Carriço, no centro da foto, em um dos carnavais em que desfilou na Vitória Régia
A informação me foi dada por telefone, no final da tarde de ontem, pelo empresário Luiz Mário da Silva:
– Porra, poeta, o nosso amigo Carriço acaba de falecer no Hospital das Clínicas, em São Paulo!
– Puta que pariu!, consegui exclamar.
Luiz Mário me contou o que havia acontecido.
No começo da semana, depois de molhar a serpentina como de hábito, Carriço sofreu um princípio de isquemia cerebral, caiu e bateu a cabeça no chão.
Recebeu os primeiros socorros em Manaus e foi despachado pra São Paulo, com suspeita de fratura do crânio.
Infelizmente, o quadro clínico se complicou até resultar no óbito do nosso querido amigo.
Folião por excelência, Antonio José Requeijo Carriço nasceu em Manaus, em 26 de novembro de 1952, e era fundador do GRES Sem Compromisso.
Filho de imigrantes portugueses, Carriço era formado em Engenharia Química pela Universidade do Amazonas (FUA, hoje UFAM), empresário bem sucedido e proprietário da casa de show Amoricana, na Praça 14.
No ano passado ele perdeu a disputa para a presidência do GRES Vitória Régia, uma das seis escolas de samba do grupo especial que ele sempre ajudou financeiramente.
O grande Carriço deixou uma filha, Jaqueline, e duas irmãs: a conceituada médica Dra. Dorotheia Carriço de Aguiar e a professora universitária Antonia Carriço Ferreira.
Seu nome sempre esteve ligado ao mundo do samba e ele teve um papel decisivo na profissionalização do carnaval amazonense.
Em 1976, no mesmo ano em que o Andanças de Ciganos estava desfilando pela primeira vez, um grupo de moradores da rua Comendador Clementino, no centro de Manaus, fundou o bloco “Unidos da Comendador”.
Entre os fundadores do novo bloco de embalo estavam Antonio José Carriço, Jacomo Lobo, Raimundo Mauro Negreiros, José Lobo Filho (aka “Lobinho”), Getúlio Lobo, Américo Chã, Luiz Mário da Silva, Rinaldo Buzaglo, Celito Chaves, Francisco de Assis Mourão, Luiz Carlos (aka “Lula”), Clóvis Rodrigues, Luiz Sálvio, Luso Ramos, Otílio Lázaro Tomé, Deoson Negreiro, Fortunato Mauro Teixeira, Gilfrânio Napoleão, Carlos Alberto de Lima Seabra, Paulo Roberto da Silva, Vidal José Lobo, Auzier da Rocha Nina, Álvaro Francisco Neves, Júlio Rocha, Aureliano Rodrigues, Paulo Marinho, Carlos Alberto (aka “Kiru”), Ricardo Marinho, Esmeralda Lobo Fontes, Paulo Soares Neves, João Barros Carlos, Clemilton, Aércio Gusmão, Rui Barbosa, Leni da Rocha Nina, Almir Barros Carlos e Carlos Alberto Ramalhosa.
A ideia da moçada era apenas se divertir durante o desfile de carnaval e nada mais.
Há alguns anos que eles faziam suas rodas de samba na Rua Comendador Clementino e tocavam em alguns bares da cidade, incluindo o famoso Amoricana, do Carriço, e o Refúgio, de Adib Mamede e Vilson Benayon.
Três anos depois, no dia 24 de dezembro de 1979, surgiu, entre eles, a ideia de criar um bloco de carnaval verdadeiramente competitivo, para desbancar o então hegemônico bloco Andanças de Ciganos e colocar um pouco mais de pimenta na disputa, já que o bloco da Cachoeirinha não tinha concorrentes.
Da conversa entre os brincantes, surgiu o nome “Sem Compromisso”, sugerido pelo músico Assis Mourão, que sinalizava para uma postura mais livre, leve e solta, mais “descompromissada”, digamos assim, com a rigidez dos blocos de enredo.
