Na polêmica sobre
turbantes, é a branquitude que não quer assumir seu racismo
Por Ana Maria Gonçalves
Quase toda cidade pequena – principalmente as de Minas – tem
seu louco de estimação. Aquele que toda a cidade conhece, cuida e por quem zela
como uma espécie de patrimônio. Ibiá, onde nasci, tinha o Zé Tem Dó; e foi com
ele que aprendi sobre o valor simbólico de certos objetos. Eu devia ter uns
quatro ou cinco anos. Minha mãe era costureira, e o Zé colecionava carretéis de
linha. Portanto, suas visitas à minha casa eram constantes, porque minha mãe
guardava todos os carretéis para ele e sempre oferecia algo mais, como um refresco,
uma roupa, um prato de comida.
Pensando que o Zé estava distraído, certa vez tentei pegar
em um destes carretéis. Ele se levantou com um pulo e, com mais dois, estava
parado na minha frente, protegendo os valiosos bens que, para minha mãe, eram
apenas sobras de trabalho. Saí eu correndo para o outro lado, assustada, com
medo. Zé pegou suas coisas e foi embora, conversando com um dos carretéis que
ele amarrava na ponta de uma linha e saia puxando. Era seu animal de estimação
ou seu carrinho, algo que ia muito além do que eu conseguia ou conseguirei ver,
a menos que um dia me torne um Zé e vá eu mesma virar folclore em uma cidade do
interior. Mas ali, naquele episódio, aprendi uma coisa da qual pretendo falar
aqui: o Zé não estava brincando com um carretel e nem nós estamos brincando com
um turbante.
Boa parte da população branca brasileira sabe de suas
origens europeias e cultiva, com carinho e orgulho, o sobrenome italiano, o
livro de receitas da bisavó portuguesa, a menorá que está há várias gerações na
família. Quem tem condições vai, pelo menos uma vez na vida, visitar o lugar de
onde saíram seus ancestrais e conhecer os parentes que ficaram por lá. E os
descendentes dos africanos da diáspora? Quando chegaram por aqui, os
traficantes de pessoas já tinham apagado os registros do lugar de onde haviam
saído, redefinindo etnias com nomes genéricos como Mina (todos os embarcados na
costa da Mina), feito-os dar voltas e voltas em torno da Árvore do Esquecimento
(ritual que acreditavam zerar memórias e história) ou passarem pela Porta do
Não Retorno, para que nunca mais sentissem vontade de voltar, separando-os em
lotes que eram mais valiosos quanto mais diversificados, para que não se entendessem.
Ainda em terras africanas tinham sido submetidos ao batismo
católico para que deixassem de ser pagãos e adquirissem alma por meio de uma
religião “civilizatória”, ganhando um nome “cristão” que se juntava, em terras
brasileiras, ao sobrenome da família que os adquiria. No Brasil, não podiam
falar suas próprias línguas, manifestar suas crenças, serem donos dos próprios
corpos e destinos. Para que algo fosse preservado, foram séculos de lutas, de
vidas perdidas, de surras, torturas, “jeitinhos”, humilhações e enfrentamentos
em nome dos milhares dos que aqui chegaram e dos que ficaram pelo caminho.
Como resultado disto, somos o que somos: seres sem um
pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá
e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui. Temos, como diz a poeta,
romancista, ensaísta e documentarista canadense Dionne Brand, em seu
maravilhoso A Map to the Door of No Return, “o próprio pertencimento alojado em
uma metáfora”. Viver na Diáspora Negra, segundo ela, é “viver como um ser
fictício – uma criação dos impérios, mas também uma autocriação. É ser alguém
vivendo dentro e fora de si mesmo. É entender-se como signo estabelecido por
alguém e ainda assim ser incapaz de escapar dele (…).”
Somos signos criados pelos brancos para que nossa negritude
pudesse, e ainda possa, ser mercantilizada. E não conseguimos escapar disso
porque, de antemão, sem ao menos nos ouvir, vocês já parecem saber o que somos,
o que queremos, o que sabemos. Assim mesmo: a negritude, a militância, as
mulheres negras, esse povo – nunca seres individuais, mas sempre em lotes. E
vivemos nesta metáfora que, a partir de agora, vou passar a chamar de turbante,
mas poderia ser outro símbolo qualquer.
Viver em um turbante é uma forma de pertencimento. É
juntar-se a outro ser diaspórico que também vive em um turbante e, sem precisar
dizer nada, saber que ele sabe que você sabe que aquele turbante sobre nossas
cabeças custou e continua custando nossas vidas. Saber que a nossa precária
habitação já foi considerada ilegal, imoral, abjeta. Para carregar este
turbante sobre nossas cabeças, tivemos que escondê-lo, escamoteá-lo,
disfarçá-lo, renegá-lo. Era abrigo, mas também símbolo de fé, de resistência,
de união. O turbante coletivo que habitamos foi constantemente racializado,
desrespeitado, invadido, dessacralizado, criminalizado. Onde estavam vocês quando
tudo isto acontecia? Vocês que, agora, quando quase conseguimos restaurar a
dignidade dos nossos turbantes, querem meter o pé na porta e ocupar o sofá da
sala. Onde estão vocês quando a gente precisa de ajuda e de humanidade para
preservar estes símbolos?
