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quinta-feira, dezembro 16, 2010

Olha a cólera!


A cólera no Alto Solimões

Originária da Índia e de Bangladesh, a cólera se espalhou para outros continentes a partir de 1817. Em abril de 1991, através das fronteiras do Peru e Colômbia a cólera chegou novamente ao Brasil, entrou pelas cidades de Tabatinga e Benjamim Constant no Amazonas onde fez suas primeiras vitimas. Naquele mesmo ano a cólera espalhou-se pelo continente americano, atingindo 14 países, com 391.734 casos confirmados, sendo 4.002 óbitos. Até 31 de março de 1996, foram notificados ao Ministério da Saúde 154.415 casos de cólera em todo o país. Na região Norte ocorreram 11.436 casos (7,4%).

A cólera é uma doença infecciosa que ataca o intestino dos seres humanos. A bactéria que a provoca, recebeu o nome de Vibrio cholerae. Ao infectar o intestino humano, essa bactéria faz com que o organismo elimine uma grande quantidade de água e sais minerais, acarretando séria desidratação. A cólera é transmitida principalmente pela água e por alimentos contaminados. Os casos de cólera podem ser fatais se o diagnóstico não for rápido e o doente não receber tratamento correto.

Esse era o cenário que se apresentava para o jovem, mas já conceituado médico oftalmologista, Dr. Arnaldo Russo.

Ante aos insistentes apelos do então Governador de Estado do Amazonas, Gilberto Mestrinho, Arnaldo capitulou e aceitou o desafio de ser o titular da Secretaria da Saúde no estado.

Enfrentar os problemas de saúde pública no Amazonas sempre será um desafio maiúsculo, mas enfrentar uma epidemia das proporções daquela de 1991, era simplesmente incomensurável.

O sucesso daquela empreitada exigiu competência, talento, prestígio pessoal junto ao Ministério da Saúde e ao ministro da Saúde, planejamento, dedicação, recursos humanos, materiais e financeiros, medicamentos, logística e até uma boa dose de sorte.

Tive a honra de participar da equipe da Secretaria de Saúde e acompanhar o meu amigo Arnaldo numa de suas inúmeras viagens pelo interior do estado. Aquela para o alto Solimões foi inesquecível.

Poucos têm o privilégio do desfrute da intimidade do Arnaldo, e eu sou um desses. O humor desse respeitável médico é especial. Na verdade, a inteligência, a presença de espírito, a criatividade e o exagero são marcas registradas no DNA dos Russo. Arnaldo não fugiu a regra.

Para encarar um problema da magnitude da cólera era preciso ser muito mais que um grande gestor, era preciso ter bom humor. Perfeito! Arnaldo era o cara certo, no lugar certo, na hora certa.

Para que não desse nenhum boto, quer dizer nenhuma zebra, Arnaldo incorporou ao seu dia a dia uma generosa dosagem de tranqüilizante. Pronto! Agora ele estava blindado. Não haveria vibrião colérico nem pressão política que resistisse a esse trio: competência, bom humor e Lexotan.

A história cuidou de perpetuar o excelente desempenho do estado naquele tenebroso episódio que demorou cinco anos. O Amazonas foi referencia nacional.

O Hotel Anaconda e a anaconda

Arnaldo, Dr. Sócrates e eu viajamos para Tabatinga, no alto Solimões. Como eu já conhecia aquela região, sugeri que nos hospedássemos no Hotel Anaconda, o melhor hotel de Letícia, na Colômbia, fronteira com Tabatinga, no Amazonas. A Avenida da Amizade interliga as duas cidades.

Não havia vagas disponíveis. O hotel estava lotado. Nos restou um apartamento com três camas. Até aí nenhum problema, o problema era encarar os chuveiros (eram dois “chuveiros” no mesmo banheiro) e o Sócrates. Já, já, eu explico por que.

