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terça-feira, outubro 19, 2010

Causos de Bambas - Bosco Saraiva

Em 1989, o barracão da Reino Unido, localizado na rua Duque de Caxias, estava passando por uma maré de azar incrível.

O carnavalesco Xangai, trazido a peso de ouro da Beija Flor, de Nilópolis, estava quase entrando em surto psicótico: nenhum carro alegórico conseguia ser completado pela sua equipe.

Sempre alguma coisa quebrava na hora do teste.

Os diretores da escola – Bosco Saraiva (foto), Adib Mamede, João Thomé e Zé Picanço – fizeram uma reunião de emergência.

Se o enredo “Axé Mãe Preta” prestava uma homenagem aos orixás, por que diabos eles não estavam colaborando?

Uma das baianas da escola, Dona Apia, mãe do Mestre Calama e mãe-de-santo poderosa, matou a charada: alguns diretores estavam muito “carregados” e “amarrados”, por conta das “más companhias”, e precisavam urgentemente tomar um banho de “descarrego”, para desfazer a “amarração”.

As suspeitas recaíam sobre Adib Mamede (que todo sábado costumava colocar 25 ninfetas peladas na piscina de sua casa na Vila da Prata enquanto decidia qual ia abater primeiro) e João Thomé (que por ser deputado federal, na época, era obrigado a atender trambiqueiros de vários calibres).

Os outros dois diretores aceitaram participar da cerimônia de “descarrego” por solidariedade.

Dona Apia era uma devota mãe-de-santo de Umbanda, da linha de Ogum.

As práticas existentes dentro dos terreiros de Umbanda variam muito.

Alguns demonstram uma ligação mais forte com o Espiritismo, outros se aproximam mais do Candomblé.

Em comum, têm a força dos rituais, denominados “giras”, quando os santos, caboclos ou encantados entoam cânticos e dançam ao som dos atabaques.

As cerimônias geralmente acontecem à noite e se estendem madrugada adentro.

Os espíritos que “descem” incorporam-se nos fiéis que estão participando da “gira”.

Aqueles que “recebem” os espíritos são chamados de “cavalos”.

Durante a incorporação, o “cavalo” permanece inconsciente, e quem fala através dele é seu “guia”, ou seja, a entidade espiritual a ele associada.

Para auxiliar os cavalos, existem os cambonos, que ocupam papel relevante na hierarquia do terreiro.

Mas a posição mais elevada cabe à mãe ou ao pai-de-santo, que é a pessoa responsável pelos trabalhos espirituais.

No dia combinado para a cerimônia, Dona Apia incorporou um Preto Velho da falange de Ogum Beira-Mar (a linha de Ogum Beira-Mar é o cruzamente da linha de Ogum com a de Iemanjá), que foi logo obrigando os quatro diretores a ficarem pelados que nem o Aquaman.

Apesar de ser uma cerimônia fechada e só estarem eles e a mãe-de-santo no local, foi um constrangimento geral. Mas era passar por aquilo ou perder o carnaval daquele ano.

Nus em pêlo, cada um deles foi posicionado em um círculo de pólvora e recebeu uma pequena cabaça contendo, além de sangue de um bode recém-sacrificado, duas doses de cachaça Velho Barreiro.

Foram instruídos a ingerir a mistura sem vomitar, para não desagradar o Exu Tranca Ruas, responsável por “desfazer” o trabalho.

O Preto Velho fez uma benção nos rapazes com folhas de arruda, orou na cabeça de cada um deles e se despediu.

O Exu Tranca Ruas incorporou na mãe-de-santo para continuar a cerimônia.

Depois de ingerirem a mistura de sangue de bode com cachaça, cada um deles recebeu um alguidar contendo água de cheiro e ervas medicinais.

Assim que o circulo de pólvora começasse a arder, deveriam derramar o “banho” sobre a cabeça e esfregar o corpo com as ervas, para ficarem “limpos”.

Dito isso, Exu acendeu os círculos de pólvora. Foi uma explosão medonha.

Terminada a parte mais complicada da cerimônia, Exu se despediu e foi substituído de novo pelo Preto Velho.

Ele parabenizou cada um “zifio” e se preparou para fazer o “alongamento dos orixás”, a cerimônia final para dar boa sorte ao grupo.

A coisa era simples.

O Preto Velho ficaria costa a costa com cada um deles, com ambos os braços entrelaçados.

O discípulo então se curvaria para a frente, como se estivesse cumprimentando o Orixá, suspendendo o Preto Velho sobre as próprias costas.

Depois, voltaria à posição inicial e o procedimento seria repetido pelo Preto Velho.

Com Adib Mamede, João Thomé e Zé Picanço, que eram magrinhos, não houve problemas, mas quando chegou a vez do Bosco Saraiva, que estava visivelmente acima do peso, a coisa complicou.

Bosco fez a saudação numa boa, suspendendo a mãe-de-santo nas costas com extrema facilidade.

Quando chegou a vez do Preto Velho fazer o mesmo, o venerando ancião não suportou o peso descomunal do Bosco Saraiva nas costas e os dois desabaram no chão.

Foi um corre-corre infernal.

Dona Apia quebrou um dos braços em duas partes e sofreu ferimentos nas duas pernas.

Bosco sofreu luxação da munheca e raladura nos dedos da mão, de aparecer os ossos.

Na queda, eles derrubaram a garrafa de Velho Barreiro, que derramou o líquido pelo chão e atingiu o círculo de pólvora, levantando uma língua de fogo avermelhado que começou a queimar o congar, um altar profusamente enfeitado com flores, velas acesas e colares de contas coloridas, que simbolizam os diferentes santos e orixás.

Zé Picanço levou os dois para o hospital, dirigindo só de cueca, enquanto Adib Mamede e João Thomé apagavam o princípio de incêndio no terreiro.

O sacrifício não foi em vão.

Naquele ano a Reino Unido conquistou o título de campeã do carnaval amazonense recebendo nota dez em todos os quesitos.

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