Lembro de ter visto um turbante usado por um homem sensível
à causa das mulheres negras na Marcha das Mulheres, que aconteceu há pouco
tempo em Los Angeles, que perguntava: “Verei todas vocês, mulheres brancas
legais, na próxima marcha #VidasNegrasImportam, certo?”.
Vocês, mulheres brancas legais que querem se abrigar em
nossos turbantes, vão estar conosco enquanto choramos as mortes dos nossos
meninos negros e clamamos por justiça, certo? Vão usar turbante quando nossas
mães e pais de santo são expulsos de comunidades ou entregues aos formigueiros,
certo? Quando reclamamos da dor ao recebermos menos anestesia do que mulheres
brancas durante os partos, certo? Quando denunciamos que sofremos mais
violência, mais abuso e mais assédio do que vocês, certo? Quando reivindicamos
equiparação salarial com vocês, certo? Vão reverberar nossas vozes quando
reclamamos que somos preteridas pelos homens (brancos ou negros), certo? Vão
entender e ter uma palavra de consolo quando sentimos culpa por deixarmos os
próprios filhos em casa para cuidarmos dos seus, certo? Vão nos ouvir e nos
defender quando tiver mais alguém querendo invadir nossos turbantes a força, na
marra, no grito, certo? Porque aí, o turbante também já será de vocês. Vão
ouvir, entender e falar junto quando tentamos explicar que nossas
reivindicações, distorcidas, não têm nada a ver com pizza, calça jeans e feng
shui, certo?
Quando vocês dizem “Vou usar e pronto, quero ver quem vai me
impedir”, às vezes dá vontade de pegar vocês no colo, à moda das “mães pretas”
que devem ter povoado as vidas de muitos de vocês ou de seus ancestrais, e
dizer que isso não é comportamento de criança educada. E dizer que sim, algumas
coisas são de vocês, porque foram da bisavó de vocês, da avó de vocês, da mãe
de vocês e que, deste modo, a gente também poderia ter algumas coisas que são
nossas, herança de família. Quer ver: Pizza! (“É comida italiana!”). Acarajé –
do iorubá akara (bolo de feijão frito) + ijé (comida) – (É MEU! É do Brasil! É
de todo mundo!). Hashu´al (É israelita!). Congado (É MEU! É do Brasil! É de
todo mundo!). Quimono! (É japonês!). Ojá! (É MEU! É do Brasil! É de todo
mundo!). Kung Fu (É chinesa!). Capoeira! – do tupi ko´pwera ou do umbundo
kapwila – (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Abajur (Vem do francês!).
Moleque, quiabo, berimbau, samba, cafuné, zumbi… (É MEU! É do Brasil! É de todo
mundo!).
E depois somos nós os divisionistas, os egoístas, os que não
têm cultura, enquanto vários outros povos podem manter, sem controvérsia e sem
serem obrigados a colocar na roda (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!), as
“contribuições” que trouxeram para o solo brasileiro. Já entendemos que vocês
acham que é (sempre foi) tudo de vocês. Só que cansamos de ficar só nas
cozinhas, nos quartinhos, nos corredores, nas bordas das piscinas, sem sermos
incluídos nisso aí que vocês chamam de “povo brasileiro”. Cansamos de escutar
que não sabemos, não vemos, não entendemos, não queremos, não podemos. De ter
que pedir licença pra tudo, de ter que pedir desculpa mesmo quando somos os
ofendidos. Cansamos de servir quem nem sabe os nossos nomes. Cansamos de sermos
personagens de piadas das quais só vocês riem.
Quase todas as nossas discussões e toda a produção
intelectual acontecidas ali, sob nossos turbantes, são desligitimizadas pela
palavra de ordem #VaiTerBrancaDeTurbanteSim!, gritada para nós com a mesma
arrogância e espera de obediência que os donos dos nossos ancestrais gritavam
#NãoVaiTerCoisaDePretoAquiNão!. Coisas mil acontecem dentro desses nossos
turbantes, das quais vocês nem têm ideia: temos que formar redes de apoio,
invisíveis para vocês e alheias à sua existência privilegiada, para socorrer,
consolar, orientar e fortalecer vítimas de racismo cometido por pessoas que se
ofendem quando apontamos suas faltas, e viram vítimas.
Debaixo deste turbante orientamos crianças negras a não
levarem banana na lancheira porque os amiguinhos vão chamá-las de macacos.
Orientamos nossos jovens a não usarem roupa com capuz, não correrem, não
fazerem movimentos bruscos em público e não parecerem suspeitos, seja lá o que
isso significa para vocês. Sob a proteção destes turbantes, trocamos
informações, discutimos teorias, nos comunicamos com turbantes estrangeiros e até
fazemos vaquinhas para pagar enterro de jovens assassinados pela polícia.