Imagina a cena: não havia chuveiros, só a tubulação rés a parede. Por conta desse detalhe, a água escorria pela parede e nós éramos obrigados a esfregar os corpos no azulejo – e, com o natural instinto de sobrevivência, cerrar as bocas para não dar moleza ao vibrião.

Além da hospedagem no Hotel Anaconda, estávamos condenados a companhia da anaconda do Sócrates, uma cobra descomunal. Tirar a cueca na frente daquele monstro ofídico era uma humilhação suprema. Tomar banho juntos, nem pensar! Deixar o sabonete cair no chão, então, era suicídio.

Apesar da desproporção nem tristeza nem complexo de inferioridade se abateram sobre nós. Tudo bem que a realidade era cruel, mas, fazer o que? Cada qual com a sua própria cobra de cumprimento e calibre particular.

Passados 19 anos, as nossas najas, sempre que convocadas, ficam de pé, já a anaconda do Sócrates... Bem, aquela coisa peçonhenta é um monstro aposentado e em desuso. De quebra, dizem, presenteou-lhe uma incontinência urinária e frieiras incuráveis alastradas entre os seus dedos. Essas, resultantes do xixi que, sem aviso prévio, banha a todo instante os seus pés.

Foi em Letícia que o Arnaldo criou o grito de guerra que nos acompanhou durante toda aquela jornada:

– Olha a cólera!!!

Club Colômbia

Álvaro Gomez Suarez, então Alcaide (Prefeito) de Letícia, havia estudado comigo na Universidade Federal do Amazonas. Álvaro, hoje residente em Bogotá, é um sujeito simpático, muito inteligente, bem humorado e boa praça, enfim, Álvaro é um cara especial. Nosso encontro foi casual. Eu não sabia que ele era o Prefeito e ele tampouco sabia o que eu fazia em Letícia. Acabou sendo um feliz reencontro.

Em frente ao Hotel Anaconda, meu amigo colombiano sentou-se a mesa conosco, apresentei-lhe o Arnaldo e conversamos sobre o propósito da nossa estada naquela região e outros assuntos mais amenos.

Não existe papo em mesa de bar sem que se peça uma bebida. Álvaro, com a educação que lhe é peculiar, sugeriu a melhor cerveja colombiana, a Club Colômbia. Arnaldo, sempre cortês, aceitou a sugestão. O Alcaide nunca soube, mas enquanto nós dois bebíamos a cerveja, Arnaldo, às escondidas, regava o jardim que adornava a fachada do Hotel e ria, de se esbaldar.

Flagrei aquela presepada, mas nada comentei com o Álvaro porque fiquei com vergonha. Quando ele se despediu, olhei para o Arnaldo e indaguei:

– Arnaldo, porra, essa cerveja é de Barranquilla, feita com água mineral, não tem o menor perigo de contaminação! Porque você fez uma desfeita dessas pro prefeito?...

E ele respondeu, se acabando de rindo:

– Olha a cólera!!!

La loca de Santa Rosa

Alem de nós três, lá no combate ao vibrião colérico estavam o Schubert, representando o Ministério da Saúde, o Secretário Municipal de Saúde de Tabatinga, o Prefeito daquele município, vereadores e a briosa equipe médica do Comando de Fronteira Solimões / 8º Batalhão de Infantaria de Selva.

Schubert era um descendente de alemão, branco, olhos azuis, louro e medindo mais ou menos dois metros de altura. Era sério, incapaz de pregar um sorriso nos lábios. O Comandante Militar do 8º Batalhão era um gaúcho, o típico macho dos pampas, pai de sete filhos, articulado, simpático, prestativo, comprometido com a sua missão militar, absolutamente integrado àquele evento de proporções alarmantes.

Santa Rosa é o município peruano que junto com Tabatinga no Brasil e Letícia na Colômbia, compõe a tríplice fronteira. A estrada que liga uma cidade à outra é o Rio Solimões. O acesso, portanto, é unicamente fluvial.

