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segunda-feira, março 26, 2012

Aula 17 do Curso Intensivo de Black Music: Marvin Gaye


O vocalista Marvin Gaye foi uma das maiores expressões do soul da Motown.

Suas músicas eram o resultado de um equilíbrio raro entre sentimentos universais conflitantes.

Expressavam a violência da revolta contra a repressão, a explosão da paixão e a celebração da vida através de uma concepção pessoal do gospel, do blues e do soul.

Esses contrastes foram refletidos em jóias pop que alcançaram o sublime como “Sexual Healing”, “How Sweet It Is”, “What’s Goin’ On” e a monumental “I Heard It Through The Grapevine”, que se transformou num clássico pelas mãos do Creedence Clearwater Revival.

Sua voz podia ser alternadamente áspera, rasgada, alcançar um falsete controlado, firme ou ainda se tornar suave e quente, próxima da voz falada.

Daí a incrível variedade de seu repertório, traduzido em mais de 20 discos.


Marvin Gaye havia atravessado a década de 60 como um curinga no celeiro/linha de montagem da Motown – além de gravar como cantor, participava aqui e ali como compositor, arranjador, produtor e instrumentista (além de piano, toca bateria em vários dos hits das Supremes).

O diabo é que todos os contratados da gravadora tinham, porém, de se encaixar no rígido molde pop ditado e concebido por Berry Gordy Jr.

Do repertório ao vestuário, passando por aulas de dicção e “boas maneiras”, todas as “arestas” de negritude eram aparadas em nome de um romantismo platônico e doce (mas nunca meloso).

O transe carnal dos blues e espiritual do gospel ainda estava lá, mas em baixíssimos teores.

Com essa fórmula, Gordy havia tomado conta das eletrolas e radinhos de pilha do universo.

Pop clássico eterno – mas uma camisa-de-força para talentos como Marvin Gaye e Stevie Wonder, cujo potencial só seria revelado no começo dos anos 70, quando ambos conquistaram sua autonomia dentro da gravadora.


O álbum “What’s Goin’ On”, lançado em 71, foi a primeira batalha ganha nessa guerra e custou todo o cacife do cantor.

O lançamento atrasou alguns meses porque a Motown não queria editá-lo de jeito nenhum, alegando que as músicas: (a) eram longas demais; (b) não tinham começo, nem meio, nem fim; (c) não falavam de “amor”, e sim de religião, política, drogas e ecologia.

Marvin ameaçou não gravar mais uma nota sequer pela gravadora, chiou barbaridade e fez pé-firme.

Ganhou, estourando a banca.

Três das faixas – a título, mais “Mercy Mercy Me” e “Inner City Blues” – viraram hit singles e, até hoje, as vendas do LP somam mais de 12 milhões de cópias só nos EUA.

Venceu, assim, a visão de um gênio que confessou ter passado a segunda metade dos anos 60 atormentado com a “irrelevância” do que estava gravando, diante da revolução de consciência que ocorria no mundo e do surgimento do selo Stax, afiando todas as arestas que a Motown limara.

Dirigindo-se, desde os primeiros sulcos, aos “brothers” e “sisters”, Marvin compõe um manifesto panorâmico da vida no gueto – pobreza, violência e drogas – antes de atacar as “questões universais” que tinham arrepiado a diretoria da Motown.

Musicalmente, não existe nada mais doce.

As faixas se interligam numa só levada, lânguida e hipnoticamente esticada numa espécie de suíte.

Tudo flui numa textura de cordas e metais que Paddy McAloon, do Prefab Sprout, definiu como “Mozart de patins”.


Marvin não escrevia partituras, mas contornou o problema gravando fitas e fitas assobiando as frases dos violinos, transcritas, então, pelo regente/orquestrador David Van DePitte.

Produzido pelo próprio cantor, o disco exibe uma maestria instrumental certamente assimilada no trabalho com Norman Whitfield.

Sua entrada na Motown, como compositor, arranjador e produtor, redefiniu o pop como marca registrada da gravadora, principalmente com os Temptations.

Com Marvin, ele desenvolveu o monumento “I Heard It Through The Grapevine”, o que já bastaria como credencial.

Em “What’s Goin’ On”, porém, Marvin mostra que já não precisava dele, nem de ninguém.

Os vários canais de gravação são utilizados num show vocal, algo como um grupo doo-wop de um homem só, em contracantos e harmonias que talvez só Sam Cooke poderia igualar, houvesse em sua época tecnologia para isso.


Na década de oitenta, a carreira de Marvin Gaye começou a degringolar até se converter numa tragédia.

Era uma cena diária.

O cantor estava em casa entupido de cocaína e álcool.

Seu pai, o reverendo Marvin, xingava a mãe.

Marvin partiu para cima do pai.

Mas, naquele dia, o reverendo sacou um revólver e matou o filho.

Sentou-se numa cadeira e ligou para a polícia.

“Não podia mais agüentar”, disse o Marvin pai.

O Marvin filho morreu no dia 1.º de abril de 1984, na véspera de fazer 43 anos.

Pouco antes de morrer, havia recuperado o gosto do sucesso das décadas anteriores com o hit “Sexual Healing”, que levou um Grammy.

Mas a paranóia dos últimos anos foi terrível.

Marvin dizia que ia deixar a música e virar monge.

Minutos depois falava que seria um símbolo sexual maior que Elvis.

Em seguida ligava para as ex-mulheres aos prantos.

Descontava no pai todas as surras que havia levado na infância.

Quatro meses antes de sua morte, com medo de assaltos, deu ao pai o revólver que o matou.

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