Por Ruy Castro
Na Nova York dos anos 20 e 30, ninguém podia considerar-se a salvo das frases e gozações da turma que compunha a famosa “mesa-redonda” reunida diariamente no hotel Algonquin. Entre os alvos favoritos daqueles escritores e jornalistas, estava um amigo e colega deles: Harold W. Ross, fundador e editor da revista The New Yorker, na qual quase todos trabalhavam ou colaboravam. Ou seja, Ross era o patrão (e generoso nos pagamentos), mas nem assim o poupavam. E, conhecendo bem seu temperamento estouvado e cômico, faziam questão de que ele soubesse das piadas. Pois um livro recém-lançado nos EUA, Letters from the Editor – The New Yorker’s Harold Ross (Thomas Kunkel, org., Modern Library, 428 págs., US$ 15,95), com centenas de cartas e memorandos que ele escreveu de 1917 a 1951, faz finalmente justiça ao homem. Harold Ross era um gênio como editor de revista.
Ross tinha 33 anos quando lançou a New Yorker em fevereiro de 1925. A revista, previamente anunciada como a publicação mais sofisticada que os EUA jamais veriam, foi um retumbante fracasso nos primeiros meses – chegou a ser considerada “um dos maiores fiascos de 1925”. Entre outros motivos, porque era ruim mesmo.
Ross ainda não acertara o ponto e, no começo, seus amigos do Algonquin – Robert Benchley, Dorothy Parker, Alexander Woollcott, Ring Lardner, Herman J. Mankiewicz, Robert Sherwood, George S. Kaufman, Franklin P. Adams, a nata do humor americano – não se dispuseram a colaborar regularmente.
Sem anúncios, sem circulação e reduzida a menos de 50 páginas, The New Yorker só não fechou pela obstinação de Ross, que vendeu os móveis e empenhou as jóias de sua mulher, Jane Grant, para manter a revista respirando. Foi salvo à beira do precipício pelo dinheiro injetado por seu sócio, Raoul Fleischmann, herdeiro da célebre marca de fermento e que, com isso, se tornou acionista majoritário. Em 1927, como se estivesse sendo engrossada com maizena, The New Yorker aprumou-se e começou a crescer. No fim da década, já era um sucesso editorial e comercial, e não seria abalada nem pela depressão pós-estouro da Bolsa em 1929.
As piadas que se faziam com Ross no Algonquin tinham a ver com sua aparência e ignorância. Ross era desajeitado, muito feio (tinha uma falha entre os dentes frontais na qual caberia, fácil, outro dente) e frenético – exceto em emergências, não conseguia ficar sentado (ou de pé) por mais de dois minutos. Quanto a seus conhecimentos, as paredes do Algonquin quase desabaram quando ele perguntou (a sério) na mesa-redonda: “Afinal, Moby Dick é o homem ou a baleia?” Ross podia não saber de literatura, de música ou de artes plásticas, mas tinha uma qualidade já então rara em jornalistas: sabia ler – no sentido de que, se sobrevivesse a seu lápis, qualquer texto alheio sairia enxuto, coerente, perfeito.
Esse perfeccionismo no detalhe era estendido à sua idéia do que uma revista deveria conter: rigoroso equilíbrio e ritmo entre as matérias (artigos, reportagens, cartuns, serviço), as quais deveriam ter em mente o interesse do leitor e o interesse público. Quando se tratava de fazer revista, Ross enxergava a floresta, a árvore e a folha: em poucos anos, The New Yorker deixou de ser uma revista apenas “sofisticada” para dar shows de reportagem, análise e criatividade no resto da imprensa americana, nisso incluindo sua arqui-rival Time, de Henry Luce.