Arnaldo resolveu quebrar aquela relação - formal como um encontro de chefes de Estado - e com a serenidade de um Papa, convocou o Schubert para uma conversa particular:

- Schubert, meu amigo, tenho um assunto delicado para te falar!

Schubert, solicito, respondeu:

– Arnaldo, meu caro, sou todo ouvidos!

- Pois é, tu vistes o Comandante, né?...

- Sim, claro, e estou muito admirado. O Comandante está realizando um ótimo trabalho. Ele é preparado e muito atuante... mas o que qui tem o Comandante?...

- O Comandante, meu caro Schubert, é tão atuante que tem dupla personalidade...

- Dupla personalidade? Como assim?...

- Eu não devia te falar não, mas a minha língua tá coçando...

- Então desembucha logo, Dr. Arnaldo, que eu já estou ficando curioso!

- Negócio seguinte. Pela manhã ele é o Comandante que tu conheces bem, uma autoridade militar de respeito, que grita, ordena, que comanda esse Pelotão com mão de ferro, mas quando a noite chega...

- Fala logo, Dr. Arnaldo, que já está me dando dor de barriga!

- Pois é, meu caro Schubert, eu até agora ainda estou de queixo caído, mas vamos lá. Eu soube que todos os dias, depois da meia noite, ele se transforma. A farda verde oliva é substituída por um vestido esvoaçante, branco como a neve siberiana. Com essas vestes, ele entra numa voadeira, atravessa o Solimões e vai assediar sexualmente os adolescentes desprevenidos de Santa Rosa. Lá ele é conhecido como “la loca de Santa Rosa”.

- Não! Não! Não! Aquele gauchão pai de sete filhos é fresco?!... Eu não acredito!!!

- Eu também não, juro por Deus! – e quando o Arnaldo jura por Deus, tenha certeza, Deus pede licença e sai de fininho.

O dia seguinte vocês não podem imaginar. Schubert não conseguia encarar o desavisado Comandante. Desconcertado, ele olhava a todo instante para o Arnaldo, que permanentemente acenava com a cabeça confirmando aquela estória por ele inventada.

Schubert saiu sorrateiramente de Tabatinga, sequer se despediu de nos e, muito menos, do do militar. Parece que foi um índio Ticuna, completamente borracho de Pisco inca, aguardente Cristal e Cachaça, quem disse ter visto um lourão, pálido como um defunto, se atirando nas águas barrentas do Solimões. A notícia tocou o puta merda geral.

O Comandante organizou uma busca por água, céu e terra sem precedentes naquelas plagas. Uma busca verdadeiramente inglória, diga-se de passagem, posto que o cara escafedeu-se sem deixar pista.

Tivemos notícia de sua chegada em Brasília vinte dias após o seu sumiço. Schubert foi imediatamente internado no Hospital Santa Luzia, seu intestino era um depósito lotado de vibriões. Parece que a cada banzeiro que ele enfrentava, litros do Solimões ele bebia.

Dizem os fofoqueiros de plantão que todo ministro que assume a Pasta da Saúde pede para ele repetir essa estória. A lembrança causa-lhe uma diarréia que nem elixir paregórico estanca: é como se os vibriões ressuscitassem.

Foi mais um triunfo russo, uma repetição da Batalha de Leningrado.

Quando eu perguntava ao Arnaldo se ele não ia desfazer aquela estória, ele se esbaldava em gargalhadas e respondia:

– Olha a cólera!!!


Arnaldo, meu mano, aquela foi uma viagem inesquecível. Só com muito bom humor para suportá-la e nesse quesito, não tenho dúvidas, você extrapolou.

Obrigado por esses anos de convivência, pelas noites inolvidáveis e pelos impagáveis favores que só os amigos são capazes de proporcionar.

Parabéns pelo natalício, saúde, sucesso, longevidade, paz e harmonia.


Beijo fraterno.

Lúcio M. S. B. Menezes

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