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sábado, janeiro 16, 2010

Metrô Linha 477


Dominguinhos do Estácio, Geraldo Bessa e Gabriel no aniversário de dois anos do Bloco do Vigário

Junho de 1973. Eu mal havia acabado de fazer 17 anos e minha única preocupação existencial era comprar semanalmente a revista Placar, para conferir se continuava sendo o cara mais polêmico da seção de cartas.

Escrevendo cartas sob o pseudônimo “Carlos Osmar Pastoriza”, eu havia me transformado no “cara” da Página 12, onde eram publicadas as broncas dos leitores.

Toda semana saía publicada alguma presepada minha. Quando as cartas atrasavam (sim, naquela época a gente usava os Correios para se comunicar com alguém), na semana seguinte saíam duas novas presepadas.

Cursando o último ano de Eletrotécnica na ETFA, veio logo a idéia de expandir as sacanagens que eu escrevia pra revista de futebol, mas agora tendo como alvo a própria escola técnica.

Irmão caçula do saudoso professor Heyrton Bessa, o desencanado Geraldo Bessa (aka “Catatau” e “Djwery Power”), meu colega de classe, comprou a idéia. Nasceu o mural “Subway” (“Metrô”).

Era, evidentemente, uma ironia infame tirando onda do movimento underground, que havia falecido na década passada.

A gente assinava os textos como se pertencesse a um grupelho anarquista chamado “Simon People & The Saucerful Souls”.

Eu digitava os textos em casa e levava pra ETFA. O Catatau providenciava duas folhas de cartolina branca, tesoura, colar polar e alguns exemplares de revistas antigas.

A gente recortava os textos, colava nas cartolinas e ilustrava com fotografias retiradas das revistas, em um bric-a-brac bem dadaísta.

Depois que a obra-prima ficava pronta, o Catatau, na calada da noite, afixava as duas folhas de cartolinas no painel de avisos da escola, que ficava na lateral de um pátio onde funcionava a lanchonete.

Foi como colocar um elefante dentro de uma loja de cristais finos.

Em menos de um mês, o “Subway” já havia se transformado na coqueluche da escola.

Os moleques do turno da manhã e da tarde escreviam recados malcriados nos espaços em branco da cartolina, a gente respondia no mesmo diapasão, enfim, virou uma zona.

Mal comparando, seria uma espécie de blog movido a lenha.

Descobrir quem eram os editores daquele palimpsesto machista, sexista, racista e assumidamente indecente virou questão de honra para a maioria das alunas da ETFA.

Outros alunos da nossa classe – Alcion Castelo Branco, Ernesto Coelho, Miguel Rocha, Francisco Duarte, etc – começaram a colaborar e a gente passou a dar duas por semana. Incendiamos o cabaré.

Naquela época, a gente tinha uma disciplina chamada “Educação Moral e Cívica”.

Teoricamente, os temas abordados visavam o resgate dos valores permanentes e imutáveis de uma sociedade, com conteúdos que levassem à reflexão sobre a importância da família, o pleno exercício da cidadania, os direitos e deveres individuais e coletivos, o comportamento ético e fundamentalmente o amor à Pátria.

Na prática, a gente era obrigado a decorar hinos marciais.

Aliás, uma vez por semana, os alunos do turno diurno eram obrigados a assistir ao hasteamento da bandeira brasileira no pátio frontal do colégio, com a mão no peito e entoando a plenos pulmões o hino nacional.

Errar a letra do hino era convite certo para ser rotulado de comunista e, na seqüência, expulso da escola.

