Por José Ribamar Bessa Freire
“Sangra o coração do meu Brasil. / O belo monstro rouba as terras
dos seus filhos / devora a mata e seca os rios”. (Samba da Imperatriz
Leopoldinense , 2017)
Tem um Brasil que está morrendo e outro que está nascendo
dentro de um país de cores e cantos tão diversos. Para identificá-los, não
precisa ser médico-legista nem parteiro. Basta observar neste carnaval o
desfile da Sapucaí, com os olhos bem abertos para não confundir um com o outro,
já que nenhum dos dois tem samba no pé.
Um deles manca porque, decrépito, está com esclerose
múltipla, enquanto o outro, hesitante e trôpego, ainda aprende a andar,
ensaiando na avenida seus primeiros passos. Mas só quem entende a língua dos
pássaros, das árvores e dos rios sabe disso.
Berço do renascimento
O Brasil com um pé entrando no caixão fez tudo para abortar
o parto do Brasil com um pé saindo do berço. Em vão. Domingo (26), logo depois
da meia-noite, cerca de 3.000 componentes da Imperatriz Leopoldinense, entre
eles Raoni e outros índios, desfilam em 32 alas e seis carros alegóricos com a
rainha de bateria, Cris Vianna, e mestre Lolo comandando a percussão. “Xingu, o
clamor da floresta” canta aquilo que foi explorado na Rio-92 por Daniel Matenho
Cabixi com a palestra “As tecnologias dos povos indígenas na preservação do
meio ambiente” editada pela UERJ.
O enredo foca os saberes de 17 etnias que vivem no Parque
Indígena do Xingu (MT) e a contribuição das civilizações indígenas – “a primeira
semente da alma brasileira” – na defesa da natureza agredida, da beleza e
exuberância de cores da floresta. Exalta as pinturas corporais, o artesanato,
os instrumentos musicais - as flautas e os maracás, a liberdade e a memória
sagrada. “Salve o verde do Xingu, a esperança, a semente do amanhã!”.
Esse Brasil que nasce e que está aprendendo a ficar de pé
inaugura o diálogo do carnaval com a academia e com os índios, quase sempre
folclorizados como exóticos. Da Antropologia, a escola de samba toma emprestado
o trabalho de campo como forma de entender o outro, o diferente. Busca na
Museologia a curadoria compartilhada com os índios na organização de
exposições. Recorre à História para abordar os acontecimentos com o conceito de
longa duração de Fernand Braudel, abandonando o fatual, nomes de heróis fajutos
e sucessão de datas inúteis.
Foi assim que o carnavalesco Cahê Rodrigues, assessorado
pelo antropólogo Carlos Fausto do Museu Nacional (UFRJ), se deslocou ao Xingu
para conviver com os índios, observar o cotidiano e com eles conceber o enredo.
Viu a área contaminada por agrotóxico, causador de câncer que já matou muitos
índios. “Voltei de lá com outra cabeça” –
disse em entrevista. Viajou com a cabeça do general Custer e voltou pensando
como Touro Sentado, a exemplo do ministro Ayres Brito, do STF, no processo da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Escola sem partido
O enredo, dividido em seis setores, começa com o sagrado,
passa pelas riquezas da flora e da fauna e aborda a invasão e o roubo de
terras. No quarto, as queimadas, as madeireiras, o agrotóxico e Belo Monte. No
quinto, as alianças de índios com não índios na defesa do Xingu, o último é o
clamor que vem da floresta. Isso foi suficiente para que o outro Brasil com o
pé no caixão, passasse a agredir a Imperatriz Leopoldinense e estendesse às
escolas de samba o conceito de “escolas sem partido”, pelo qual lutam.
Mesquinhos, não admitem versão crítica, nem no carnaval.
A figura sinistra do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) quer uma
CPI “para discutir, debater e descobrir os financiadores da Imperatriz
Leopoldinense”. A Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) em carta
atacou a escola de samba e garantiu que o agronegócio é responsável pela comida
e bebida consumida pelos turistas no carnaval. Lideranças ligadas ao plantio de
soja, milho, algodão e cana de açúcar se pronunciaram no mesmo sentido.
Circulou até mesmo denúncia de que empresários teriam oferecido R$ 15 milhões
aos índios para que não desfilassem.
A escalada de violência culminou com o programa “Sucesso do
Campo” da Rede Goiás, afiliada da Record, quando a jornalista Fabélia Oliveira,
comentando o samba-enredo, declarou que “o tradicional malandro carioca” não
pode falar do índio e da floresta. O índio “vai ter que morrer de malária, de
tétano, do parto. É a natureza”.
Se eles estão tão incomodados, é porque o desfile da
Imperatriz Leopoldinense vai ser uma grande aula na Sapucaí, nesse espaço
mágico e dionisíaco do carnaval. Darcy e Berta Ribeiro, Maria Yedda Linhares,
John Monteiro, Antônio Brand e tantos outros amigos dos índios devem estar
requebrando alegremente na tumba ao som do samba da Imperatriz. Olha o índio
aí, gente.
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