fundado PSDB, resolveu dar uma força para o senador Mário Covas, candidato à presidência da República.

Cassado e preso duas vezes por desafiar a ditadura militar com discursos inflamados e combativos no Congresso, defensor de ideais que ganharam o respeito tanto da esquerda como dos próprios militares, e protagonista de uma vida marcada pela trágica morte da filha, Sílvia, num acidente de moto no reveillon de 76, Mário Covas era amigo íntimo de Artur Neto e uma das grandes lideranças do país até ser vencido pelo câncer, em 2001.

Desde 1989, muita gente se pergunta como foi possível o Brasil eleger Fernando Collor quando tinha à disposição um Mário Covas. O país perdeu, e nós com ele, uma boa chance de ter um grande presidente. Desses de esbravejar, bater na mesa, encher a paciência, mas fazer o melhor para botar a casa em dia e projetar um futuro mais justo.

O PSDB foi criado em função da candidatura Covas, natural para boa parte, mas não para a maioria, de um PMDB que escorregava para as mãos de Orestes Quércia.

Covas não foi eleito, mas repetiu o também tucano paulista Franco Montoro: fez escola, uma ótima escola.

Um exemplo pronto e acabado é Geraldo Alckmin, o ex-governador paulista. Austero, leal, certinho. O país e em particular a política andam precisando de tipos e princípios assim. A morte de Covas causou uma comoção não apenas paulista, mas nacional.

De todos os políticos, porém, quem mais teve a lamentar foi FHC. Ele e Covas nunca foram lá muito íntimos, estranharam-se na campanha de Covas, em 1989, tinham até lances de ciúme (e ciúme de homem a gente sabe como é). Mas eram correligionários, respeitavam-se. Covas às vezes tinha ímpetos de esganar FHC, mas jamais lhe foi desleal.

É evidente que Mário Covas tinha lá seus defeitos – a ranzinzice, por exemplo –, mas jamais foi pequeno. Ao contrário. Foi, do início ao fim, na política ou fora dela, na ditadura e na abertura, um grande homem.

Ardoroso defensor da candidatura Covas, Artur Neto fretou um jatinho Learjet numa sexta-feira à noite e convocou o secretário de Comunicação Jefferson Coronel e o tenente Fernando para acompanhá-lo na aventura.

O comandante da aeronave era o português Eurico (apelidado por Artur de “Salazar”, em homenagem ao ilustre ditador das terras lusitanas), auxiliado pelo sub-comandante Metin Yurtsever (um dos donos da Rico Linhas Aéreas).

O périplo aéreo era para tirar qualquer um do sério. Em 24 horas, eles iriam participar dos comícios de Covas em Alta Floresta (MT), Brasília (DF), Londrina (PR), Curitiba (PR), Duque de Caxias (RJ), Campina Grande (PB), Recife (PE) e Rio de Janeiro (RJ), quando então retornariam para Manaus.

A despensa da aeronave foi abastecida exclusivamente com salgadinhos e refrigerantes, para ninguém correr o risco de chegar nos comícios fora de hora.

Até então, ninguém sabia que Jefferson Coronel sofria de Síndrome do Cólon Irritável (SCI), uma doença intestinal funcional capaz de causar estragos nas facções amigas e inimigas.


Na verdade, trata-se de um conjunto de manifestações gastro-intestinais crônicas ou recorrentes não associadas a qualquer alteração bioquímica ou estrutural conhecida até hoje.

A causa da SCI não é bem conhecida e, portanto, não se sabe como, a partir de um certo momento, uma pessoa passa a apresentar os sintomas.

Acredita-se que alterações nos movimentos que propagam o alimento desde a boca até o ânus (motilidade intestinal) e nos estímulos elétricos, responsáveis por esse movimento intestinal, estejam envolvidos no problema.

Alterações psicológicas como medo, depressão e ansiedade podem contribuir para a SCI. É possível que essas pessoas percebam e reajam de maneira mais intensa a estímulos menores.

Os principais sintomas são dor (“cólicas”) e distensão abdominal associados a um aumento da freqüência diária de evacuações e flatulência de odor fétido, capaz de nocautear gorilas e despertar lágrimas em crocodilos. Gás lacrimogêneo perde. Gás mostarda fica longe.

