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quarta-feira, novembro 20, 2019

Kizomba, festa da raça



Por Américo Souza

Em 1988 a Unidos de Vila Isabel cantou na Sapucaí o samba-enredo “Kizomba, festa da raça”. A música de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, encantou a todos, sendo decisiva para o título da escola, tornando-se, instantaneamente, um clássico do carnaval brasileiro.

Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil.

Já em seu primeiro verso – “Valeu Zumbi/ O grito forte dos Palmares/ Que correu terras, céus e mares/ Influenciando a abolição” – fica explícita a importância da resistência dos escravizados para a construção da abolição.

Esta compreensão só muito recentemente passou a compor os livros didáticos de história do Brasil, evidenciando que o conhecimento e, acima de tudo, a sabedoria, não são exclusividades dos Doutores da Academia, menos ainda dos que dirigem a educação nacional.

Para além da abolição, esta música nos ajuda a pensar sobre o lugar do negro na sociedade brasileira do pós-abolição. O seu segundo verso diz “Zumbi valeu/ Hoje a Vila é Kizomba/ É batuque, canto e dança/ Jongo e maracatu/ Vem Menininha para dançar o caxambu”.

Palavra de origem kinbundo língua africana originária do milenar tronco linguístico banto e que muito contribuiu para o vocabulário do português falado no Brasil, sendo, até hoje, falada em Angola, kizomba significa festa de exaltação da vida e da liberdade. A abolição trouxe conquistas a serem celebradas e o carnaval, festa maior do Brasil e fortemente marcada por elementos afro-brasileiros, é o grande espaço desta celebração; é mesmo a personificação da kizomba.

Em canção chamada “Dia de graça”, o genial Candeia afirma o lugar de destaque que o negro tem durante o carnaval quando diz “Hoje é manhã de carnaval(ao esplendor)/ As escolas vão desfilar (garbosamente)/ Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela (salve a Portela)”, para depois expor o outro lado, o da vida cotidiana, bem menos glamourosa: “Vamos esquecer os desenganos (que passamos)/ Viver a alegria que sonhamos (durante o ano)/ Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor/ Mas depois da ilusão, coitado/ Negro volta ao humilde barracão.”

Em pesquisa divulgada em 2012, sob o título “A Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira”, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) afirma que, a despeito dos avanços registrados nas últimas décadas, a situação da população negra no País continua bastante vulnerável, sendo maioria na composição dos segmentos com menor grau de escolaridade, menor nível de renda, maior índice de morte por violência e maior mortalidade infantil e materna.

Além disso, o Brasil está longe de ser o país da “democracia racial” preconizado por Freyre e os afrodescendentes ainda são alvo de contínuos processos de preconceito e estereótipo raciais.

Outra pesquisa, feita por entidades ligadas ao Movimento Negro carioca, apontou que no período do carnaval a presença do negro em matérias da imprensa sobre arte e cultura é bastante intensa, enquanto que, no restante do ano, o negro aparece hegemonicamente nas páginas policiais, ou em matérias sobre pobreza e áreas de risco.

Vivemos ainda uma situação de clivagem social definida pela origem étnica, como insinua o samba da Vila quando diz, “Nossa sede é nossa sede/ De que o Apartheid se destrua”. A diferença entre 1988 e 2013 é que a sociedade, quero crer, está mais disposta a levar a sério o problema e buscar uma solução.

Oxalá, possamos um dia proclamar que temos não um evento, como diz o samba, mas uma realidade social “Que congraça gente todas as raças/ Numa mesma emoção”, nos permitindo gritar a plenos pulmões “Esta Kizomba é nossa constituição”!



(*) Américo Souza é historiador e professor da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Este texto foi publicado no jornal O Povo (CE), em 10 de fevereiro de 2013.

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