Leonardo Sakamoto
Se considerarmos que a condição dos médicos cubanos que
estão sendo trazidos ao Brasil é de trabalho escravo contemporâneo, como querem
fazer crer alguns contrários ao programa Mais Médicos, também teremos que
incluir nessa conta milhões de trabalhadores do agronegócio, da construção
civil, dos serviços que recebem salários abaixo do piso ou do mercado. O
governo cubano deve receber os recursos das bolsas de R$ 10 mil e repassar
parte delas aos seus médicos no Brasil.
Renato Bignami, responsável pela fiscalização de casos de
escravidão em São Paulo, analisa que, a princípio, os elementos do novo
programa do governo federal não caracterizam trabalho análogo ao de escravo. Se
considerarmos que configuram a priori, parte do trabalho no Brasil seria
escravo. Ou seja, um desconhecimento do artigo 149 do Código Penal, que trata
do tema, e da jurisprudência em torno dele.
E os fiscais do trabalho já viram muita gente, inclusive
escravos envolvidos em processos do próprio governo federal, como na produção
de coletes para recenseadores do IBGE, em obras do Minha Casa, Minha Vida, do
Programa de Aceleração do Crescimento, do Luz para Todos…
Ganhar pouco ou mesmo estar em condições precárias de
trabalho são coisas diferentes de trabalho escravo. Estampar algo como
“trabalho escravo” pode ser útil para dar notoriedade a um argumento, uma vez
que é um tema grave e que gera repulsa por parte da sociedade. Mas, por isso
mesmo, deve-se tomar muito cuidado ao divulgá-lo, que é o que os jornalistas
que cobrem o tema tentam fazer o tempo todo. Saibam que muita coisa fica de
fora porque não se sustenta.
De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam
trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que
excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o
trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social), trabalho
forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico,
ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o
trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
Não espero que o corporativismo tacanho de alguns
representantes de associações médicas entendam isso. Mas o cidadão comum, sim,
precisa compreender a diferença.
Uma coisa é a política pública em si, de levar médicos
estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver – está
correta. Outra é deixar de garantir direitos a grupos de trabalhadores,
nacionais ou estrangeiros, o que não pode ser aceito.
Se a lei que sair do Congresso Nacional sobre essa política
pública, oriunda da análise da medida provisória encaminhada pelo governo,
retirar direitos, ela será inconstitucional. Pois mesmo se o regime de trabalho
proposto pela MP for excepcional, ele precisa obedecer à Constituição. Caso
contrário, vai naufragar. Simples assim.
Essa adaptação vai acabar ocorrendo via controle de
constitucionalidade abstrata, pela Procuradoria Geral da República ou pela
Procuradoria Geral do Trabalho, ou via milhares de ações individuais por parte
dos próprios médicos envolvidos.
Ao mesmo tempo, é fundamental o Ministério Público do
Trabalho monitore qualquer irregularidade que prejudique o trabalhador, fazendo
com que o governo respeite a Constituição Federal (principalmente o artigo 7o,
que versa sobre os direitos dos trabalhadores), as convenções da Organização
Internacional do Trabalho e os tratados de direitos humanos dos quais o país é
signatário. Prevenir é melhor que remediar.
“Acho difícil acreditar que a Organização Pan-Americana de
Saúde validaria uma experiência com mão de obra escrava”, pondera José Guerra,
secretário-executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho
Escravo, vinculado à Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da
República, lembrando que a vinda de médicos tem a parceira da Opas.
Marcus Barberino, juiz do trabalho da 15a Região e um dos
maiores especialistas jurídicos em trabalho escravo contemporâneo, concorda que
não é possível afirmar que o programa incorre em escravidão contemporânea. E
que é preciso ter muito cuidado com o conceito. ”A proteção contra tratamentos
discriminatórios ao trabalho é de âmbito constitucional e não permite
tratamento distinto quanto aos direitos fundamentais. Fora da moldura
constitucional, todo programa público será revisto pelo Judiciário naquilo que
confrontar com a Constituição, que corresponde ao piso civilizatório
universal”, afirma.
Como já disse aqui, a gente perde os cabelos, há anos,
tentando fazer a bancada ruralista no Congresso Nacional entender que trabalho
escravo contemporâneo não é qualquer coisa, como falta de azulejo no banheiro
ou salário baixo, mas um pacote de condições que configura uma gravíssima
violação aos direitos humanos. E, de repente, pessoas que desconhecem o tema
usam-no em proveito próprio.
Como disse um médico amigo meu que conhece bem a fronteira
agrícola amazônica e lá trabalhou: se esse povo todo que fala essas groselhas
conhecesse o que é trabalho escravo de verdade ou, pelo menos, a realidade dos
trabalhadores rurais do interior do país, não teria coragem de fazer esse
paralelo absurdo.
Acima de tudo, isso é falta de contato com a realidade e de
respeito com quem realmente está nessas condições e precisa ser resgatado para
ter sua liberdade ou dignidade de volta.
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