Camisas Negras: o time do Vasco
campeão carioca em 1923
Por Breiller Pires
Ao longo dos seus 120 anos de história, o Vasco da Gama foi campeão sul-americano, da Libertadores, da Copa do Brasil, quatro vezes do Brasileirão e outras tantas do Carioca. Mas nenhuma conquista no campo tem o mesmo peso de uma carta que, de tão emblemática, está exposta na sala de troféus em São Januário.
Em 7 de abril de 1924, o então presidente José Augusto Prestes assinou o manifesto que ficou conhecido como a Resposta Histórica, comunicando que o Vasco se recusaria a disputar a divisão principal do Rio de Janeiro sem seus jogadores negros, exigência que havia sido imposta pelos dirigentes da época.
A dimensão simbólica da atitude, considerada insurgente naqueles tempos em que o futebol de elite era privilégio dos brancos, transformou o clube cruzmaltino em estandarte da luta contra o racismo no esporte brasileiro.
“Para nós, de fato, esse documento é como um troféu”, afirma João Ernesto Ferreira, vice-presidente de relações especializadas do Vasco, ao justificar a exibição de uma réplica da carta na nobre galeria de taças. Consolidado no remo, o clube só começou a se destacar pelos gramados no início da década de 1920.
Sem a mesma tradição dos times da zona Sul do Rio na modalidade, a estratégia era montar elencos com jogadores das classes sociais menos favorecidas. A equipe campeã da segunda divisão em 1922 tinha como craques operários, choferes, pintores e faxineiros. Assim, assegurou o direito de disputar, no ano seguinte, a primeira divisão ao lado dos já consagrados América, Botafogo, Flamengo e Fluminense.
Com a base de trabalhadores braçais mantida no plantel, o Vasco desbancou favoritos, arrebatou 11 vitórias em 14 jogos e faturou o título do campeonato organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT).
Incomodados pela ascensão meteórica dos vascaínos, rivais decidiram criar uma nova liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), impondo ao clube apelidado de Camisas Negras, pela cor de seu uniforme, a exigência de excluir 12 jogadores que, de acordo com os cartolas, não apresentavam “condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. O analfabetismo foi uma das razões enumeradas pela liga para desqualificar parte do elenco campeão.
Por unanimidade, a diretoria cruzmaltina desistiu de integrar a AMEA e, então, endereçou a carta à liga esclarecendo por que rechaçava a ordem para abrir mão de jogadores negros e pobres.
“O ato público que pode maculá-los nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias”, detalha o quinto parágrafo da Resposta Histórica.
Enquanto os grandes clubes institucionalizavam o elitismo do futebol com a criação de um torneio paralelo, o Vasco via sua popularidade aumentar, sobretudo entre as camadas suburbanas da sociedade carioca, lotava estádios a cada jogo e, em 1924, voltou a sagrar-se campeão, dessa vez de forma invicta, do campeonato regido pela LMDT.
Diante do sucesso de público, renda e repercussão dos Camisas Negras, a AMEA resolveu admitir o Vasco em 1925. Até então, a liga alimentava a expectativa de ver o Cruzmaltino “constituir equipes genuinamente portuguesas” – em referência à colônia fundadora do clube –, “para uma demonstração esportiva das verdadeiras qualidades dessa raça secular”, conforme ofício assinado pelo presidente da AMEA em tréplica à Resposta Histórica.
Para o historiador Ricardo Pinto dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o aspecto econômico influenciou decisivamente tanto a defesa vascaína em nome dos atletas quanto a mudança de ideia dos cartolas sobre a exclusão do clube.
“O Vasco percebeu que não poderia sobreviver sem o talento de seus jogadores da classe trabalhadora, assim como a AMEA, mais adiante, entendeu que a incorporação daquele time que arrastava multidões aos estádios seria lucrativa. Houve retorno financeiro para os dois lados com a aceitação de atletas negros”, diz.
