José Nêumanne
Ao nomear o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chefe da
Casa Civil, a presidente Dilma Rousseff deu um duplo golpe contra o Estado
Democrático de Direito, vigente no Brasil desde a promulgação da Constituição
dita cidadã, de 1988, que ela jurou cumprir e fazer cumprir ao ser empossada na
presidência da República, duas vezes. Primeiramente, ela o fez para evitar que
ele fosse investigado na primeira instância do Poder Judiciário, sob suspeição
de haver cometido vários e graves delitos. Em segundo lugar, deu-lhe a missão
de evitar que ela própria venha a ser impedida na forma da lei, também sob a
acusação da prática de crimes de responsabilidade.
Dilma deu posse a Lula às pressas, para evitar a execução de
eventual ordem de prisão, pedida pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e
transferida pela juíza Maria Priscila Oliveira, da 4.ª Vara Criminal da Justiça
paulista, para decisão final de seu colega do Paraná Sergio Moro. Assim, a
presidente interveio arbitrariamente em prerrogativa de outro Poder, o
Judiciário. E, de fato, renunciou à presidência, para a qual foi eleita em
2014, para tentar evitar perdê-la em processo de impeachment já aberto contra
ela na Câmara dos Deputados. Isso não é permitido pela Constituição, pois ela
não pode transferir o poder a outrem, ainda que seja para se furtar a ter de
deixá-lo.
Na História do Brasil registra-se o autogolpe dado por
Getúlio Vargas em 1937, quando instaurou a ditadura do Estado Novo para
interromper a eleição de seu sucessor. Jânio Quadros, em 1961, tentou repeti-lo
e foi desautorizado pelo Congresso. Dilma, contudo, deu um golpe contra si
mesma em favor de outro e com ele a presidente cede poder para manter-se
senhora de suas aparências. Só que o truque foi sustado provisoriamente por
decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que
acolheu ação de partidos da oposição alegando obstrução de Justiça. A decisão
será levada a plenário, mas enquanto este não se decidir o beneficiário não
assumirá.
O ato é grave e, pior, não é isolado. Ultimamente, a chefe
do desgoverno protagonizou episódios que autorizam a nação a acreditar que
Dilma tem pelo Estado democrático desprezo condizente com seu passado de
guerrilheira de um grupo armado de esquerda contra a ditadura de direita; mas
não com a chefe do Poder Executivo de uma democracia em que vige por decisão
popular, legitimada pela Constituinte, a autonomia entre os Poderes que
Montesquieu preconizava. Nela, nenhum cidadão pode avocar o privilégio de ficar
acima da lei – nem ela nem seu patrono, nomeado para suprir sua ora confessada
inaptidão para a política e debelar os efeitos desastrosos de sua sesquipedal
incompetência gerencial.
Outro golpe é a grotesca tentativa de intervir de forma
atrabiliária e atabalhoada na Operação Lava Jato, levada a efeito com
competência, lisura e enorme apoio popular pela força-tarefa composta por
agentes da Polícia Federal (PF) e procuradores do Ministério Público Federal
(MPF), sob a égide do juiz federal paranaense Sergio Moro. A desastrada escolha
do ignoto procurador federal baiano Wellington César Lima e Silva para o
Ministério da Justiça foi proibida pela votação do STF – 10 a 1 – que inaugurou
esta temporada do “esqueça os 7 a 1 do Mineirão”. Dilma, porém, não se fez de
rogada e resolveu repetir o feito com a substituição dele pelo
subprocurador-geral da República Eugênio Aragão, promovido a “amigo” por Lula
nos telefonemas divulgados sexta-feira, nos quais o ainda ex destratou em calão
de pré-sal aliados, comparsas e adversários.
Se o ex-ministro WC passou a merecer o epíteto de “o Breve”,
seu substituto já pode ostentar a rima Aragão, “o Falastrão”. Pois teve a
pachorra de anunciar em público a função de alijar e aleijar a Operação Lava
Jato, ameaçando policiais subalternos, colegas promotores e a lei que autoriza
a colaboração de réus com a Justiça.
Mais grave do que o absurdo de um ministro da Justiça
execrar publicamente uma lei da lavra da chefe, aprovada pelo Congresso e
praticada com sucesso no exterior, é a reincidência da quebra de um conceito ético
e constitucional por um bote de jararaca. WC não pôde ser nomeado porque a
Constituição proíbe que procuradores assumam cargos públicos, exceção feita ao
magistério. Dilma chutou o espírito da lei de novo ao empossar um sinistro
trapalhão, usando o pretexto gregoriano de que sua entrada na carreira se deu
antes da promulgação da Carta. Em recente Roda Viva, na TV Cultura, o jurista
Modesto Carvalhosa lembrou que a letra da lei deve sobrepor-se à data. Se isso
é fato, pode-se concluir que madama insiste no risco inspirada apenas em São
Gregório.
Mas o quiproquó sobre o mais antigo cargo de primeiro
escalão do governo da República é menos relevante que o espetáculo de circo
mambembe em que o Palácio do Planalto se transformou em botequim pé-sujo na
recepção a Aragão e a Lula na Esplanada dos Ministérios. Uma funcionária
agrediu o deputado Major Olímpio (SD-SP), que levou ao recinto o grito de 69%
da população brasileira (conforme o Datafolha): “Vergonha!”. E a tigrada
enfurecida, fiel ao olhar feroz da anfitriã, gritava palavras de ordem como se
estivesse num comício. Ou num piquete…
Foi o ensaio geral para os atos de apoio ao PT na rua, nos
quais militantes a favor dos golpes desfilaram para combater outro, fictício,
em que baseiam chicanas irrealistas para dotar o ex-poderoso chefão e a vassala
afilhada do privilégio imoral de ficarem acima e ao arrepio da lei. E mantê-los
com a chave dos cofres públicos para darem salvo-conduto a quem saqueou o país
em onerosas e tenebrosas transações.
Chegou a hora de a onça beber água e a vaca tossir. As
instituições republicanas não aparelhadas pela máfia sindical no poder estão
convocadas a funcionar e fazer valer a vontade de 68% de brasileiros, que
exigem Dilma fora do governo e Lula nas barras dos tribunais.
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