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quinta-feira, novembro 07, 2019

Mosquito: a história do pior inimigo do homem



A malária é a principal causa de mortes em Angola

Por Sara Sá, de Lisboa

Ligar o Atlântico ao Pacífico era um sonho antigo. A obra de engenharia mudou o curso do transporte de mercadorias e é, atualmente, considerada uma maravilha do mundo moderno. Mas a história da construção do canal do Panamá é feita de avanços e de recuos e de uma transmissão de poder, da França para os Estados Unidos da América, que até hoje ainda não foi bem digerida pelos franceses.

Quando começaram a obra, na segunda metade do século XIX, os franceses estavam preparados para uma série de adversidades naturais, como as montanhas, além da densa floresta tropical que teria de ser derrubada, e obviamente para os desafios da engenharia da construção de uma passagem marítima com quase 80 quilómetros de extensão. Mas o adversário com que não contaram era imprevisível. Cerca de 85% dos trabalhadores do canal foram hospitalizados e 22 mil perderam a vida, à conta de intensos vómitos, icterícia e febre alta.

Ninguém sabia de onde vinha este mal, mas a má fama espalhou-se rapidamente. E nem com a promessa de ordenados chorudos foi possível convencer alguém a aceitar trabalhar ali, naquele local “amaldiçoado”, onde o ar “impuro” tinha cheiro a morte. As dívidas foram-se amontoando e, a dada altura, os franceses entraram em bancarrota e acabaram por vender, por uma pechincha, os direitos de exploração aos Estados Unidos da América.

Antes de iniciarem a obra, os norte-americanos trataram de tentar perceber de onde vinha a doença. Uma experiência arriscada, em que um mosquito foi levado a picar uma pessoa doente, picando de seguida um voluntário (provavelmente à força) saudável, comprovou a tese de que a “culpa” era do Aedes aegypti, que transmitia o vírus da febre-amarela (assim chamada por causa da cor que os pacientes ganhavam quando a doença atacava o fígado).

O caso do canal do Panamá é talvez o mais paradigmático exemplo da relação tumultuosa entre o Homem e o mosquito. Mas o poder que este inseto tem de mudar o curso dos acontecimentos percorreu toda a História da Humanidade. Como mostra um livro publicado recentemente pelo historiador norte-americano Timothy C. Winegard, The Mosquito: A Human History of Our Deadliest Predator (O Mosquito: Uma História Humana do Nosso Predador Mais Mortal, numa tradução livre).

Da criação da Grã-Bretanha ao extermínio dos dinossauros, os mosquitos estiveram lá sempre. Até o início do cristianismo, como uma religião que cura e cuida, terá tido origem na necessidade de tratar as vítimas da malária, outra doença transmitida pelo inseto e que é a grande responsável pelo título de principal assassino entre o reino animal.

Segundo a estimativa do autor norte-americano, dos 108 mil milhões de pessoas que já viveram na Terra, 52 mil milhões terão sido vítimas do inseto, ou melhor: de doenças transmitidas pelo animal. Roma foi salva, várias vezes, pelo ataque do mosquito Anopheles. Só a malária travou a invasão comandada por Átila, o chefe dos hunos. Nas terras pantanosas em redor do rio Pó, legiões de mosquitos derrotaram os soldados invasores, virgens à infeção por malária. Também Alexandre Magno e o chefe dos visigodos, Alarico, sucumbiram à doença. Hitler mandou inundar os pântanos que circundam Roma e Nápoles para reintroduzir a doença e obrigar os italianos a ceder. E assim continua o livro.

“É preciso sublinhar que os insetos não são um predador”, começa por corrigir Carla Sousa, investigadora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. Como sabemos, o inseto não nos elimina diretamente. São as doenças por ele transmitidas a causa da mortandade. À cabeça na estatística vem a malária, que ainda hoje mata quase meio milhão de pessoas por ano, sobretudo crianças com menos de 5 anos, mais de 90% das quais em África. Mas este também é um vetor – organismo capaz de transmitir uma doença, sofrendo o mínimo de impacto possível – de outras doenças como zica, dengue, chikungunya ou elefantíase. É por isso que a professora de Parasitologia faz o segundo reparo: “Quando falamos do impacto dos mosquitos, estamos a referir-nos a várias espécies.” Só no caso da malária, há 70 espécies diferentes capazes de transmitir o Plasmodium.

Das 3 500 espécies conhecidas de mosquitos, só 6% destas são capazes de transmitir alguma doença aos humanos. As restantes vivem de plantas e do néctar de fruta. Há duas características que tornam o mosquito um vetor tão eficaz. A primeira delas é a necessidade de efetuar uma refeição sanguínea, a chamada hematofagia. “A transmissão está intimamente relacionada com a necessidade de as fêmeas se alimentarem de sangue”, nota Carla Sousa. Sem sangue, os ovos não se desenvolvem e a fêmea não faz a postura. Os mosquitos estão também muito bem adaptados aos humanos e ao ambiente em que vivemos, quer seja rural quer seja urbano. Esta adaptação acontece entre os três elementos: o mosquito, o Homem e o agente patogénico, que vive dentro do inseto e escapa incólume ao seu sistema de defesa.

