Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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quarta-feira, novembro 19, 2008
De Bob Dylan, nada se joga na lixeira
Jotabê Medeiros (AE)
O simples fato de um músico ter espalhado por aí material pirata suficiente para encher oito álbuns completos só com "sobras" mostra a fertilidade desse músico, escreve o autor Larry "Ratso" Sloman (escritor nova-iorquino que produziu aquele que é considerado o melhor livro sobre Bob Dylan, "On the road with Bob Dylan", um inventário da lendária turnê de 1975, a "Rolling Thunder Review").
Na verdade, o oitavo disco de músicas "não-contabilizadas" de Bob Dylan, "Tell tale signs - The bootleg series Vol. 8" (lançamento Sony-BMG), é um feito ainda maior: trata-se de um álbum duplo, com 27 canções. São faixas inéditas, que foram feitas há algum tempo, mas não foram lançadas em discos de Dylan, assim como gravações ao vivo, gravações "alternativas" e sobras de estúdio.
Além de revelar muito sobre os procedimentos criativos de Bob Dylan, um dos mais importantes artistas populares do nosso tempo, os dois CDs do álbum remontam a um período da produção do cantor e compositor do qual se sabe muito pouco - do álbum "Oh Mercy", de 1989, até seu disco mais recente de estúdio, "Modern times" (2006).
Se não parecesse autoritário o conselho, este escriba recomendaria que os leitores pulassem o Disco Um e fossem logo ao Disco Dois, que é um feliz encadeamento de canções, parecendo um original do próprio artista. Começa com uma versão longuíssima de "Mississippi" (do álbum "Time out of Mind") e prossegue com alguns blues de derreter geleira na Patagônia. O álbum traz duas versões de "Mississippi", a primeira com Daniel Lanois na guitarra elétrica.
Há faixas virais de Dylan, como "Cocaine blues", gravada ao vivo em Vienna, Vancouver, em 24 de agosto de 1997. Prolífico e desafiador, Dylan passa de blues lentíssimos, como "32-20 blues", para clássicos do bluegrass, como em "The lonesome river", no qual tem o apoio da voz de Ralph Stanley. Há canções que remontam a histórias preciosas, como "Cross the green mountain", feita para um épico televisivo sobre a Guerra Civil americana.
Consta que Ted Turner foi a Dylan pedindo uma canção de última hora e Dylan teria se enfiado na New York Public Library durante horas pesquisando para achar um gancho. O resultado é arrebatador, encorpado pelo violino de Larry Campbell e o órgão de Benmont Tench.
"A alma de uma nação está no gume de uma faca/ A morte está à espreita na soleira da vida/ No quarto ao lado um homem luta com sua mulher/ Acerca da dignidade", diz um novo verso que ele enxertou em versão inédita de "Dignity", uma demo ao piano que difere radicalmente da que Dylan divulgou em "Greatest hits volume three".
Outra faixa bastante interessante é "Red River shore", deixada de fora de "Time out of mind". O músico de estúdio Jim Dickinson, em entrevista na época da gravação, tinha declarado que essa era a melhor música do disco, e que tinha sido abandonada. Dura uns sete minutos e tem um certo apelo teológico, cristão. "Ouvi falar de um cara que viveu muito tempo atrás (...) E que, se alguém em volta dele morria, ele sabia um jeito de trazer de volta à vida".
O álbum duplo compila sobras de sete discos de Dylan - "Oh Mercy" (1989), "Under the red sky" (1990), os dois discos que ele fez só com covers de velhas folk songs, "Good as I been to you" (1992) e "World gone wrong" (1993), além de "Time out of mind" (1997), "Love and theft" (2001) e "Modern times" (2006).
Muitas vezes produzido, especialmente em dois discos que "vazaram" inéditas para essa coleção ("Oh Mercy" e "Time out of mind"), por Daniel Lanois, Bob Dylan é atmosférico e cheio de recursos nessa parceria. Quando não há Daniel Lanois, como em "Most of the time", ele ressurge mais limpo, claro, um intérprete de recursos mais amplos do que se supunha e composições originais estupendas. É uma fase que marca um renascimento de Bobby, hoje com 67 anos.
Após o disco "Infidels", de 1983, assinala o escritor Larry Ratso, Dylan viveu uma década meio perdida nos anos 1980. "Ele lançou uma série de discos desiguais, como "Empire burlesque" e Knocked out loaded", e submergiu numa incessante agenda de shows, drenando a inspiração em muitas noites." Mas aí, com "Oh Mercy", ele começou a recuperar a fleuma, o que essas sobras de gravação comprovam.
De fato, Bob Dylan - que cantou no Brasil em março - é um misterioso fenômeno que renasce continuamente. No ano passado, foi revisto no engenhoso filme de Todd Haynes, "Não estou lá" (I'm not there"), no qual sua persona é examinada à luz de sete encarnações - do garoto negro que queria ser Woody Guthrie à fabulosa mimetização de Cate Blanchett, que o reviu em sua fase mais iconoclasta.
Falar de sua importância é chover no molhado: ganhou dez Grammy, mais alguns Globo de Ouro, e ocupa com mérito seu lugar no Salão da Fama do Rock and Roll. Em 1999, foi incluído na lista das pessoas mais influentes do século XX pela revista "Time". Em 1990, foi nomeado Comendador da Ordem das Artes e das Letras pelo governo francês. Muitas vezes seu nome foi mencionado como um dos cotados para a obtenção do Prêmio Nobel de Literatura (no ano passado, lhe foi concedido o Prêmio Príncipe de Astúrias das Artes, pela Espanha).
Algumas de suas canções, como "Like a rolling stone", "Knockin' on Heaven's door", "Mr. Tambourine Man", "I want you" e "Just like a woman" foram gravadas por artistas tão distintos quanto Sonic Youth, Bob Marley, U2, Billy Joel, Pearl Jam, Guns'N Roses, Rolling Stones, Zé Ramalho, entre dezenas de outros. É de cortar o coração a voz de Nina Simone sangrando na gravação de "I shall be released", que ele compôs em 1967.
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