As cores (amarelo e preto) adotadas pelo bloco seriam uma homenagem ao encontro das águas, sendo o preto, o rio Negro, e o amarelo, o rio Solimões.
Como símbolo do bloco foi escolhido o tucano, por ser um pássaro da fauna amazonense e ter como cores predominantes em sua plumagem o amarelo e o negro.
O cantor Pedrinho Ribeiro e o músico Assis Mourão, durante uma apresentação no bar Chefão
Em 1980, com o enredo “Jurupari – O Encanto da Selva”, o bloco Sem Compromisso desfila pela primeira vez na avenida.
Apesar das fantasias e alegorias bem elaboradas, o bloco conquista apenas o terceiro lugar.
O campeão pela quinta vez consecutiva é o Andanças de Ciganos.
Em vez de chorar sobre o leite derramado, o Sem Compromisso não perde tempo para ir à forra no ano seguinte.
Olheiros foram despachados para o Rio de Janeiro, com o intuito de saber as novidades que estavam rolando nas escolas de samba – e não nos blocos, como seria de se esperar.
Vários carnavalescos, aderecistas e figurinistas foram contratados a peso de ouro e se mudaram de malas e cuias para Manaus.
O bloco estava disposto a revolucionar o carnaval de rua amazonense. Conseguiu.
Em 1981, o Sem Compromisso trouxe como enredo “O Mundo Encantado das Crianças”, onde homenageava o dramaturgo Américo Alvarez (mais conhecido como “Vovô Branco”), um dos baluartes do teatro infantil em nosso Estado.
As fantasias riquíssimas, os carros alegóricos fantásticos, as alegorias de extremo bom gosto, e as mulheres, de uma beleza deslumbrante, iluminaram a avenida.
O bloco também apresentou em seu desfile os mais conhecidos personagens infantis das histórias em quadrinhos de Walt Disney, além de personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, genial criação do escritor Monteiro Lobato.
O cantor Américo Madrugada, acompanhado de Rinaldo Buzaglo, Macca e Celito, defendeu o samba-enredo no gogó e levantou a galera nas arquibancadas. Foi um massacre.
O desfile do Sem Compromisso foi tão apoteótico, que o então governador do Estado, José Lindoso, praticamente intimou o bloco a repetir a dose na abertura do desfile das escolas de samba, que passara a acontecer na terça-feira gorda.
O bloco Andanças de Ciganos, que havia feito um bonito desfile, com o enredo “Saravá, Vinicius de Moraes!”, onde homenageava um dos melhores poetas de nossa língua, ficou inconformado com o segundo lugar.
– Não perdi o hexacampeonato para um bloco, mas sim para uma escola de samba disfarçada de bloco! – desabafou Mário Adolfo. “O Sem Compromisso fez um belo carnaval, mas na categoria de escola de samba, não na categoria de bloco A comissão julgadora deixou se envolver pelo excesso de carros alegóricos, esquecendo que bloco se faz com samba no pé e no gogó”.
O ano de 1982 ficou sub-repticiamente acordado para ser a data do grande tira-teima entre os dois maiores blocos de enredo da cidade.
O bloco Andanças de Ciganos apresentou logo suas armas: “Amado Jorge Amado”, em que homenageava o escritor baiano pelo cinquentenário de seu livro No País do Carnaval.
Composto por Mário Adolfo, Armando, Marivaldo e Felica, o samba-enredo era uma pequena obra-prima, que rapidamente passou a fazer parte do repertório dos sambistas locais:
“Meu Senhor do Bomfim/ Chegou a hora quero homenagear/ Um de seus maiores filhos/ De talento e muito brilho/ Na avenida vou cantar/ Nos acordes de um violão/ Falar de um homem/ Que me toca o coração/ Chega Xangô/ Orixá contra o mal/ Salve o escritor/ Do País do Carnaval/ Seu nome é Jorge/ Como o Santo Guerreiro/ Só que este é mensageiro/ Da cultura popular/ Foi dando amor/ Que virou Jorge Amado/ Hoje é lembrado e consagrado/ No celeiro universal/ O seu berço é a Bahia/ Do cacau e acarajé/ Berimbau e capoeira/ Do folclore e candomblé/ Este é o reino dourado/ Do amado Jorge Amado/ Que fez da vida um romance/ De ternura e de pecado/ Ôôôôôô/ Quero ser o terceiro marido/ de Dona Flor”.
