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quarta-feira, outubro 26, 2011

A loba que come lobos


Por Maria Cristina Fernandes, editora de Política do jornal Valor Econômico

Sabatinada para o Superior Tribunal de Justiça, na condição de primeira mulher a ascender à cúpula da magistratura, a então desembargadora da justiça baiana, Eliana Calmon, foi indagada se teria padrinhos políticos.

“Se não tivesse não estaria aqui”.

Quiseram saber quem eram seus padrinhos.

A futura ministra do STJ respondeu na lata:

“Edison Lobão, Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães”.

Corria o ano de 1999.

Os senadores eram os pilares da aliança que havia reeleito o governo Fernando Henrique Cardoso.

A futura ministra contou ao repórter Rodrigo Haidar as reações: “Meu irmão disse que pulou da cadeira e nem teve coragem de assistir ao restante da sabatina. Houve quem dissesse que passei um atestado de imbecilidade”.

Estava ali a sina da ministra que, doze anos depois, enfrentaria o corporativismo da magistratura.

“Naquele momento, declarei totalmente minha independência. Eles não poderiam me pedir nada porque eu não poderia atuar em nenhum processo nos quais eles estivessem. Então, paguei a dívida e assumi o cargo sem pecado original.”

De lá pra cá, Eliana Calmon tem sido de uma franqueza desconcertante sobre os males do Brasil.

Muita toga, pouca justiça são.

Num tempo em que muito se fala da judicialização da política, Eliana não perde tempo em discutir a politização do judiciário.

É claro que a justiça é política.

A questão, levantada pela ministra em seu discurso de posse no CNJ, é saber se está a serviço da cidadania.

A “rebelde que fala”, como se denominou numa entrevista, chegou à conclusão de que a melhor maneira de evitar o loteamento de sua toga seria colocando a boca no trombone.


Aos 65 anos, 32 de magistratura, Eliana Calmon já falou sobre quase tudo.

Filhos de ministros que advogam nos tribunais superiores: “Dizem que têm trânsito na Corte e exibem isso a seus clientes. Não há lei que resolva isso. É falta de caráter” (Veja, 28/09/2010).

Corrupção na magistratura: “Começa embaixo. Não é incomum um desembargador corrupto usar um juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas-corpus ou uma sentença. Os que se sujeitam são candidatos naturais a futuras promoções”. (Idem)

Morosidade: “Um órgão esfacelado do ponto de vista administrativo, de funcionalidade e eficiência é campo fértil à corrupção. Começa-se a vender facilidades em função das dificuldades. E quem não tem um amigo para fazer um bilhetinho para um juiz?” (O Estado de S. Paulo, 30/09/2010).

Era, portanto, previsível que não enfrentasse calada a reação do Supremo Tribunal Federal à sua dedicação em tempo integral a desencavar o rabo preso da magistratura.

Primeiro mostrou que não devia satisfações aos padrinhos.

Recrutou no primeiro escalão da política maranhense alguns dos 40 indiciados da Operação Navalha; determinou o afastamento de um desembargador paraense; e fechou um instituto que, por mais de 20 anos, administrou as finanças da justiça baiana.

No embate mais recente, a ministra foi acusada pelo presidente da Corte, Cezar Peluso, de desacreditar a justiça por ter dito à Associação Paulista de Jornais que havia bandidos escondidos atrás da toga.


Na réplica, Eliana Calmon disse que, na verdade, tentava proteger a instituição de uma minoria de bandidos.

Ao postergar o julgamento da ação dos magistrados contra o CNJ, o Supremo pareceu ter-se dado conta de que a ministra, por mais encurralada que esteja por seus pares, não é minoritária na opinião pública.

A última edição da pesquisa nacional que a Fundação Getúlio Vargas divulga periodicamente sobre a confiança na Justiça tira a ministra do isolamento a que Peluso tentou confiná-la com a nota, assinada por 12 dos 15 integrantes do CNJ, que condenou suas declarações.

Na lista das instituições em que a população diz, espontaneamente, mais confiar, o Judiciário está em penúltimo lugar. Entre aqueles que já usaram a Justiça a confiança é ainda menor.

A mesma pesquisa indica que os entrevistados duvidam da honestidade do Judiciário (64%), o consideram parcial (59%) e incompetente (53%).

O que mais surpreende no índice de confiança da FGV é que o Judiciário tenha ficado abaixo do Congresso, cujo descrédito tem tido a decisiva participação da Corte Suprema – tanto por assumir a função de legislar temas em que julga haver omissão parlamentar, quanto no julgamento de ações de condenação moral do Congresso, como a Lei da Ficha Limpa.

A base governista está tão desconectada do que importa que foi preciso um senador de partido de fogo morto, Demóstenes Torres (DEM-TO), para propor uma Emenda Constitucional que regulamenta os poderes do CNJ e o coloca a salvo do corporativismo dos togados de plantão.

“Só deputado e senador têm que ter ficha limpa?”, indagou o senador.

Ao contrário do Judiciário, os “ficha suja” do Congresso precisam renovar seus salvo-conduto junto ao eleitorado a cada quatro anos.


O embate Peluso-Calmon reedita no Judiciário o embate que tem marcado a modernização das instituições.

Peluso tenta proteger as corregedorias regionais do poder do CNJ.

Nem sempre o que é federal é mais moderno.

O voto, universal e em todas as instâncias, está aí para contrabalancear.

Mas no Judiciário, o contrapeso é o corporativismo.

E em nada ajuda ao equilíbrio.

Em seis anos de existência, o CNJ já puniu 49 magistrados.

A gestão Eliana Calmon acelerou os processos.

Vinte casos aguardam julgamento este mês.

Aliomar Baleeiro, jurista baiano que a ministra gosta de citar, dizia que a Justiça não tem jeito porque “lobo não come lobo”.

A loba que apareceu no pedaço viu que dificilmente daria conta da matilha sozinha, aí decidiu uivar alto.

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