Pinto dos Santos, que trabalhou por seis anos no Vasco e ajudou a fundar o Centro de Memória em São Januário, argumenta que os dirigentes da época foram hábeis ao capitalizar a ampla divulgação da carta.
Embora não tenha sido o primeiro a contar com jogadores negros no Brasil, o clube ganhou fama de pioneirismo pela maneira como afrontou a discriminação da AMEA.
Antes, em 1905, o Bangu, time fabril do subúrbio carioca, já havia integrado o jovem Francisco Carregal, de 16 anos, à sua equipe. No fim daquela década, o clube se afastaria da LMDT por causa da restrição explícita a “pessoas de cor” entre os participantes da liga.
A diferença para o Vasco, porém, é que o time alvirrubro só foi chamar a atenção por seus bons resultados em 1933, quando conquistou o Campeonato Carioca.
“O primeiro campeão a ter negros no time foi o Vasco”, afirma João Ernesto Ferreira. “A classe social ou etnia dos jogadores não importava para o clube.”
O Vasco também foi o primeiro clube esportivo brasileiro a ter um presidente negro, Cândido José de Araújo, que ficou no cargo entre 1904 e 1906. No entanto, depois de Araújo, as esferas de poder vascaínas são marcadas pelo predomínio dos brancos.
Atualmente, entre membros da diretoria e da cúpula de conselheiros, apenas dois negros ocupam posições estratégicas em São Januário: Edmílson Valentim, presidente do Conselho Fiscal, e o vice-presidente Elói Ferreira, ex-secretário especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
A baixa representatividade de negros e pobres no comando é reforçada por barreiras como a cobrança de taxa de admissão a novos sócios, exigência de tempo mínimo de 10 anos no quadro associativo para candidatos a presidente e a manutenção de eleições indiretas.
Não há uma política permanente pela promoção da igualdade racial nem mesmo cotas para negros no plano executivo do clube. As ações se resumem a campanhas de marketing, como o lançamento de um uniforme retro inspirado nos Camisas Negras, ou parcerias esporádicas com instituições de combate ao racismo, a exemplo de um evento realizado em São Januário para divulgar o relatório anual do Observatório da Discriminação Racial.
Em seu site oficial, o clube não hesita em cravar que “o Vasco impediu o racismo no futebol”, em alusão à Resposta Histórica, mas os episódios de injúrias raciais continuam sendo parte da realidade no esporte, inclusive em seus próprios domínios.
Borges, último técnico negro da equipe, chegou a ouvir ofensas discriminatórias no estádio do Gigante da Colina ao fim de sua primeira passagem como treinador.
Em 2018, o zagueiro Paulão foi alvo de insultos racistas de torcedores vascaínos nas redes sociais.
Já nos bastidores, Elói Ferreira acusou o presidente Alexandre Campello de racismo após o mandatário trocar a fechadura de sua sala sem lhe comunicar. Campello considerou a acusação um ataque político com o intuito de difamá-lo e “desgastar a imagem do clube”.
“O Vasco não pode viver apenas de celebrar o passado”, diz Ricardo Pinto dos Santos. “Para manter a representação de clube comprometido com a luta contra o racismo, é preciso se engajar no presente. O futebol, como um todo, ainda reproduz as estruturas racistas da sociedade. Isso demanda um posicionamento mais enfático, um enfrentamento contínuo ao preconceito.”
Há 95 anos, a Resposta Histórica contribuiu para ampliar o alcance de um esporte elitizado a negros e pobres e foi um marco para a era do profissionalismo no futebol. Até hoje, a torcida vascaína reverencia a carta com os versos de um cântico aclamado nas arquibancadas: “Eu já lutei por negros e operários... Camisas Negras que guardo na memória”.
Mas o enfrentamento ao racismo ainda é uma página incompleta na história do clube que deve boa parte de suas glórias ao heroísmo dos ídolos negros.
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