Quem não soubesse de cor e salteado o hino da Bandeira (“Salve, lindo pendão da esperança, / Salve, símbolo augusto da paz! / Tua nobre presença à lembrança / A grandeza da Pátria nos traz”), da Independência (“Já podeis, da Pátria filhos, / Ver contente a mãe gentil, / Já raiou a liberdade / No horizonte do Brasil”), da Marinha (“Qual cisne branco que em noite de lua / Vai deslizando num lago azul. / O meu navio também flutua / Nos verdes mares de Norte a Sul”), a Canção da Infantaria da Aeronáutica (“Infantaria, serás sempre altaneira! / Teus soldados, tu bem sabes escolher. / Com heroísmo, tu defendes a Bandeira, / Honrando a Pátria que herdaste ao nascer”) e a Canção do Exército (“Nós somos da Pátria a guarda, / Fiéis soldados, / Por ela amados. / Nas cores de nossa farda / Rebrilha a glória, / Fulge a vitória”), corria o risco de ser reprovado e perder o ano.

Os governos militares não brincavam em serviço. A gente ia virar patriota – ou o que quer que seja que eles entendessem por patriotismo – nem que fosse preciso levar muita porrada.

Uma noite de outubro, invocado com a quantidade de moleques diante do mural de avisos da escola, rindo estrepitosamente e escrevendo vários recados sobre duas folhas de cartolina, o nosso professor de Educação Moral e Cívica foi conferir que merda era aquela.

Levou um susto. Desconfio que ele nunca havia visto tanta sacanagem junta ao longo de toda a sua vida de homem sério e temente a Deus.

De loas descaradas à prática do amor livre – incluindo o incentivo ao sexo anal para preservar a virgindade – a dicas sobre locais onde se vendia maconha, de hilariantes posições sexuais a endereços de parteiras que faziam aborto, de traduções de letras subversivas do Lou Reed a entregação de supostos homossexuais enrustidos no corpo docente e discente do colégio, a gente abordava todos os assuntos sem perder a fleuma nem o humor.

Verdadeiramente apoplético, à beira de um infarto, o professor arrancou as duas folhas de cartolina, enrolou cuidadosamente e se mandou para a sala da diretoria.

Eu, Catatau e mais alguns colaboradores, que presenciamos a maluquice, só faltamos morrer de rir.

Três dias depois, o riso inicial se transformou em apreensão. Alguém roeu a corda e a CPI da escola, instalada para apurar os fatos, chegou até a nossa classe.

A Coordenadora de Ensino, Dona Leonilda, uma lésbica enrustida, cantou a pedra:

– Ou vocês entregam os nomes dos responsáveis por essa imundície, ou a classe toda vai ser expulsa!

Ninguém moveu um músculo do rosto, mas as mulheres da nossa turma (Cila Borges, Jucirene Azevedo, Rosa Maria Vidal, Maria de Lourdes Pinheiro e Shirley Castelo Branco) entraram em pânico.

Eu e Catatau resolvemos assumir a bronca e nos denunciamos.

Explicar depois pro velho que eu havia sido incurso no famigerado decreto 477, que expulsava os estudantes de colégios, das universidades e os mandava para a cadeia, para a tortura, e muitos, para a morte e o exílio, reconheço, iria ser um parto federal.

Desconfio que o professor Heyrton Bessa moveu céus, oceanos e montanhas para evitar a nossa expulsão sumária.

Resultado: eu e Catatau, em vez de sermos expulsos, fomos obrigados a produzir um jornal oficial para a ETFA, rodado em mimeógrafo e distribuído para os alunos pelo seu Osvaldo, na hora da entrada.

Era um jornal caretíssimo, já que as matérias eram pautadas pelo citado professor de Educação Moral e Cívica (ter esquecido do seu nome pra sempre diz muito do meu estado emocional naquele período negro).

Acho que fizemos uns três ou quatro jornalzinhos oficiais, antes de recebermos o nosso canudo, em dezembro, e cairmos fora dali.

Mas que o “Subway” fez um barulho da moléstia, ah, isso fez. Bons tempos, zifio, bons tempos!

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande parceiro Simão!
Bem lembrado dos grandes momentos de "risco" que passamos em plena
ditadura. Muito tempo depois é que fiquei sabendo que o Mota e a
Leonilda zadorosni eram sub agentes do SNI... mas foi legal! A turma era muita boa e unida! Agora essa foto parece mais um cotoco invertido.
Um grande abraço, saudades!
Geraldo Catatau