O bloco também resolveu se armar igual a uma escola de samba, com Comissão de Frente, 600 brincantes distribuídos em dez alas (“Passistas”, “Dona Flor”, “Gabriela”, “Baianas” etc.), 5 carros alegóricos, 4 destaques com fantasia de luxo em tripés, 120 ritmistas e o conhecido Carlinhos de Pilares, intérprete oficial da Caprichosos de Pilares (RJ), como puxador de samba.
A certeza de que o título daquele ano estava garantido começou a se transformar em convicção depois que Edir Pedro Batista (aka “Mestre Carioca”), ex-chefe de bateria dos Ciganos e então destaque da ala de Passistas, conquistou o prêmio “Cidadão Samba-82”, no concurso da Emamtur.
Mestre Carioca comandando uma rodada de samba no Barraka's Drinks, ao lado de Sici Pirangy, Kleber Fernandes e Marivaldo
O título de “Imperatriz do Samba-82” ficou com Esmeralda Pereira dos Santos, presidente e fundadora do Cordão das Lavadeiras.
Ainda curtindo as glórias pelo desfile apoteótico do ano anterior, o bloco Sem Compromisso preferiu ficar sonegando informações sobre o que iria mostrar no carnaval daquele ano.
Escondeu quanto pôde seu enredo (“Paraíso Tropical – Uma viagem ao coração do Brasil”) e ninguém tomou conhecimento do samba-enredo, que era cantado timidamente na quadra da escola.
Tudo não passava de uma autêntica cortina de fumaça armada pelo estrategista Antonio José Carriço.
Quando o Sem Compromisso entrou na avenida, os piores pesadelos dos Ciganos estavam de volta.
Naquele ano, a Emamtur havia criado novas regras para o desfile e dividido as agremiações em quatro categorias.
O grupo A era formado pelas escolas de samba (Em Cima da Hora, Barelândia, Aparecida, Uirapuru, Vitória Régia, Unidos da Raiz e Unidos de São Jorge).
O grupo B era formado pelas batucadas e blocos de enredo (Andanças de Ciganos, Sem Compromisso, Reino Unido da Liberdade, Acadêmicos do Rio Negro, Balaku-Blaku, Império da Cidade Nova, Batucada Nacional na Folia, Mocidade da Alvorada, Cordão das Lavadeiras etc.).
O grupo C era formado pelos blocos de embalo com mais de cem brincantes (Belezas Naturais, Carnavalescos de Santa Luzia, O Boi e o Burro a Caminho do Carnaval, Jovens Livres na Folia, Caxangá na Folia, Taboca, Kadê o Mé?, Mocidade da Ipixuna, Império de São Jorge, Rabo Fino na Folia etc.).
O grupo D era formado pelos blocos de embalo com menos de cem brincantes (Manda Brasa na Folia, Águia Branca, Cabana do Pai João, Seringueiros, Olha Nós Aí, Pássaro Japiim, Os Assumidos, Piratas na Folia etc.).
Os blocos desfilavam no domingo e na segunda-feira, de acordo com um sorteio. As escolas de samba desfilavam na terça-feira.
Pelo sorteio, o bloco Andanças de Ciganos foi o quarto bloco a desfilar no domingo, depois do Águia Branca e antes do Império da Cidade Nova.
Durante o desfile, o Andanças de Ciganos surpreendeu ao mostrar na avenida um carnaval original, criativo e com muita alegria.
