Por Claudio Leal
Você sabe o que aconteceu com os escravos a partir de 13 de maio de 1888? Ou o seu livro de História pulou esse capítulo da pós-abolição? É verdade, a suposta liberdade dos escravos negros foi concedida. Mas a lei da princesa Isabel não passava de um simples papel ordinário. Centenas de milhares de negros foram direto da senzala no campo para as senzalas do esquecimento. Formaram a massa de pobres e miseráveis do Brasil no fim do século 19. Fosse áurea mesmo aquela canetada, teria vindo com políticas públicas de integração e emancipação. Fosse áurea mesmo, a gente não estaria agora prestando homenagem a um dos maiores heróis negros do século 20, Abdias do Nascimento.
Não, o negro não era mais propriedade do senhor de engenho após a abolição. Porém, o Império nada fez para garantir as mínimas condições da pretensa liberdade. Não houve incentivos à alfabetização e à formação profissional dos ex-escravos. Nem reforma agrária para que tivessem um pedaço de terra onde pudessem produzir para si próprios e depois comercializar o excedente. Tampouco leis que protegessem sua força de trabalho, que há tão pouco tempo deixara de ser gratuita e eterna.
O Estado deveria ter endereçado a esse grupo uma série de ações sociais e educativas. Só assim, poderíamos falar em liberdade e igualdade de condições e oportunidades. Mas os ex-escravos não sabiam nem por onde (re)começar. A República Velha também os esqueceu. E, sem um marco zero, sem uma fonte de conhecimento, de orientações e de renda, o caminho natural dos negros recém-libertos foi a marginalização.
As mulheres negras deram um jeito. Sabiam cozinhar, lavar, cuidar dos filhos da madame. De mucamas, tornaram-se domésticas nos idos de 1900. Já os homens negros eram vistos com desconfiança. Sabe como é, foram escravos, costumavam fugir dos brancos, organizar quilombos, jogar capoeira, manejar navalhas… Quem daria um emprego a vossuncê?! A criminalidade foi consequência dessa exclusão. A cor da pobreza no Brasil acabou reforçada no início do século 20: os negros eram desempregados, sub-empregados, os primeiros favelados e criminosos.
Abdias do Nascimento, nascido em 1914, em Franca (SP), não se contentava com esse destino, reservado a ele e aos que tinham sua cor de pele. Ainda pequeno, aprendeu a se queixar dos xingamentos que ouvia na escola por ser preto. E entendeu que afirmar a sua diferença – essa que faziam questão de cuspir-lhe com adjetivos ofensivos – era motivo de orgulho e de força.
Por isso, participou da Frente Negra Brasileira, movimento que buscava a ascensão social das pessoas “de cor” na década de 30. As lições da época, sobre a necessidade de destacar a própria identidade racial, foram decisivas na trajetória de Abdias.
Naquele período, “nos teatros municipais do Rio e de São Paulo, negros entravam apenas para limpar o chão que os brancos sujavam”, como disse Abdias em entrevista ao Portal Afro. O ativista decidiu transformar o cenário e as personagens do momento. Recrutou domésticas, analfabetos, operários e desempregados, todos negros, para estudar teatro e montar peças.
Em 1944, ele concebeu o que pode ser considerado um dos maiores laboratórios de diversidade e autoafirmação nas artes cênicas do Brasil. Foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), que revolucionou a vida de centenas de pretos, pardos, pobres. Abdias alfabetizava o elenco, preparava os atores e incentivava a conscientização deles como cidadãos. O palco virou espaço para os negros marginalizados terem voz e exercitarem seu talento. Eles aprendiam sobre as próprias origens, aceitavam as raízes africanas, orgulhavam-se de ser quem eram. Abdias trabalhou a autoestima daqueles ex-escravos que quase não tinham deixado de ser ex, mais de 50 anos depois da Lei Áurea.
Graças ao TEN, Abdias ajudou a constranger o racismo nos palcos brasileiros, tirando a temática negra das coxias, acompanhado por artistas como Ruth de Souza, Santa Rosa e Milton Gonçalves. O TEN encenou Eugene O'Neill (Todos os Filhos de Deus Têm Asas), Lúcio Cardoso (O Filho Pródigo), Joaquim Ribeiro (Aruanda) e o próprio Abdias (Sortilégio), além de editar o jornal Quilombo, o braço editorial que aprofundava o debate teórico sobre o negro brasileiro, com colaborações de etnólogos do nível de Guerreiro Ramos, Arthur Ramos e Édison Carneiro.
Além da experiência bem-sucedida no teatro, o ativista dedicou parte da vida às atividades políticas. No exílio, durante a ditadura militar, aproximou-se de Leonel Brizola. Na volta ao Brasil, participou da criação do PDT (Partido Democrático Trabalhista). A igualdade racial tornou-se sua principal defesa e foi incorporada como bandeira pelo trabalhismo da sigla de Brizola. Foi deputado federal nos anos 80 e senador ao longo da década de 90. Sempre que discursava, reivindicava políticas de integração dos negros na sociedade brasileira. Políticas nacionais que nunca haviam sequer sido pensadas por qualquer governo.