Para descontrair o ambiente, assim que a aeronave alçou vôo de Manaus, Artur Neto iniciou uma animada “guerra de salgadinhos” contra Fernando e Coronel.

Em meia hora, o carpete do avião havia se transformado numa pasta disforme de resto de pastéis, croquetes, empadas, quibes, coxinhas, canudinhos, militos e amendoins, temperado por todo tipo de líquido (refrigerantes, sucos, água, cerveja). Uma verdadeira pocilga, que deixou o comandante Salazar horrorizado.

Nas primeiras doze horas, Jefferson se comportou estoicamente, limitando-se a beber sucos cítricos e a se livrar da pontaria cada vez mais afiada do prefeito.

No final do comício de Curitiba, Mário Covas pediu pra ir pra Caxias no jatinho de Artur Neto, no que foi prontamente atendido. O secretário chamou o prefeito num canto e cantou a pedra:

– Quando o senador ver a zona que está dentro do avião, vai achar que o senhor é um pai de chiqueiro, prefeito! – avisou. “Não fica bem para um senador candidato a presidente da República viajar naquelas condições tão anti-higiênicas...”

Depois de escutar as ponderações razoáveis do secretário, Artur Neto deu uma desculpa qualquer para Mário Covas e evitou o vexame. O Learjet continuou levando exclusivamente os três ilustres passageiros.

No vôo de Recife para o Rio de Janeiro, Artur Neto turbinou a “guerra interna” com alguns novos mísseis que comprara no mercado São José: paçoca de bode, canjica, bolo podre, quindim, maria-mole, rapadura e garapa. A meleca no carpete e nas poltronas ficou infernal.

Na última escala da viagem, no Rio de Janeiro, já completamente vencido pela fome, Jefferson não resistiu: parou numa barraquinha de Angu do Gomes e meteu bronca. Seu biodigestor começou a trabalhar a pleno vapor.

Quando o comício terminou, já na madrugada de segunda-feira, Artur Neto entrou no avião com outras duas pessoas: o ex-deputado federal Zé Eudes e Jairo Roncari, diretor da Petrobras, que queriam uma carona até Manaus. Eles estranharam a bagunça dentro da aeronave, mas não falaram nada.

Mortos de sono, os dois novatos e os dois auxiliares do prefeito começaram a dormir. Artur Neto ligou a luz individual e começou a ler um livro do Umberto Eco.

Jefferson, que apenas fingia estar dormindo, soltou um “bufa” bem silencioso. O primeiro a perceber o cheiro de rato morto dentro da aeronave foi o comandante Salazar, que fechou a porta da cabine com violência.

O barulho acordou Zé Eudes e Roncari, que quase desmaiaram com o mau cheiro.

Percebendo que o tenente Fernando continuava dormindo o sono dos justos, enrolado sob cobertas até a cabeça, Artur matou a charada: o sacana estava apelando para a “guerra química”.

– Porra, negão, aqui não tem janela! – vociferou o prefeito. “Mais respeito, porra, mais respeito, que ninguém aqui é da tua laia nojenta!..”

Jefferson soltou o segundo “bufa”, mais mortífero que o primeiro.

Agora, o ambiente dentro da aeronave era de japoneses dentro do metrô de Tóquio, sendo bombardeados por gás sarin.

O cheiro de rato morto, amoníaco e ovo podre empestou a aeronave. Na cabine, Salazar e Metin estavam pilotando com a cabeça pra fora do avião.

Artur Neto estava possesso:

– Porra, negão, deixa de ser imundo! Caralho, até parece que você andou comendo carniça de urubu! –, berrava o prefeito. “Puta que pariu, vai ser preciso chamar um caminhão limpa-fossas do Adelson pra dar um jeito nesse teu bucho inchado de bosta! Respeita a gente, porra! Respeita a gente!...”

Sem saber do que se tratava, Fernando limitava-se a se enrolar ainda mais embaixo das cobertas, o que deixava Artur cada vez mais indignado.

Quatro “bufas” depois, o avião aterrissou em Manaus. Zé Eudes e Roncari estavam tão intoxicados, que foram direto para o Hospital Tropical e só receberam alta no dia seguinte. Nunca mais aceitaram uma carona do Artur Neto.

Em compensação, o tenente Fernando ficou proibido de viajar com o prefeito durante três meses.

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