A Comissão de Frente, com malandros estilizados alusivos ao personagem Vadinho, do livro Dona Flor e seus dois maridos, arrancou gargalhadas e muitos aplausos da plateia.
O samba-enredo funcionou muito bem, garantindo, junto com a bateria, uma evolução empolgante.
Aliás, a bateria do Mestre Louro, vestido com traje de gala, foi a única a manter o ritmo de batimentos do início ao fim do desfile, numa apresentação que lhe garantiu o Estandarte de Ouro, de A Crítica, de melhor bateria.
Destaque para a originalidade do fechamento do desfile, com a última ala inspirada no carnaval de 1931, ano de lançamento do livro No País do Carnaval, simulando um desfile com fantasias alusivas a óperas.
Nunca a expressão “o carnaval é uma ópera de rua” foi tão bem representada.
O diabo é que o Sem Compromisso não estava pra brincadeira.
No desfile de segunda-feira, o bloco não veio apenas com o dobro do número de brincantes do Andanças de Ciganos (1.500 pessoas em 15 alas), mas levou para avenida seis carros alegóricos deslumbrantes, que não fariam feio nem no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Além disso, o enredo também foi muito bem representado, com uma leitura fácil e proporcionando momentos de grande emoção (basta lembrar que uma única ala alusiva à Copa do Mundo, na Espanha, continha todo o enredo do Reino Unido).
Somem-se a isso as fantasias e alegorias de apurado bom gosto e aí estava a receita para ganhar o carnaval.
Aliás, quem acreditava que a empolgação do bloco fosse prejudicada pelo excesso de alas também quebrou a cara.
O Sem Compromisso realizou um desfile empolgante, irrepreensível, marcado pela impecável cadência do Mestre Cabeça e acabou proporcionando um dos desfiles mais bonitos da avenida.
Ganhou o título com méritos, porque foi deslumbrante na avenida.
O Andanças de Ciganos amargou novamente um segundo lugar, mas o estreante Reino Unido da Liberdade começou com pé direito e obteve a terceira colocação.
A partir de 1983, por determinação da Emamtur, tanto o Sem Compromisso quanto o Andanças de Ciganos se transformaram em escolas de samba do grupo especial.
Nesses 27 anos de competição, a Sem Compromisso ganhou dois títulos e o Andanças de Ciganos, um título e um vice-campeonato.
Muito pouco para aqueles que foram os dois maiores blocos de embalo da história do carnaval amazonense.
Há uns três anos, Antonio José Carriço encontrou o Mário Adolfo em um evento e cantou a pedra:
– Porra, Mário Adolfo, a maior cagada que a gente fez foi deixar a Emamtur transformar nossos blocos de enredo em escolas de samba. A gente não tinha talento pra armar escolas de samba, nossa praia eram os blocos de enredo.
– Também acho! – devolveu Mário Adolfo. “O Andanças de Ciganos e o Sem Compromisso nem precisavam disputar mais nada, seriam hors concours. A gente ia ter a mesma importância que os blocos Cacique de Ramos e Bafo de Onça têm no carnaval do Rio de Janeiro. Eles não concorrem em nenhuma categoria, mas cada um atrai no seu desfile quase 5 mil brincantes!
Os dois pretendiam discutir essas idéias nas respectivas comunidades, após o carnaval de 2011.
Agora, o sonho acabou!
Valeu, Carriço!
E dê um abraço nos seus velhos parceiros Celito e Anibal Beça, que devem estar fazendo a maior festa com a sua presença.
Um comentário:
Poxa Simão, você fez eu reviver a minha adolescencia, também sou fundadora do Sem Compromisso e em todos estes anos eu nunca tinha lido um blog onde me levasse ao passado. Tempo bom era este, onde brincavamos na Sem Compromisso com Compromisso, pode ter certeza disso. Amei seu blog e tenha certeza que será divulgado por mim aos meus amigos. Obrigada por este escrito belissimo e que o nosso querido amigo Carriço seja iluminado sempre... ele estará sempre em nossos corações.
Margareth Marinho Chã
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