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quarta-feira, novembro 20, 2019

Zumbi dos Palmares pecou pelo radicalismo



O livro “Palmares – A Guerra dos Escravos”, de Décio Freitas, ainda é a mais importante pesquisa histórica já realizada no Brasil sobre o Quilombo de Palmares. Lançado em 1973, foi o primeiro trabalho capaz de apresentar dados concretos sobre a identidade do líder negro Zumbi e a formação social de Palmares.

Décio Freitas, 73, historiador e advogado gaúcho, um dos principais estudiosos da escravidão no Brasil, contou à Folha, em sua casa em Porto Alegre, que escreveu o livro com recursos próprios. Inicialmente como exilado no Paraguai e depois percorrendo clandestino arquivos do Brasil, até viajar a Portugal, onde concluiu a pesquisa em diversos arquivos.

Freitas disse que resolveu estudar Palmares “para conhecer o meu país, tentar entender por que o golpe militar de 64 tinha acontecido. Sentia que precisava ir às raízes históricas”. Ele tem hoje uma visão diferente do líder negro Zumbi. “Acho que, se ele tivesse sido menos radical e mais diplomático, como foi seu tio Ganga-Zumba, teria possivelmente alterado os rumos da escravidão no Brasil.”

Freitas acha que ainda há muito a se descobrir sobre aquele episódio da história, mas não é otimista no que se refere à pesquisa arqueológica que vem sendo realizada na serra da Barriga, Alagoas.


O sr. estava exilado quando começou a pesquisa sobre Palmares?

É. Fui cassado pelo Ato Institucional nº 2, logo no início do golpe de 64. Quando o Jango foi derrubado, eu ocupava um cargo de confiança no governo em Brasília, presidia uma fundação federal, a Fundação Brasil Central. Fui morar em Montevidéu naquele ano, e logo que lá cheguei houve muitas conspirações para que fosse armado um contragolpe no Brasil. Eu participei dessa negociação. Nós pretendíamos, ao entrar no Brasil, lançar um manifesto dividido em duas partes: uma parte histórica, na qual nós nos apresentaríamos como continuadores das lutas populares, e a outra parte seria política e atualizada. Eu era do grupo encarregado dessa primeira parte. Foi então que, ao fazer a pesquisa para o manifesto, li pela primeira vez, em Varnhagen (Francisco Adolfo Varnhagen, 1810-1872, historiador brasileiro) algumas linhas sobre Palmares.

Por que Palmares?

Porque achei intrigante aquilo ali, tratado como um episódio quase policial por Varnhagen, prontamente debelado pelas autoridades. Comecei a descobrir coisas na Biblioteca Nacional de Montevidéu. Em Buenos Aires, na Biblioteca Nacional, também encontrei muita coisa. E então vim ao Brasil clandestinamente.

Como foi essa viagem?

Eu vim de trem até a fronteira, até Rio Branco, cruzei a ponte para Jaguarão e de lá vim de ônibus. De carro seria temerário. Primeiro vim a Porto Alegre, fiquei aqui algum tempo clandestinamente, trabalhando no Instituto Histórico e Geográfico. Fui ao Rio de Janeiro, trabalhei na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional. Depois, numa segunda vez, fui até Recife e Maceió. Na volta dessa viagem, comecei a ver que havia gente nos meus calcanhares. Então me refugiei na casa de uma senhora suíça, aqui em Porto Alegre, onde passei dois meses estudando Palmares. Na minha mesinha de trabalho tinha acima uma foto de Mussolini, porque essa mulher era fascista, tinha se casado com um italiano fascista.

As principais descobertas de sua pesquisa foram feitas em Portugal?

Exato. Em 1976, decidi ir a Portugal e fiquei seis meses pesquisando lá, por minha conta. Trabalhei muito, no Arquivo Histórico Ultramarino, no Arquivo da Torre do Tombo, na Biblioteca da Ajuda e no Arquivo e Biblioteca Distrital de Évora. Um pouco em Coimbra também. O problema dos arquivos portugueses é que eles não tinham nem sequer catálogo. Eu tinha que procurar caixa por caixa, maço por maço, apenas tendo em conta a época. Um trabalho extremamente sacrificado porque eu não era paleógrafo, e a linguagem do século 17 é de leitura muito difícil. Não havia xerox. Tive que recorrer a um fotógrafo para fotocopiar os documentos. Na volta, eu tornei a trabalhar no assunto e acrescentei muita coisa.

O sr. tinha consciência de que estava realizando um trabalho pioneiro sobre o tema?

Olha, os melhores textos que eu encontrei na época sobre Palmares foram o do Edison Carneiro, “O Quilombo dos Palmares”, e um ensaio de um escritor surrealista francês chamado Benjamin Peret. O ensaio dele dizia que os documentos portugueses falavam em vários Zumbis. Mas ele achava que havia qualquer coisa de falso naquela afirmação. Foi ele quem estabeleceu a data de 20 de novembro para a morte de quem ele supunha ser um dos muitos Zumbis. O Edison Carneiro retomou essa data depois. É isso que havia de mais desenvolvido sobre Palmares.

Qual foi a maior contribuição de sua pesquisa?

Bem, com relação a Zumbi especificamente, acho que foram as cartas do padre Antonio Melo, que criou Zumbi até os 15 anos. Mas eu encontrei, por exemplo, indicações da existência de Palmares em documentos do início do século 17, e não apenas depois da ocupação holandesa ou durante ela. E vi que foi um dos mais importantes problemas da colonização portuguesa no século 17. Do ponto de vista bélico, foi o mais importante. Eles empregaram mais força contra Palmares do que na guerra contra os holandeses. Quanto a Zumbi, todo mundo ainda se referia a ele como sendo o titular de um cargo ou posto militar. E por isso teria havido tantos Zumbis. Eu efetivamente entendia que não. Até que um dia, por mero acaso – e a pesquisa histórica depende muito de sorte também e do acaso –, eu encontrei uma consulta do Conselho Ultramarino, órgão de assessoria ao rei, em que se dizia ao rei que todas as certidões que diziam ter sido morto um Zumbi eram falsas, forjadas para que os chefes das expedições recebessem as mercês do rei. Verificou-se que Zumbi continuava vivo. Este foi o ponto de partida para estabelecer a identidade de Zumbi. Até que encontrei as cartas do padre Antonio Melo.

O que o sr. acha da pesquisa arqueológica que vem sendo desenvolvida na serra da Barriga por arqueólogos e historiadores brasileiros e americanos?

Eu vi que vocês da Folha publicaram isso. Eu acho que o que eles conseguiram até agora é muito precário para chegar a afirmações tão categóricas como, por exemplo, dizer que a presença indígena era muito grande em Palmares. É claro que havia indígenas entre eles. Mas os negros, sobretudo os de Palmares, não confiavam nos índios. Em todas as expedições contra Palmares, o mais forte contingente era de índios. Eles estavam aliados aos portugueses.

Mas o sr. acha possível encontrar, por meio da arqueologia, resquícios do quilombo?

Eu não tenho muita fé nisso, porque Palmares era um tipo de sociedade muito precária, em termos materiais. Eles usaram pedras nas fortificações do Macaco, mas o restante eram mocambos de madeira. Então, eu não vejo possibilidade de novas descobertas por meio de escavações.

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