Esta grande adaptação significa que é muito difícil combatê-los. Além disso, são animais com um ciclo de vida muito curto, à volta de um mês. Isto possibilita que qualquer característica vantajosa que surja num indivíduo – uma mutação genética que lhe confira resistência a um inseticida, por exemplo – rapidamente seja passada à descendência. Além disso, as grandes concentrações populacionais e a modificação intensa do ambiente, com cortes de árvores, desvio do curso dos rios e domesticação de animais, favorecem a convivência entre o Homem e o inseto. E as alterações climáticas têm vindo a aumentar a duração da época de reprodução.

O aparecimento do DDT representou um marco no controlo destas populações. Hoje em dia, por causa dos seus efeitos tóxicos no ambiente, a utilização do pesticida está restringida a algumas regiões do globo, que gozam de um regime de exceção por causa da elevada incidência de doenças transmitidas pelo mosquito.

Em Portugal, o sítio do País com maior concentração destes insetos é a Comporta. Foi lá registado o recorde nacional: uma só pessoa capturou 400 mosquitos numa hora.

O método de medição parece bastante arcaico, mas é o mais eficaz e o preferido dos estudiosos. A técnica consiste em expor uma parte do corpo, normalmente as pernas, durante a chamada “hora da melga”. Ou seja, entre o pôr e o nascer do Sol. A pessoa está toda coberta, com máscara de rede na cara, e segura um aspirador na mão. Quando o mosquito se aproxima, é capturado. Mas todos nós podemos participar na caracterização da distribuição de mosquitos pelo País, sobretudo porque as alterações ambientais têm levado à mudança na distribuição e até das espécies que vivem por cá. “A primeira fase é a da introdução ou chegada. A segunda é a da instalação, que é quando normalmente os detetamos”, nota Carla Sousa. Só que uma população já instalada é “muito mais difícil de eliminar”.

Espanha, em particular a zona da Catalunha, passa neste momento pela invasão do mosquito-tigre, capaz de transmitir o vírus da dengue, da chikungunya e da zica, sendo que, em 2018, chegaram mesmo a registar-se dois casos de transmissão de dengue. Também em Portugal se detetou a presença desta espécie, em 2017 e em 2018, nas zonas de Penafiel e do Algarve.

Apesar de terem um papel importante no ecossistema – polinizando algumas plantas e servindo de alimento a outros animais –, têm sido feitas algumas experiências de controlo dos vetores pela manipulação genética. Cientistas da Universidade de Oxford, em conjunto com a empresa de biotecnologia Oxitec, introduziram mutantes de machos de Aedes aegypti de forma que os descendentes não se desenvolvam corretamente. Cerca de três milhões desses mosquitos geneticamente modificados foram lançados nas ilhas Caimão, entre 2009 e 2010, o que trouxe uma redução de 96% no número de vetores da febre-amarela. No estado brasileiro da Bahia foi feita uma experiência semelhante, com resultados aproximados: 92% de redução.

No Burkina Faso foram lançados, no início de julho, 10 mil machos estéreis de Anopheles gambiae, responsável pela transmissão da malária. Além de serem inférteis, os mosquitos são também fluorescentes, o que permitirá aos investigadores estudar com exatidão o seu ciclo de vida e os seus hábitos. O facto de se tratar da libertação no ambiente de uma espécie modificada em laboratório levantou alguns receios e críticas de organizações ambientalistas. Abdoulaye Diabaté, da organização Target Malaria e responsável pela experiência, afirmou, na altura do lançamento, que dez mil mosquitos não representam nada comparando com a população total. E, tal como já nos ensinou a história do canal do Panamá, o conhecimento será sempre a melhor arma.

O projeto da Universidade Nova de Lisboa, Mosquitoweb, convida todos os cidadãos a participar na identificação, pela fotografia, e também na captura de mosquitos. O processo é simples e está explicado no site do projeto – basta fotografar o mosquito e enviar a foto, com indicação do local. Quem quiser, também pode apanhar o inseto vivo e enviá-lo num frasco. Em Portugal, não tem havido grande participação, lamenta a professora Carla Sousa. Este envolvimento por parte da população pode ser determinante para a deteção de espécies novas no território nacional. São 40 as espécies autóctones, mas a sua distribuição tem variado bastante nos últimos anos, graças às alterações ambientais, pelo que a participação da população ainda se torna mais relevante.

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