Vai ter branca de
turbante
Por Ruth Aquino
#VaiTerNegraDeCabeloAlisado. E branca de cabelo encaracolado
permanente. E negra de peruca loura ou cabelo descolorido. E hétero de camisa
arco-íris. E homem de saia. E mulher de calça (até 80 anos atrás, não podia). E
homem fazendo sobrancelha. E mulher sem se depilar. E gente branca, negra,
amarela, cinza se apropriando de todos os símbolos que ajudem o mundo a
destruir muros e construir pontes.
A história começou no metrô de São Paulo. A estudante
Thauane Cordeiro, branca, de 19 anos, usava um turbante. Eis seu relato: “Cinco
meses atrás fui diagnosticada com leucemia. Meu cabelo foi caindo. Eu não
queria aceitar. Raspei meu cabelo todo e doei para o Instituto do Câncer. Eu
estava me sentindo feia, fui comprar um turbante, uma amiga me disse que eu ia
me sentir melhor. A moça da loja foi gentil e me ensinou a fazer uma das
amarrações. No metrô, um grupo de jovens estava me olhando torto. Uma chegou
para mim e disse: ‘Moça, dá licença? Você não pode usar esse turbante’. Por
quê?, perguntei. ‘Porque você é branca.’ E na hora ali me veio aquela raiva.
Respirei. Tirei o turbante e disse: ‘Tá vendo isso aqui? Essa careca? É câncer.
Então eu uso o que eu quero’”.
O assunto viralizou nas redes sociais. Por baixo dos panos
na cabeça, havia o racismo e a “apropriação cultural”, alimentados por
ressentimentos históricos e sociais.
Sou branca, mas não branquela. Tem índio entre meus
antepassados. Desconfio de sangue árabe ou judeu, por meu nariz e o sobrenome
de cristão-novo. Sou brasileira, mas zero nacionalista. Só uso turbante de
toalha, no chuveiro. Não fico bem. O turbante, como acessório, valoriza rostos
harmônicos. O primeiro turbante que vi foi nas Mil e uma noites e no gênio da
lâmpada, Aladim. Depois, nos indianos de Londres. E, mais tarde, nas viagens à
África. Que riqueza de tecidos e modelos.
Minha primeira reação à guerra do turbante foi achar uma besteira maior que proibir a palavra
“mulata” e reprimir as marchinhas de Carnaval incorretas. Mas não. Se tantos se
sentem ofendidos, é porque o turbante é uma desculpa ou um gatilho.
O turbante é uma desculpa errada e arrogante para discutir
racismo. Não é propriedade dos negros. Esconde um dos maiores símbolos da
negritude universal: os cabelos black. Quem conhece a África sabe que a
expressão “cultura africana” é quase ofensiva a um continente tão
diversificado, com 54 países e uma infinidade de tribos, dialetos, regimes e
costumes.
Pior é falar em “apropriação cultural” – como se usar
adornos, temperos ou roupas de outras etnias e culturas não pudesse ser uma
homenagem, vinda da admiração. Como se fosse um crime e devesse ou pudesse ser
evitado.
Vi gente aplaudida por dizer que quem pode discutir
feminismo é mulher, discriminação de gênero é homo ou trans, racismo é negro ou
mestiço. O resto pode ouvir. Parecemos discípulos do Trump and this is a
huuuuge mistake. Cada um no seu quadrado, recolha-se a seu lado do muro, porque
você não sabe de nada e o mundo é preto e branco. Não se coloque no lugar do
outro.
“O turbante habitado por negras é diferente do turbante
habitado por brancas”, pontificou a escritora Ana Maria Gonçalves. Entendo o
simbolismo – e acho difícil que uma branca fique mais imponente com os
turbantes amplos que uma negra. O texto de Ana Maria é emocionado. “Para
carregar este turbante sobre nossas cabeças, tivemos de escondê-lo,
escamoteá-lo, disfarçá-lo, renegá-lo. Era abrigo, mas também símbolo de fé, de
resistência, de união.” Mas e aí? Uma pena que Ana Maria reduza a polêmica à
“branquitude que não quer assumir seu racismo”. Pela cor de nossa pele branca,
seremos sempre usurpadores, jamais irmãos? Não ouviríamos isso de Martin Luther
King, Nelson Mandela, Barack Obama.
Achei esquisito quando Michelle Obama alisou os cabelos,
preferia o penteado menos formal, mais autêntico. Mas Michelle faz o que quiser
e ninguém tem nada a ver com isso. A menina branca que usa dreads não se
apropria de tranças negras. Ela faz o que quiser. Não existe cultura, moda ou
arte sem “apropriação”, no sentido de mistura, inspiração e troca. Desde quando
a apropriação se tornou inapropriada? Thauane foi vítima de racismo às avessas.
A negra Juliana Luna, estilista de turbante, descendente dos
iorubás, disse à GloboNews, de Lagos, na Nigéria: “Quem sou eu para dizer a
Thauane que ela não pode usar turbante? A abordagem não deve ser combativa.
Isso cria uma rede de ódio desnecessária. Devemos construir diálogos de
aproximação, usando a moda. Queria me desculpar em nome das negras por termos
chegado a você, Thauane, com tanta insensibilidade. O câncer deve ter te
deixado desestruturada. Se você quiser, te dou aula e te mando tecido”. Touché, Juliana, linda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário