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terça-feira, novembro 05, 2019

Dois papos ligeiros sobre censura (2)



Por João Máximo

Toda censura é burra, não é demais repetir. A censura que veta, proíbe, condena, oculta o que o artista cria para ser visto, lido ou ouvido por todo o mundo. Censura diferente daquela a que me referi, de sugerir idade, hora e lugar mais adequados para que a obra de arte seja mais bem apreciada. Sugerir, sim, nunca proibir. Quando nos lembramos que, na flor de seus vinte anos, Vinicius de Moraes foi censor de filmes, podemos apostar que sua tarefa era somente a de dizer com que idade podia-se ver, por exemplo, sua favorita Marlene Dietrich em “O anjo azul”, filme bastante ousado para... 1930. Hoje, Vinicius estaria rindo de tudo aquilo.

São muitos os exemplos de burrice cometida por nossos censores. Bastaria um dia consultando os guardados do Arquivo Nacional, na Praça de República, Rio de Janeiro (como já fiz, na companhia da repórter e pesquisadora Mariana Filgueiras), para se reunir material tão farto que não caberia num só volume. Principalmente, de 1964 a 1984, os tais anos dos quais ainda há quem tenha saudade.

Escolho uma arte em que os danos não têm sido tão graves: a música. De fato, raros são os casos como o de Geraldo Vandré, cuja carreira foi interrompida por causa de uma canção, “Para não dizer que não falei das flores”, cujo sentido só foi percebido pelos censores quando, cantada em coro por todo o Maracanãzinho, virou uma espécie de hino contra a ditadura. Naqueles tempos, a música era um dos alvos mais frequentes da burra sanha dos censores.

Em defesa da moral da mulher brasileira, pela preservação do idioma pátrio, para manter longe o comunismo ou para não se falar de assunto tão incômodo como a homossexualidade, tudo era motivo para o censor sacar sua arma: caneta.

Em 1971, inspirado no interesse do cantor Mário Rei pelos pregões da Bolsa, Chico Buarque dedicou-lhe um samba repleto de termos usados no mercado de ações: “Comprei na bolsa de amores/As ações melhores que encontrei por lá/Ações de uma morena dessas/Que dão lucro à beça/Pra quem sabe jogar/ Mas o mercado entrou em baixa/Estou sem nada em caixa/Já perdi meu lote/Minha morena me esquecendo/Não deu dividendo, nem deixou filhote”.

O censor não só vetou o samba, que só chegaria ao público 22 anos depois, como se permitiu um aparatoso comentário:

“O autor parece estar de uns tempos para cá muito preocupado em denegrir a reputação de todas as mulheres, vide uma de suas últimas composições, ‘Minha história’, que relata a vida de um homem filho de uma prostituta”.

O censor não entendeu a versão de Chico para “Gesùbambino”, canção do italiano Lucio Dalla. E “todas as mulheres”, no caso da letra em português, era apenas uma pobre mãe transformada em prostituta pelo censor.

A língua portuguesa, sua preservação, seu compromisso com o bom gosto e, principalmente, o que certas palavras podem querer dizer (sem dizer), estavam entre as preocupações dos censores, entre estes o beque direito da seleção brasileira de 1950. Se até poemas de Mário de Andrade (1893-1945) foram cassados pela ditadura, imaginem os sambas de Adoniran Barbosa, quase todos no idioma coloquial, com erros e gírias próprios da população paulistana mais pobre. Cinco de seus sambas foram censurados em 1973, um deles inédito.

Uma censora culta achou de mau gosto versos que falavam em “tauba de tiro ao álvaro” e rimavam “artomorve” com “revorve”. Pelo menos, deu conselhos ao compositor: regravar coisas como “O Arnesto nos convidô prum samba, ele mora no Brás/Nóis fumo e não encontremo ninguém?/Nóis vortemo cuma baita duma réiva/Qui dôtra vez nóis num vai mais...” assim: “O Ernesto nos convidou para um samba, ele mora no Brasil/Nós fomos e não encontramos ninguém/ Voltamos com baita de uma raiva/Em outra vez não vamos mais”. Conselho que Adoniram achou por bem não seguir.

Censuras musicais contra a esquerda podem vir mais de cima, de gente “mais preparada” para evitar qualquer ameaça que surja, inclusive na música. Pois foi justamente um ministro, o da Justiça, Armando Falcão, quem proibiu que o balé “Romeu e Julieta”, produzido e transmitido pela BBC de Londres para mais de cem países, comprado e anunciado pela TV Globo, fosse exibido em 1976. Motivo: sendo russo, o Balé Bolshoi “poderia apresentar uma leitura comunista da tragédia de Shakespeare”. Aproveitou-se a ocasião para se negar os vistos para que o Bolshoi se exibisse no Brasil, como vinha sendo tentado por quase um ano.

Foi também política a censura a “Calabar, o elogio da traição”, peça musical de Ruy Guerra e Chico Buarque, escrita em 1973 para ser encenada no ano seguinte. Não foi. Partiu do Ministério do Exército a proibição –– da peça, do título e até da proibição, que não podia ser divulgada. Na história, Domingos Fernandes Calabar passa de traidor a herói ao se unir aos holandeses contra os portugueses, em 1632, durante a Insurreição Pernambucana. O texto de Chico e Ruy fala de ações contra o povo, abuso de poder, tortura, a má herança lusitana, detalhes incômodos ao governo militar.

Mas foi permitido a Chico gravar um disco com as canções, desde que certos reparos fossem observados. Nada de título, nada de capa chamativa, nada de canções como “Vence na vida quem diz sim”, debochada apologia da subserviência, e “Ana de Amsterdam”, a da cama, da cana, fulana, sacana. “Bárbara”, canção que fala do amor de Ana por ela, só não foi censurada porque um dos censores, numa de inteligente, garantiu que uma simples mudança na letra já gravada jogaria para debaixo do tapete a clara menção ao amor de uma mulher por outra. Tudo bem. Nos versos “Vamos ceder enfim à tentação de nossas bocas cruas/E mergulhar no poço escuro de nós duas”, a voz de Chico é apagada sobre a palavra duas. Já em outros versos, o censor deixou passar “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua”.

São casos antigos para reconhecer que a censura já foi mais dura do que a que pode se institucionalizar no Brasil de hoje. Mais dura, mas não necessariamente menos burra.

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