Concordamos, discordamos, rimos, choramos, contamos segredos, gritamos, amamos,
odiamos, estudamos, dizemos uns aos outros que temos que ter infinita paciência
para voltar cinco, dez, vinte casinhas do ponto de entendimento em que estamos
para responder a egocentrismos do tipo “EU li Monteiro Lobato e não me tornei
racista”, “se EU usar turbante vou ser chamada de racista?”. Porque sabemos que
não são comentários nem perguntas inocentes, mas são também metáforas. São os
muros que protegem aqueles lugares que vocês habitam e nos quais não somos
admitidos, porque na porta sempre teve uma placa dizendo “brancos somente”.
O turbante que habitamos não é o mesmo. O que para você pode
ser simples vontade de ser descolado, de se projetar como um ser livre e sem
preconceitos, para nós é um lugar de conexão. Entre nós mesmos e com algo que
perdemos e que nem sempre sabemos o que é e por onde ficou. Habitar nossos
turbantes tem para nós o mesmo significado de “ir conhecer a vila onde meus
avós italianos nasceram”, ou “pude sentir na pele o que meus bisavós viveram
naquele campo de concentração”. Sim, porque, entre muitos outros, ele tem estes
dois significados: abrigo e dor.
Nós não tiramos sarro de vocês quando vocês defendem estes
lugares que fazem parte da história do seu povo. Nós não fazemos piadas com os
significados que estes lugares têm para vocês. Não não dizemos que são meras
construções de pedras e tijolos empilhados uns sobre os outros. Nós não os
chamamos de burros porque a nossa ignorância não nos permite entender o que
vocês falam destes lugares que lhes são caros porque trazem as marcas de seus
bisavós, avós, pais, e que continuarão a marcar as vidas de seus filhos, netos,
bisnetos. E, no entanto, temos que observar calados, sob a pena de tentarem nos
calar à força, como a bestas raivosas que vocês acham que nós somos – não é
ação, é reação! –, vocês meterem os pés nas nossas portas, invadirem nossos
turbantes com gritos de “VaiTerBrancaDeTurbanteSim!. Para vocês é morada
provisória, das quais vocês entram e saem conforme dita a moda e a vontade,
porque vocês têm sempre um lugar outro para onde ir, que é este da branquitude.
Nós não temos, porque nossa existência está cravada na pele, nossa morada está
acoplada às costas, à maneira dos caracóis. Nossa casa, para você, é fetiche, é
exotismo, é acessório, é fantasia. A nossa casa.
Na nossa casa, a gente não fala de turbante quando fala de
turbante. Dentre muitos dos seus nomes, o principal é racismo. É racismo quando
vocês acham que não sabemos do que estão falando. É racismo quando vocês
deduzem que precisam nos ensinar que pizza é italiana, que o algodão do pano do
turbante é indiano, que num mundo globalizado… etc etc etc. A gente tem que
voltar cinco, dez casinhas na discussão que vocês não estão acompanhando porque
não querem – mas se acham habilitados a dar palpite –, para nos nivelarmos ao
entendimento de vocês, só pra dizer: É o racismo, estúpido! E antes que
tenhamos que voltar mais trinta casinhas para ouvir os “eu não sou racista!”: É
o sistema, estúpido! E sendo ele estrutural e estruturante da sociedade
brasileira, faz com que você trabalhe para mantê-lo, quer você queira, quer
saiba, ou não.
Sobre apropriação cultural, a gente conversa depois de vocês
lerem, por exemplo, o artigo da filósofa Djamila Ribeiro, publicado muito antes
desta briga de vocês pelo turbante virar modinha. Ou o poema do mestre Nei
Lopes, colocado aí abaixo. Neste caso, podem ter certeza de que quando vocês
vêm com o fubá (do quimbundo “fuba” ou do quicongo “mfuba”), a gente já está
comendo o angú (provavelmente do fon “àgun”).
BRECHTIANA (para Abdias Nascimento)
Primeiro,
Eles usurparam a matemática
A medicina, a arquitetura
A filosofia, a religiosidade, a arte
Dizendo tê-los criado
À sua imagem e semelhança.
Depois,
Eles separaram faraós e pirâmides
Do contexto africano
Pois africanos não seriam capazes
De tanta inventiva e tanto avanço
Não satisfeitos, disseram
Que nossos ancestrais tinham vindo de longe
De uma Ásia estranha
Para invadir a África
Desalojar os autóctones
Bosquimanos e hotentotes.
E escreveram a História ao seu modo.
Chamando nações de “tribos”
Reis de “régulos”
Línguas de “dialetos”.
Aí,
Lançaram a culpa da escravidão
Na ambição das próprias vítimas
E debitaram o racismo
Na nossa pobre conta
Então,
Reservaram para nós
Os lugares mais sórdidos
As ocupações mais degradantes
Os papéis mais sujos
E nos disseram:
— Riam! Dancem! Toquem!
Cantem!Corram! Joguem!
E nós rimos, dançamos, tocamos
Cantamos, corremos, jogamos.
Agora, chega!
(Nei Lopes)
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