Roberto Damatta
Quando menino, minha avó Emerentina solicitou-me um palpite
para o jogo do bicho, uma atividade que ela praticava com a mesma religiosidade
com que fazia as suas orações matinais. Pensei num filme de Tarzan e chutei:
elefante! O elefante deu na cabeça e dela recebi um dinheiro que virou bombons
de chocolate.
São 25 bichos, conforme determinou o cânone do Barão de
Drummond, o inventor disso que Gilberto Freyre dizia ser um “brasileirismo”.
Algo genuinamente brasileiro, ao lado da feijoada, das almas do outro mundo, do
samba, da corrupção oficial, do suposto orgasmo das prostitutas e do “rouba,
mas faz”. Quanta inocência existe entre nós. É de enternecer.
PALPITE 1 (AVESTRUZ)
O ministro Joaquim Barbosa tem sido tratado como um Drácula
brasileiro por dizer o que pensa e sente. Mas, no Brasil, eis o meu primeiro
palpite, somos todos treinados a dizer o que não pensamos.
Seja porque seríamos presos por corrupção ou tomados como
desmanchadores de prazer; seja porque faz parte de nossa persistente camada
aristocrática não confrontar o outro com a tal “franqueza rude” a ser reprimida
por sinalizar não o desrespeito, mas um igualitarismo a ser evitado justamente
porque nivela e subverte hierarquias.
Somos a sociedade da casa e da rua. Em casa, somos
reacionários e sinceros; na rua viramos revolucionários e ninjas – a cara
encoberta. Somos imperiais em casa, quando se trata das nossas filhas e
fervorosos feministas em público, com as “meninas” dos outros.
Observo que quando há hierarquia, não há debate nem
discórdias; já o bate-boca é igualitário e nivelador. Por isso, ele é execrado
entre nós, alérgicos a todas as igualdades. Discutir é igualar, de modo que as
reações de Joaquim Barbosa assustam e surpreendem. Afinal, ele é um ministro.
Como pode se permitir tamanha sinceridade? O superior não deveria discutir, mas
ignorar e suprimir.
PALPITE 2 (ÁGUIA)
Um presidente da instância legal mais importante do País que
esconde por educação seus valores seria um poltrão? E isso, leitor, é
justamente o que esse Joaquim Barbosa, negro e livre, não é e não quer ou pode
ser. Na nossa sociedade, você está fora do eixo (ou da curva) até o eixo entrar
nos eixos. Aí, você vira celebridade e começa a ser fino como um aristocrata.
Na oposição, seu senso crítico é gigantesco, mas no dia em que você vira
governo surgem as etiquetas reacionárias. Eu queria ir, você diz, mas a minha
assessoria impediu. Não ficaria bem...
Afinal, ator e papel não podem operar como um conjunto? Ou
devem agir se autoenganando para serem permanentemente elogiados como
“espertos” ou “malandros”? Esse apanágio do nosso sistema político que
glorifica a hipocrisia e condena a opinião pessoal sincera que, em
circunstâncias gravíssimas como a que estamos vivendo no momento, exige o
confronto e, consequentemente, a desagradável rispidez da discórdia?
PALPITE 3 (BURRO)
Como ter democracia sem conflito? Se passamos a mão na
cabeça dos mais gritantes conflitos de interesse nessa nossa sociedade de
vizinhos de bairro e de parentelas adocicadas pelos compadrios, por que temos
de nos sentir aporrinhados porque um juiz confrontou, de modo direto, um colega
cujo objetivo óbvio era o de protelar o arremate de um processo que, no meu
entender, vai definir o caráter de nossa democracia liberal e representativa?
PALPITE 4 (BORBOLETA)
Pergunto ao leitor: existe sinceridade sem emoção? Existe
honestidade sem estremecimento? Existe algum regime ético no qual se troca
convicção por boas maneiras? Afinal de contas, o que seria uma pessoa com “bons
modos”? Seria um cagão sem espinha dorsal? Como, pergunto, mudar um país com
essa maldita tradição de dizer que somos assim, mas no fundo somos assado sem
dissensões? Afinal o que preferimos: o golpe que silenciosamente suprime o
bate-boca ou o bate-boca que é a única arma democrática contra o golpe?
Um amigo me diz que o ministro Barbosa estava certo no
conteúdo, mas errado na forma; e que o ministro Lewandowski estava errado no
conteúdo e certo na forma. Mas, palpito eu, como separar forma de conteúdo
quando se trata do futuro da democracia ou de um grande amor? Seria possível
uma noite de núpcias com um noivo certo no conteúdo, mas sem traduzir esse
conteúdo formalmente?
O sinal dos tempos no Supremo tem sido, precisamente, o
estilo sincero e desabrido – honesto pela raiz – do estruturalismo de Joaquim
Barbosa. Nele, forma e conteúdo estão juntos como estiveram em todos aqueles
que tentam ser uma só pessoa na casa e na rua, na intimidade e no púlpito,
entre os amigos e os colegas de tribunal.
Para se ter uma democracia é preciso juntar forma e
conteúdo. Não se pode condenar a discórdia e o direito à diferença como somente
um gesto de má educação ou de egoísmo autoritário.
É preciso abrir um lugar para o bate-boca no sistema moral
brasileiro, caso se queira terminar com a sujeição e a autocondescendência que
nos caracteriza como uma sociedade metade aristocrática, metade igualitária.
Prova isso o agravante de que, quando essas metades entram
em choque, tendemos a ficar do lado aristocrático ou do bom comportamento. Do
formal e do legalmente correto, sem nos perguntarmos se o confronto não seria a
maior prova de igualdade e de respeito pelo outro.
Será que acertei novamente no elefante, ou deu burro e
avestruz?
Nenhum comentário:
Postar um comentário