Vários livros anteriores sobre a revista têm ressaltado a importância de Ross: Here at The New Yorker, de Brendan Gill, The Years with Ross, de James Thurber, e até Ross, The New Yorker and Me, de Jane Grant (de quem ele se separou sem ser correspondido). Mas, mesmo esses livros não conseguem ignorar o folclore que o cercava: seu permanente desespero com o fechamento da edição, com a incompetência de sua equipe e com a preguiça dos colaboradores – tudo levado a um exagero caricatural e compensado logo depois com cargas de elogios à competência da mesma equipe e com reajustes e gratificações salariais. Esse folclore tem turvado as fantásticas realizações de Ross como editor, muitas das quais se tornariam padrão na melhor imprensa mundial. O livro de suas cartas (para funcionários, amigos ou inimigos) mostra, pela primeira vez, o próprio Ross falando. É nelas (não importa o destinatário) que se percebe o que ele fez.
Ross cuidava de tudo na redação: contratava e demitia, criava assuntos, aliciava colaboradores e, nas emergências, juntava-se à redação nos fechamentos. Apesar de fazer-se cercar por editores tão exigentes quanto ele (Katherine e E.B. White, Wolcott Gibbs, Rogers Whitaker, William Shawn), lia cada original (dando palpite até nas vírgulas), discutia a precisão das informações e sugeria fontes quentes para os repórteres. Era um jornalista completo, mas não se contentava com isso: interferia também na publicidade e na administração.
Mesmo nos tempos de penúria financeira, estabeleceu a regra de recusar anúncios obviamente mentirosos ou de mau gosto e vetou matérias sobre hotéis ou resorts “restritos” (ou seja, que não aceitavam judeus). Num memo de 1932, deu um exemplar puxão de orelhas em seu patrão Raoul Fleischmann, por este ter pedido, por intermédio da redação, ingressos para a estréia de um show – Ross insistia em que a revista não pedisse ou aceitasse nada de graça. E, isso, apesar da mudança de seu status em relação a Fleischmann: ao ver que a revista se viabilizara, Ross vendera-lhe suas ações, reduzindo-se a funcionário da empresa que criara – para não perder o “ponto de vista dos empregados”.
Foi Ross, ao contratar a jovem Janet (“Genêt”) Flanner, como correspondente em Paris, quem estabeleceu a máxima que deveria ser seguida por todos os correspondentes: “Não quero saber o que você pensa sobre o que acontece em Paris. Quero saber o que os franceses pensam.” Falando de correspondentes, Ross recusava-se a ter um fixo em Hollywood, embora o cinema e suas fofocas fossem a diversão maciça dos americanos nos anos 20 e 30 (e ele fosse amigo pessoal de James Cagney, Ginger Rogers e Orson Welles).
Pelo mesmo motivo, vetou a idéia de uma coluna permanente sobre rádio, cuja força era então equivalente à da televisão hoje. Não era bem um preconceito contra o cinema e o rádio — porque, para Ross, Wall Street também não merecia uma coluna fixa. Segundo ele, os assuntos deviam valer pela notícia, não pela importância que seus militantes se auto-atribuíam.
Ross inventou Dorothy Parker como crítica de livros e, depois dela, entregou a coluna literária a Edmund Wilson (o que equivalia na época a contratar J. Edgar Hoover como chefe de segurança do prédio). Ross ajudou a fazer muita gente, mas gostava também de atrair os pesos pesados para a revista, desde que os admirasse – Hemingway, H.L. Mencken, S.J. Perelman, John O’Hara, Rebecca West – e dava um jeito de que eles fossem pagos de acordo. E foi também o responsável pela eternidade das capas da New Yorker, ao decidir que elas não teriam personagens reconhecíveis (vetou uma capa com Hitler no apogeu da 2ª Guerra, alegando que ninguém podia garantir que Hitler durasse até a semana seguinte). O fato de que, hoje, livros com as capas da New Yorker (algumas datando de 75 anos!) vivem sendo publicados é a prova de que ele estava certo.
Ross criou até o cartum moderno. Foi o primeiro a fazer com que as falas dos personagens se reduzissem a uma linha (uma única fala, e não mais a pergunta e resposta tradicionais). O cartum ideal era aquele que integrava desenho e palavra e que não podia ser entendido sem um desses elementos. (No Brasil, temos um exemplo clássico, da autoria de Jaguar: Cristo pregado na cruz, dizendo para uma invisível Maria Madalena, “Hoje não dá, Madalena. Estou pregado.” Desenho e fala não querem dizer nada isoladamente, mas juntos desfecham o riso. Viva Ross.)
