Alcides Caminha, em 1991, logo após a revista "Playboy" ter descoberto que ele era Carlos Zéfiro
Por Joaquim Ferreira dos Santos
A editora telefonou pedindo que eu escrevesse um texto para apresentar a nova edição das revistinhas pornográficas de Carlos Zéfiro. Eu poderia fingir espanto de rapaz fino. Como assim??!! Eu??!! Eu sou biógrafo de Antonio Maria, minha filha! Poderia olhar para trás e perguntar ofendido se a moça não tinha cometido erro de pessoa. Estais me estranhando?!! Eu sou prefaciador de Tom Wolfe, minha senhora! Pensei em alegar zelo pela imagem. Qualé??!!
O problema é que o passado me condena.
Levantei os dois braços, rendido. Ok, chegaram no cara certo. Era comigo mesmo, e escreveria a apresentação com o mesmo prazer que em “A vizinha”, uma das revistinhas, um certo Lúcio empresta sal e todo o doce consolo de que dispõe para a Elza do 302. Li os quadrinhos de Zéfiro nos anos 60, como era a sina dos moleques no tempo. Descabelava-se o palhaço. Ia-se ao cinco contra um. Descascava-se toda a bananeira. Casava-se com a canhota. De nada me arrependo, muito menos de todo esse cabelo na palma da mão. Ainda bem que Carlos Zéfiro estava por perto com suas freiras taradas dispostas a ajoelhar e, ave Maria, rezar um padre-nosso. As suas secretárias da pá virada queriam mais e mais, as priminhas assanhadas ansiavam por espremer minhas espinhas e me ajudavam a varrer para a sacristia a culpa católica que melava o assunto.
Fazia escuro no corpo e não havia uma Playboy, não havia uma loja de conveniências eróticas para iluminá-lo. Bastava um mau pensamento para se pagar com um chorrilho de salve-rainhas. Zéfiro, antes do Sexy Hot no meio da sala de jantar, antes das aulas de vibradores da Sue Johanson, foi ele quem ensinou o Brasil a transar de luz acesa e sem o lençol por cima. Eu escrevi na tal apresentação das revistinhas que Zéfiro libertou a libido nacional. Acho que não viagrei demais nos sentidos.
Sexo ainda não era crônica, nem cinema, nem poesia. Sexo era drama, uma ciência oculta que poderia deixar cego quem se excedesse na masturbação. Os meninos queriam tanto sexo quanto querem os de hoje, mas esbarravam num grande e complacente problema. As meninas, infelizmente, ainda não eram as de hoje. Não davam. A música “Não existe pecado do lado de baixo do equador” foi feita muito depois. Foi Zéfiro, quando Chico Buarque ainda estava roubando carro em São Paulo, talvez por estar vivendo aqueles tempos de repressão sexual, talvez sem ter com quem fazer um pecado safado suado e a todo vapor, foi Zéfiro quem começou o esculacho, olha aí sai de baixo. Ele foi professor.
Carlos Zéfiro deu a toda uma geração lá atrás – e essa expressão vai como metalinguagem dúbia para saudar o estilo do cara – as primeiras lições de um assunto que hoje está em qualquer malhação das seis. Sexo, essas quatro letrinhas que molham, que suam, que arfam, que fazem o maior barulho na madrugada do condomínio, elas não eram impressas assim sem mais nem menos em papel de família.
A primeira vez que eu vi a palavra pulsando escrita, cheia de veias, foi na capa do livro de Fritz Kahn sobre vida sexual, um tesouro triste que este pequeno pirata descobriu escondido na gaveta lá de cima do armário de papai. Levei um susto quando comecei a ler. Tinha gosto de óleo de fígado de bacalhau. Falava de sexo como se fosse uma aula de medicina legal.
Zéfiro era alegre. Corria uma cachoeira de dentro de suas musas carnudas de nome Suzete, Alzira, Margô, todas em eterno dilúvio de lubrificação espontânea. Kahn, como o goleiro alemão, era assustador. Suas virgens vinham banhadas num rio de sangue, prontas para sofrerem as feridas de algum tipo de empalação medieval. Prazer era privilégio macho. Não entendo como no meio de tanto palpitório sobre sexualidade ainda não se traçou uma linha entre a frigidez das mulheres hoje na faixa dos 40, 50 anos e as primeiras notícias que elas tiveram sobre o assunto, certamente lendo o capítulo sobre defloramento no livro de Kahn. Sexo era terror obscuro, segredo liberado apenas para quem se deixasse benzer pelos óleos nupciais. De sacanagem mesmo, apenas o fato de que ninguém comia ninguém.
Com seus desenhos toscos, Carlos Zéfiro preparava o prepúcio nacional para um dia que parecia não chegar nunca. Seus mancebos bem aquinhoados, espadas monumentais cravando a marselhesa libertária em solo pátrio, ensinavam o leitor a seduzir uma mulher. Como fazer em meia dúzia de quadrinhos que ela mudasse de opinião e, principalmente, em que posições atuar depois. Não havia filme pornô. Na televisão, em “O direito de nascer”, Albertinho Limonta beijava de boca fechada. Zéfiro foi um Nureyev tropicalista. Ensinou ao país o pas-de-deux horizontal e levou os olhos de um garoto pelo primeiro zapping por todos os muitos canais do corpo de uma mulher em movimento.
Antes de Zéfiro, elas vinham imóveis, todas dentro de revistas suecas de naturismo. Eram glabras, não por uma depilação erótica ao estilo brazilian wax, mas por censura. Pentelho, nem pensar. As suecas estáticas, no meio de algum campo de arroz, inspiravam na molecada o mesmo desejo que os novos modelos da Frigidaire. Tempos de tesão glacial. Genitálias congeladas.
Já as mulheres de Zéfiro saltavam fogo pelos olhos, bundas franqueadas em corcoveios sem qualquer cerimônia, pecadoras jamais arrependidas que gemiam em ai, em ui, em ipsilone. Inventavam vogais incandescentes que ajudavam a passar, junto com os esgares fabulosos de seus rostos, a esperança e urgência de que um dia você, meu garoto, seria o herói num daqueles quadrinhos.
Algumas intelectuais, mal-amadas não introduzidas na festa, acusavam Zéfiro de machista. Mentira da cabeça grossa. As mulheres das revistinhas tinham todas o que bem mereciam e hoje professa o bom feminismo de raiz. Orgasmos aos montes. Se isso não for o néctar da coisa, eu não entendi nada da leitura de Shere Hite. Pré-Marta Suplicy, nosso pornógrafo avisava, sem retórica, apenas com sua caneta dura, direto ao ponto G, que entre quatro paredes valia tudo, pois é tudo da lei. Cada um dava o que lhe aprouvesse e sem preconceito. Anal, oral, homossexual, decúbito dorsal, duplo mortal.
Tudo sem necessidade de paixão, amor, qualquer desses drops dulcora que na literatura são enrolados um a um e servem de passe para justificar a entrega das carnes. Era a imaginação no poder, o tesão nacional educado para a alegria. Só os vilões brochavam. Zéfiro não. Agora de volta às bancas, você vai ver que ele continua impávido e colosso. A saga de seus heróis pode soar ingênua, mas – pergunte à vizinha dona Elza se ele não quer mais sal – continua de pé.
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