Por Antonio Gonçalves Filho
Dois filmes que antecipam a histeria do mundo fashion e da cultura clubber, respectivamente A Elegante Polly Maggoo (Qui-Êtes Vous Polly Maggoo?) e Liquid Sky, estão de volta ao mercado em DVD e em plataformas de streaming.
O primeiro, dirigido por William Klein há 53 anos, é premonitório: em 1966, falava de modelos anoréxicas e estilistas fascistas antes mesmo de Vivianne Westwood encher a Portobello Road de perucas e lotar Notting Hill de peruas.
O segundo, rodado em 1982 pelo russo Slava Tsukerman, elege dois rivais da passarela, um andrógino viciado e sua versão mais feminina, ambos interpretados pela mesma atriz e acossados por extraterrestres que sugam o cérebro de viciados em heroína.
Os dois filmes são o que se convencionou chamar de cult movies, isto é, adorados por frequentadores do circuito subterrâneo. Polly Maggoo chega ao mercado pelo selo Magnus Opus. Liquid Sky, pela distribuidora Cult Classic.
A pergunta que se faz no primeiro filme, Qui-Êtes Vous Polly Maggoo? (Quem é Você, Polly Maggoo?) poderia perfeitamente caber à heroína – no sentido original do termo – de Liquid Sky.
Tanto na impiedosa sátira de William Klein à indústria da moda, que fabrica modelos e destrói pessoas reais, como no lisérgico exercício do russo Slava Tsukerman, o tema converge para a crise de identidade.
Na produção independente do russo, filmada nos EUA há 37 anos, essa crise é provocada pelo uso abusivo de drogas e estimulantes.
Ambos os filmes antecipam questões hoje amplamente discutidas em livros de sociólogos que se dedicam ao estudo do comportamento, entre eles o francês Michel Maffesoli.
Teórico da pós-modernidade e autor de conceitos como o da tribalização do globo, Maffesoli diz que a fragilização do sujeito no mundo contemporâneo levou à saturação do político e à criação de uma nova sociedade – hedonista, em que cada indivíduo é intercambiável, transformado em objeto para uso alheio.
Impressiona, portanto, que há mais de 30 anos Tsukerman trate, em Liquid Sky, do declínio do homem público e do advento de uma raça de narcisistas que parece mesmo vítima da síndrome de Asperger, aquela doença em que o sujeito parece incapaz de se comover com a dor alheia.
Klein, fotógrafo de moda antes de virar cineasta, convive com tipos assim há mais de meio século.
Na sequência mais perturbadora de Polly Maggoo, a do desfile de moda para uma impiedosa crítica, uma das modelos fere-se com a ponta do vestido de alumínio que o estilista desenhou – ou melhor, soldou – para ela. A moça reclama. Ele não liga. Diz que o show deve continuar.
Em seguida, pede à maquiadora que disfarce a mancha de sangue no ombro da garota, dando razão a Maffesoli quando, em A Parte do Diabo, trata do lugar do mal na sociedade contemporânea.
Polly Maggoo é uma vítima da própria inocência, usada como massa de manobra de um sórdido espetáculo, a cristã que vai ser devorada pelos leões da indústria de moda no coliseu das ilusões perdidas.
A história é relativamente simples. Ou deveria ser. Polly Maggoo é uma top model magra de 20 anos, nascida no Brooklin e vivendo em Paris. Após enfrentar o bizarro desfile de roupas de lata na abertura, é procurada por um produtor de televisão do tipo Esta É Sua Vida, interessado em mostrar como uma modelo suburbana chega a ser cobiçada pela plebe rude e por um príncipe de um surrealista país do Leste Europeu.
Klein, depois, viraria socialista e documentarista, desistindo do lado mais formal da nouvelle vague de Godard para seguir sua cartilha política.
Liquid Sky toca numa questão mais perturbadora, a da atração dos jovens pelas drogas e a alienação de seus corpos por companheiros tribais nas raves e discotecas.
Seu visual, hoje, pode parecer um tanto retrô, algo entre um exercício pop warholiano e a estética science-fiction de Blade Runner (os dois são do mesmo ano).
No entanto, por trás desse híbrido cruzamento, que não dispensa figurinos fellinianos e extraterrestres liliputianos que invadem Nova York (num disco do tamanho de um prato), Liquid Sky trata de uma questão séria: não estaríamos diante de uma mutação antropológica ainda não percebida pelos cientistas?
A sátira do russo Tsukerman (que voltou à carga há em 2008 com Perestroika) esbarra propositalmente no lixo do qual pretende se livrar: as drogas pesadas, que hoje constituem uma ameaça à população jovem maior que a aids, na época (anos 1980) uma doença ainda rara.
Os ETs do filme estão atrás de uma substância no cérebro dos viciados em heroína produzida na hora do orgasmo. Estacionam justamente no apartamento de Margaret, a modelo lésbica mutante cujo corpo parece um laboratório para experiências exóticas – não muito atraentes para o andrógino Jimmy, interpretado pela mesma atriz (Anne Carlisle).
Óbvio que Tsukerman está falando da juventude que viu nascer os clubes fechados e as raves. É certo que as últimas e as acid parties não surgiram naqueles anos 1980, mas um pouco antes, o que torna automaticamente a geração atual de frequentadores um bando de retromaníacos.
É essa a grande crítica do cineasta: esse espírito tribal é regressivo, massivo, regado a álcool e ecstasy. O objetivo não é a diversão, mas a autoimplosão, a alienação dos corpos, como se disse.
Tanto era assim para Tsukerman que a heroína do filme (a modelo, não a droga) consegue anular o parceiro quando atinge a volúpia. Seu orgasmo é assassino. Os invisíveis extraterrestres entram no cérebro da viciada e extraem de lá o material que levarão para a estratosfera.
Pode parecer engraçado, mas os ETs de Liquid Sky são criaturas tão invisíveis como ofensivas. Eles não precisam aparecer para constituir uma ameaça, pois ela já está presente no cérebro de suas vítimas, jovens não mais reconhecíveis aos olhos dos próprios pais e amigos, zumbis que vagam pelas raves como carcaças imprestáveis.
O preço da heroína, na Inglaterra, caiu para 54 libras. Mais de 300 mil jovens no país que inventou a minissaia e os Rolling Stones são dependentes da droga, obrigando os cofres públicos a destinar 13 bilhões de libras anualmente para atendimento médico a viciados.
Polly Maggoo e Liquid Sky só abriram a caixa de Pandora. E isso faz um bocado de tempo.
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