Outra sacada de Ross: se há mais de um personagem no desenho, o que fala deve estar com a boca aberta, para que não haja dúvida. Daí a piada que corria no Algonquin: Ross brandindo um cartum pela redação e perguntando, desvairado, “Qual dos elefantes está falando???”. E sabe quais eram os cartunistas com quem ele falava grosso na New Yorker? James Thurber, Peter Arno, Charles Addams (criador da Família Addams), Otto Soglow (criador do Reizinho) e um jovem rumeno que Ross chamou, em 1942, de “a maior revelação dos últimos 50 anos”: Saul Steinberg.
Ross se detinha sobre cada cartum para certificar-se de que, no desenho, as roupas estavam abotoadas do lado certo, os degraus de uma escada obedeciam à escala correta ou as portas não se abriam ao contrário. Para ele, erros assim eram prejudiciais ao entendimento do cartum. E treinou seus diretores de arte para decidir qual desenhista era mais adequado a esta ou àquela ideia e vice-versa. Um cartunista podia submeter-lhe uma ideia e ele gostar dela, mas achar que ficaria melhor se desenhada por outro. Ou um desenho ter várias falas possíveis e ele submetê-lo à redação até que alguém surgisse com a fala ideal. Ross morreu em 1951, mas a New Yorker manteve até hoje seus critérios. Daí, nesses 94 anos, raramente ter publicado um mau cartum. Há uma ciência nisso.
Quando a New Yorker se impôs como o máximo da “sofisticação”, seus leitores passaram a reagir como tal, mas Ross era contrário a adulá-los. O único critério sobre se um artigo sairia ou não era a sua qualidade – ele não queria saber se o tal artigo se adequava ou não ao “perfil” do leitor. Da mesma forma, proibiu campanhas publicitárias sobre a New Yorker em outros veículos – o melhor comercial de uma revista era a sua excelência editorial, insistia Ross, e não frases ocas dizendo que ela era ótima. E sugeria que o dinheiro gasto em publicidade fosse dirigido à redação, para que ele pudesse pagar melhor aos colaboradores.
Um desses colaboradores era o repórter John Hersey, que ele mandara cobrir a guerra na costa do Pacífico. Quando os EUA arrasaram Hiroshima, Ross pediu a Hersey um relato (do tamanho de que precisasse) do que significava uma cidade ser atingida por uma bomba atômica. A matéria, intitulada Hiroshima, tomou a edição inteira do dia 31 de agosto de 1946 e marcou a virada decisiva da New Yorker como uma revista “séria”. Mas ela já era assim pelo menos desde Pearl Harbor, em 1941 – nos quatro anos seguintes, Ross despachara 13 repórteres para o front e produzira edições “pônei” semanais da New Yorker (24 páginas em formato menor, sem anúncios), especialmente para as tropas americanas. O próprio Churchill era leitor da revista. E, muito antes disso, Ross já era tão ciente de sua importância que, certa noite de 1934, quando um amigo convidou-o a jantar com Gertrude Stein, ele mandou um bilhete de volta: “Cago para Gertrude Stein. Se quiser jogar gamão esta noite, estou às ordens.”
Ross falava chulices e palavrões o tempo todo, mas, até sua morte, em 1951, não admitiu uma única palavra dúbia na revista, nem mesmo a respeito de funções intestinais. E, à sua maneira quase rústica, ele podia ser também elegantíssimo. Certa vez trancou-se no toalete da revista com o original de um longo artigo submetido por um colaborador. Uma hora depois, descobriu que o rolo de papel higiênico estava vazio. No mesmo dia, escreveu uma carta para o colaborador, explicando que o artigo sumira misteriosamente enquanto estava sendo analisado para publicação.
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