Cauby Peixoto e João
Gilberto são nossos maiores cantores. Mas, como alertou Roberto Menescal, João
é perigoso.
Renzo Mora
O Brasil tem dois grandes cantores: João Gilberto e Cauby
Peixoto. São os dois extremos da arte de cantar. Com Cauby, o vozeirão, o dó de
peito, a extensão vocal, as notas sustentadas à exaustão, o operístico. Com
João, a voz pequena, mas disposta a desconstruir a melodia, incluindo
dissonâncias, alterando o tempo, encontrando possibilidades, refinando a canção
a cada leitura – seja uma obra-prima como Retrato
em Branco & Preto ou uma bobagem como O Pato.
Não temos nenhum Sinatra – alguém que use a canção para
contar uma história. Nana Caymmi e Elis são o que chega mais perto.
Elis, aliás, gravou com Cauby em um de seus últimos álbuns.
Disse que queria que ele se livrasse do material inferior com que contaminou
grande parte de sua carreira. Elis sabia das coisas.
Mas, enquanto Cauby é público, João é impossível. Cauby é
uma cerca vazada. João, uma muralha.
Renzo Mora tietando desavergonhadamente
Cauby Peixoto
Freud, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci, observou que
ele deixou inacabada a maioria de suas pinturas (mesmo as já pagas pelos
contratantes).
Freud especula que a razão era Leonardo buscar uma perfeição
que ele próprio achava que nunca conseguiria encontrar, o que o levava a
abandonar os trabalhos sem olhar para trás e sem se preocupar com o destino das
pinturas abortadas.
Antes de pintar, ele fazia vários desenhos, pesquisas e
estudos preliminares, ENSAIAVA exaustivamente, mas adiava a pintura
propriamente dita indefinidamente, possivelmente paralisado por um desejo
inalcançável de perfeição.
“Quero fazer milagres” dizia Leonardo.
E a busca dos milagres travava a execução de suas obras –
mesmo que os outros já as julgassem milagrosas o suficiente.
João Gilberto adiou (possivelmente para sempre) os shows que
comemorariam seus 80 anos em 2011.
João busca a audiência perfeita – calada, respeitosa – o
microfone perfeito, a acústica perfeita, o banco perfeito, o acorde perfeito.
E, como Leonardo, esta busca por perfeição o tranca em seu
apartamento – onde possivelmente executa os melhores shows de sua vida, para si
mesmo, lapidando suas preciosidades.
João é um obsessivo e um dos maiores artistas do planeta.
Amoroso para mim é
um dos maiores álbuns – não do Brasil – mas do mundo; um milagre que
influenciou todo mundo – Diana Krall tentou reinventá-lo em “The Look of Love”
recorrendo ao mesmo arranjador, o brilhante Claus Ogerman.
Eric Clapton repensou sua obra depois de ouvir João.
John Pizzarelli ficou louco com seu som.
Tony Bennett, no filme “The Zen of Bennett”, esperando para
gravar no Abbey Road Studios, suspira: “É aqui que eu queria gravar com João
Gilberto”.
A lista é infinita. Mas João não é para amadores.
Um livro brilhante lançado no ano passado conta a busca de
um alemão por João Gilberto.
Ele ouve o homem e o transforma em sua caça. Vem ao Rio
buscá-lo. Conversa com pessoas que cercam João – ou melhor, que o cercaram.
Do sábio Roberto Menescal ele ouve a advertência: “Tome
cuidado… João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com
quem tem contato. Capaz de mudar você também… é capaz de você se tornar um
amaldiçoado para sempre.”
Esse diálogo está na página 65 da edição brasileira de
“Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto”, do alemão Marc Fischer.
Fischer não viu a edição brasileira. Nem a alemã. Antes de o
livro sair, ele se matou, aos 40 anos.
Em seus cinco meses de pesquisa no Brasil, Fischer nunca encontrou
com João Gilberto. Mas ele já tinha sido amaldiçoado quando ouviu o homem pela
primeira vez.
A beleza tem esse poder. Amaldiçoa a gente. Cria parâmetros
de beleza e perfeição inatingíveis. João cria essas belezas. Encanta alguns.
Amaldiçoa outros.
Felizes são os que o acham um chato. Jamais terão
sensibilidade o suficiente para caírem na maldição. O que é a salvação deles. E,
de certa forma, sua própria maldição. Viverem sem ser tocados pela genialidade
de João.
Spoiler Alert: É claro que o telefonema de madrugada para o
escritor, em que alguém do outro lado da linha canta Ho-ba-la-lá, foi falso.
João é um conversador compulsivo por telefone. Uma ligação de João Gilberto não
seria como a descrita. Fischer desconfiou. E estava certo.
Renzo Mora é escritor
e roteirista. Publicou os livros “Cinema Falado”, “Sinatra - O Homem e a
Música”, “Fica Frio - Uma Breve História do Cool” e “Frank, Dean & Sammy: 3
Homens e Nenhum Segredo”.
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