Em 2006, Abdias festejou a adoção em massa de ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras. “Essa realidade de hoje, com cotas para negros, foi uma briga minha, nossa, do movimento negro, lá de trás, de anos”, recordou, já um pouco combalido, na cadeira de rodas. Com mais de um século de atraso, a igualdade começava a ser construída. E Abdias foi um dos responsáveis por tentar virar a página dos reflexos e do legado da escravidão. Um herói nacional que merece ser conhecido, estudado e celebrado pelos brasileiros interessados em preencher as lacunas da nossa História.
O único negro brasileiro, pois não. Abdias Nascimento surgia nas crônicas hiperbólicas de Nelson Rodrigues como um militante irredutível, capaz de esfregar “a cor na cara de todo o mundo”, numa solitária consciência racial. “Não conte com o Brasil, não conte com o brasileiro”, desaconselhou Nelson, ao vê-lo colher apoio para um movimento contra o apartheid na África do Sul, em 1968. “Somos não sei quantos milhões!”, reagiu Abdias. Naquele tom de espírito de porco, mas comprometido com o incipiente movimento negro, o dramaturgo enunciou o óbvio ululante: “Abdias, só há um negro, que é você mesmo. Não milhões, você, Abdias, só você”.
Abdias morreu no dia 24 de maio de 2011, aos 97 anos, no Rio de Janeiro, sem jamais ter deixado de denunciar as perversões sociais da escravidão: “Há preconceito racial no Brasil”, repetia até nas mais discretas oportunidades. Era um extraordinário provocador. O Concurso de Artes Plásticas, com o tema do “Cristo Negro”, atraiu as promessas de inferno da Igreja Católica. Nelson Rodrigues inspirou-se no amigo para escrever a peça “Anjo Negro”, mas frustrou-se seu velho desejo, não conseguiu levá-lo a interpretar um dos protagonistas. A fixação do escritor vingou em “Perdoa-me por me traíres”, na qual Abdias interpreta o deputado Jubileu de Almeida. Este nome pomposo veio de uma brincadeira onomástica do psicanalista Hélio Pellegrino; para o “Homero do Subúrbio”, “jubileu” estava mais para o nome de um deputado. Se quer saber, o jubiloso parlamentar só eriçava a sua juba quando uma mulher o chamava de “reserva moral da Nação!”.
Abdias não dispensou atropelos em outras personalidades essenciais para a valorização das contribuições do negro à cultura brasileira; talvez por vaidades arranhadas ou radicalismos infundados. Às vésperas da 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), realizada em 2006 na capital baiana, fui pautado pela brilhante repórter Cleidiana Ramos, editora do blog Mundo Afro, do jornal A Tarde, para ouvi-lo sobre a homenagem que seria prestada a sua militância pioneira no Brasil.
Perto do fim da conversa, naquela altura em que entrevistado e entrevistador parecem exaustos do confessionário, saiu-me, por algum diabo, o nome de Pierre Verger (1902-1996), o fotógrafo e etnólogo francês radicado em Salvador, autor do clássico estudo “Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos”. Verger, Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi integram o conselho de deuses da Roma Negra.
“Era um canalha!”, revidou Abdias, do outro lado da linha, como um personagem rodrigueano vocacional. “Era um canalha. Eu via como os negros se curvavam diante de Verger. Se os negros brasileiros tivessem vergonha na cara, escarravam na cara dele!”, completou, à beira de cumprir a sugestão, num imaginário torneio de cuspe à distância.
O “único negro” exerceu por duas vezes o mandato de senador, sob a liderança política de Leonel Brizola, no PDT. Por sobreviver ao século 20, Abdias alcançou conquistas impensáveis na década de 40, ainda que nunca tenha admitido a existência da tão surrada democracia racial. Mas poderia comemorar as cotas para negros nas universidades, um teatro menos eurocêntrico, o triunfo de jogadores como Pelé e Didi, a criminalização do racismo, a liberdade de culto do Candomblé, a liderança de Nelson Mandela na África do Sul e a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos.
“Acompanhei a luta dele (Obama), sofri com o que ele deve ter sofrido nessa campanha. Não foi uma coisa fácil. E o desassombro de ver um negro liderar no mundo. No Brasil, que tem essa fama toda de democrático, me lembro como fui esmagado quando fui senador”, remoeu Abdias, em entrevista a Terra Magazine.
Em março de 2011, numa cadeira de rodas e com sua bata africana, ele compareceu ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ansioso pelo primeiro discurso de Obama aos brasileiros. A ansiedade de quem ia à pré-estreia de uma peça sempre adiada pelo Teatro Experimental do Negro – e pelo Brasil. Faleceu dois meses depois.
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