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quarta-feira, novembro 20, 2019

Racismo e Preconceito na obra de Mário Ypiranga Monteiro



Em 1964, o professor Mário Ypiranga Monteiro publicou o livro “Roteiro do Folclore Amazônico – Tomo I”, que pretendia fornecer à cultura regional “elementos de extraordinária atualidade e veracidade, ficando dispensadas de uma vez por todas as falsas interpretações arrivistas”.

O livro era o primeiro volume de uma coleção chamada “Etnografia Amazônica”, com um total de 17 volumes, cujo objetivo seria fornecer um atestado da nossa emancipação cultural no setor das invenções populares.

O pioneirismo da coleção, entretanto, apenas deixou claro o preconceito do escritor em relação à cultura negra que, no nosso entendimento, teve uma importância fundamental na formação da cultura popular amazonense.

Vejamos o que diz o professor nas páginas 27 e 28 do referido livro:

“(...) Nem cedendo um pouco no campo da flexibilidade (limiar da tolerância) se poderia admitir uma frente de aculturação negra rompendo certos padrões de cultura locais. Impossível. Não é científico, como método geográfico-histórico moderno, admitir francamente influências negras no folclore amazoníndio sem romper com a lógica e com os fundamentos da história insignificante do negro, cuja presença pelo número, precária pela participação econômica, medíocre pelo contingente tradicional, foge de qualquer senso científico especulatório.

Os que criaram a fábula das influências negras no folclore nacional (respeitado o que é autêntico e permanente) esqueceram obviamente de que à época seria impossível, pelas distâncias arrasadoras, pela ausência de meios de transporte, pela natural e cruel inimizade entre índios e negros, e por outros fatores locais, haver um contato permanente e, portanto, derrame e absorção da falada cultura negroide.

Ignoram os que defendem a influência negra na cultura amazonense que o infeliz estoque servil só deixou de sua incipiente passagem pela terra pequenas manchas, insignificantes manchas culturais que vão perdendo a significação completamente eliminadas pelas culturas branquilóide e indígena. (...)”

A patacoada com um verniz supostamente científico prossegue pelas páginas 30 e 31 da obra já citada:

“(...) Em que nos baseamos para estas afirmações tão categóricas? No conceito de valorização do elemento indígena como expressão étnica-cultural. Inferiorizado perante o índio, biológica e numericamente, e mais tarde ao branco, o negro – minoria esmagada pelo fatalismo servil – criou um padrão de comportamento diferente, capaz de sobrepor-se aos padrões locais? Não tivemos agricultura, nem engenhos, nem casa-grande. As senzalas foram risíveis e efêmeras em comparação com as de outras regiões do Brasil e nem chegaram a ter expressão.

Se falarmos nos seringais, onde alguns negros efetivamente trabalharam, a partir de 1858, no eito cercado do barracão, veremos que a única coisa que ficou a lembra-lo foi o tronco, instrumento de tortura que passou ignominiosamente a servir aos hilotas brancos. E note-se que o tronco não é uma invenção do tempo do escravo, nem sequer fora com ele inaugurado no Brasil, decorrentemente, pois vem de mais longe, dos momentos trágicos da Inquisição. Não criamos uma sociedade patriarcal fundada na economia nem sequer da borracha, muito menos na da cana de açúcar.

Os negros de Manaus, quiçá do Amazonas, mesmo nos dias atuais, são quase todos oriundos do Maranhão, Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, etc. Parece-me que a maior concentração de quilombos existiu no rio Madeira e só encontrei nas crônicas oficiais duas nomeações para capitão do mato. Talvez, não afirmo, esse quadro se reproduza nos demais povoados e vilórios de então, pelo menos nos principais onde o volume de pretos é escasso em relação ao índice populacional.

O que é certo, indiscutível, o que não pode ser negado, é que a entrada de negros no Amazonas não só se fez muito tarde (1778, com dois indivíduos) como o foi em pequena quantidade. Falando-se da Amazônia, então, podemos culpar ao excelente padre Antônio Vieira pela introdução dessa mácula, ao redor do século XVII. E essa pequena quantidade não teve força para introduzir na bacia, esparramando por todas as póvoas indígenas então difíceis de alcançadas e reduzidas, uma cultura expressada em termos de valores estéticos orais. Realmente era impossível e de todo contrário à lógica histórica e econômica. (...)”



O contrário à lógica histórica e econômica é corroborar com esses equívocos do professor Mário Ypiranga Monteiro. Basta nos lembrarmos de que até o início do século 19 os costumes, manifestações e rituais africanos eram proibidos em nosso país, pois não faziam parte do universo cultural europeu e nem representavam sua visão de mundo, do ponto de vista filosófico. Eram vistos simplesmente como retratos ou recortes de uma cultura atrasada e condenada ao fracasso.

Foi somente a partir do século 20 que começaram a ser aceitos e celebrados como expressões artísticas genuinamente nacionais e hoje fazem parte intrínseca da cultura tupiniquim. O número de manifestações culturais afro-brasileiras é gigantesco: Afoxé, Bumba-meu-boi, Cacuriá, Capoeira, Carimbó, Ciranda, Congada, Escola de Samba, Folia de Reis, Frevo, Jongo, Maculelê, Marabaixo, Maracatu de Baque Virado, Maracatu de Baque Solto, Marujada, Negro Fugido, Reisado de Congo, Samba de Coco, Samba de Roda, Samba de Terreiro e Tambor de Crioula, para só citar algumas.

Essa nossa pequena contribuição sobre o assunto nasceu da necessidade de fazer um contraponto aos preconceitos divulgados pelo professor Mário Ypiranga Monteiro. Ela também tem a pretensão de mostrar que 80% da cultura popular amazonense, incluindo o folclore, sofreu forte influência direta ou indiretamente da cultura negra, afirmativa já corroborada pelo primoroso livro “O Fim do Silêncio – Presença Negra na Amazônia” (Edições Açaí / CNPq, 2011), organizado por Patrícia M. Sampaio e leitura obrigatória para quem se interessar pelo assunto.

Aliás, no livro “O Negro no Pará, sob o Regime da Escravidão” (Universidade Federal do Pará / Fundação Getúlio Vargas, 1971), um dos títulos da “Coleção Amazônica: Série José Veríssimo”, o cientista social Vicente Salles escreve textualmente que “a lúdica amazônica, no que tem de mais representativo, é essencialmente africana”.

(...)


(Texto extraído do meu novo livro “Marupiara – Antologia dos Festivais Folclóricos do Amazonas”, atualmente em fase de editoração eletrônica)

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