Meados dos anos 80. O padre Lupino resolveu encenar o Auto da Paixão de Cristo pelas ruas de Parintins e convocou o compositor Paulinho Du Sagrado para fazer o papel do Homem de Nazaré, porque ele era o único jovem da cidade que ainda usava os cabelos na altura dos ombros.
Mesmo contrariado por ter convicções agnósticas, o franzino Du Sagrado começou a participar dos ensaios.
A apresentação teatral seria realizada na manhã do Domingo de Páscoa.
No Sábado de Aleluia, Du Sagrado deu um banho de cuia no invocado Zaka, seu parceiro em tempo integral, durante uma parada rastafári armada pelos dois no bairro do Itaúnas.
Zaka resolveu se vingar.
Na peça, ele fazia o papel de chefe dos centuriões.
O domingo amanheceu com uma chuvinha impertinente, que deixou as ruas da cidade completamente enlameadas.
Sem se importar com as intempéries do tempo, padre Lupino, mais empolgado do que de costume, resolveu iniciar o espetáculo.
Paulinho Du Sagrado levou um banho de xarope de groselha (para simular o sangue derramado por Jesus Cristo), recebeu uma coroa de arame farpado na cabeça e, vestido com uma minissaia de morim, começou seu calvário.
A imponente cruz de maçaranduba pesava uns cinquenta quilos.
Os chicotes dos centuriões eram feitos de juta.
Por causa da chuva, os chicotes foram ficando encharcados.
Conforme a procissão caminhava pelas ruas de barro, as pontas dos chicotes iam se arrastando pelo chão e acumulando pequenos pedaços de pedra jacaré.
A cada cinco minutos, Zaka dava uma chibatada pra valer no lombo de Jesus Cristo.
Trincando os dentes e sussurrando, Du Sagrado reagia:
– Pô, Zaka, não é dos vera não! É dos brinca... Bate mais devagar, caralho!
A blasfêmia de Nosso Senhor Jesus Cristo e a lembrança do “banho” levado na noite anterior deixavam Zaka mais injuriado.
Ele fingia que não ouvia as súplicas do Filho do Homem.
E tome lambada, sem dó nem piedade.
O lombo de Paulinho Du Sagrado começou a minar sangue de verdade.
De repente, como em um autêntico milagre, a chuva parou e um maravilhoso sol resplandeceu em Parintins.
A sensação térmica pulou de 18ºC para 40Cº num piscar de olhos.
Em termos de esforço físico, era como se Paulinho Du Sagrado estivesse atravessando o deserto do Saara com um saco de feijão nas costas.
E eles ainda estavam no começo do espetáculo.
Cerca de cem chibatadas depois – ou duas horas de calvário –, Jesus Cristo finalmente chegou ao monte Gólgota, para ser crucificado.
Nesse meio tempo, o xarope de groselha havia atraído centenas de insetos para se banquetearem no corpo suado de Paulinho Du Sagrado.
Durante a procissão, as vigorosas chibatadas de Zaka haviam conseguido espantar a legião de meruins, piuns, abelhas africanas, cabas tupiaras e moscas varejeiras, mas agora, com as mãos amarradas na cruz, Du Sagrado estava entregue à própria sorte.
Pra completar, suas caspas de estimação haviam acordado e, para se livrar do sol inclemente, estavam tentando perfurar o couro cabeludo em busca de sombra e água fresca.
Por conta daquele inferno, Jesus Cristo começou a improvisar o texto.
Um dos soldados romanos se aproximou com uma esponja embebida em óleo de fígado de bacalhau na ponta da lança e esfregou aquela imundície no rosto do Homem de Nazaré.
Du Sagrado fechou a boca, mas o óleo entrou pelas suas narinas. Ele quase vomitou.
– És tu que dizes ser o Filho do Homem? – questionou o soldado romano.
– Velho, negócio seguinte: se tu fizeres essa fuleiragem de novo, quando eu sair daqui vou te meter a porrada! – devolveu o crucificado, cuspindo o fel que lhe inundara a boca na direção das moscas varejeiras que haviam acampado em seu peitoril.
O soldado romano não gostou de ver sua autoridade questionada.
Enfiou de novo a esponja no rosto de Jesus Cristo e perguntou pela segunda vez:
– És tu que dizes ser o Filho do Homem?
– Velho, se tu estás dizendo isso quem sou eu pra questionar? Mas para com essa fuleiragem senão tu vai te foder comigo! Tu vai te foder comigo! – devolveu Du Sagrado, já perdendo a esportiva.
Os dois iriam passar o resto da manhã naquele jogo de gato e rato, se Gudão, que fazia o papel do apóstolo Thiago, não se metesse na conversa.
– Parente, o homem já morreu na cruz e só está falando de leso. Agora, pelo amor de Deus, deixe a gente retirá-lo da cruz pra dar ao Salvador um enterro digno.
Apesar de ainda ressabiado, o soldado romano concordou.
Gudão subiu em um banquinho, desamarrou Du Sagrado da cruz, aparou-o nos dois braços e, quando ia descer do banquinho, sua sandália Havaiana escorregou no barro úmido e ele desabou.
Na queda, ele soltou Jesus Cristo, que despencou de costas em cima do banquinho.
Duas costelas de Paulinho Du Sagrado quebraram na mesma hora.
Gemendo de dor, Jesus Cristo nem esperou para ressuscitar no segundo dia:
– Gudão, você me fodeu! – berrou ele, apalpando os quartos. “Puta que pariu, Gudão, você me fodeu! Estou fodido, Gudão, estou fodido...”.
A plateia da peça ao ar livre, formada quase exclusivamente por contritas beatas e pudicas mães de família da tradicional Igreja Católica, só faltou sair correndo.
Aquele Homem de Nazaré era um “boca-suja” de marca maior.
A peça foi encerrada ali mesmo.
Três dias depois, ainda com o corpo enfaixado por causa do acidente, Paulinho Du Sagrado relembrava o espetáculo e concluía sabiamente:
– Porra, velho, Jesus Cristo sofreu pra caralho!
Nunca mais foi convidado pelo padre Lupino para repetir a façanha.
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