Na jornada de pai e
filho rumo a Santiago de Compostela, um encontro com Hemingway e o verdadeiro
sentido do que é ser homem
Thales Guaracy
Entro no Gran Hotel La Perla, com suas arcadas abertas para
a Plaza del Castillo, em Pamplona – entre a praça de touros e a rua pela qual,
atravessando o coração da cidade, segue-se a caminho de Santiago de Compostela.
O saguão, guarnecido com lambris, suave, quente e acolhedor, contrasta com a
manhã cinzenta e enregelada de abril. Sobre a escrivaninha ao lado do balcão,
encontro não a efígie dos três reis que já dormiram ali, mas o busto acobreado
de um velho conhecido: ele, sempre ele, Ernest Hemingway.
Quase não há lugar aonde eu tenha ido sem Hemingway: já
visitei sua casa em Key West, onde os tarpons rodeiam no cais os barcos de
pesca; sentei ao lado de sua estátua na Floridita, em Havana, para tomar, como
ele fazia, os famosos daiquiris locais. Já nos hospedamos nos mesmos lugares,
do Hôtel D’Angleterre, em Paris, ao Norfolk Hotel, em Nairobi, no Quênia. E,
sem querer, acabo também ali, na cidade de onde ele tirou inspiração para seu
primeiro best-seller, O Sol Também se
Levanta, atraído pelas coisas que achava que faziam um homem ser homem –
especialmente o frisson das touradas e algo do sangue latino que, no norte da
Espanha, corre das garrafas de tinto da Rioja para o sangue dos toureiros e dos
loucos na festa de San Fermín.
No La Perla, pode-se assistir aos touros correndo atrás do
populacho através da parede de vidro no célebre restaurante do subsolo,
decorado com as cabeças de um par de Miuras. O rebanho passa, atropelando os
foliões, rumo à Plaza de Toros, logo adiante; porém, não é por isso que estou
ali, na companhia de meu pai. Escolhemos Pamplona por ser uma cidade com
aeroporto na província de Navarra, ao norte da Espanha, para começar a
caminhada rumo a Compostela. Uma mistura de auto de fé com aquela bravura que
Hemingway tentou extrair do espírito de Pamplona para si e para o romance, com
seu herói sexualmente impotente, mas que ainda assim consegue manter diante da
vida certa nobreza: uma espécie de virilidade moral.
Nossa viagem também tem algo de literário. Em 2007,
publiquei um romance, Campo de Estrelas,
inspirado numa história pessoal. No romance, como na vida, pai e filho combinam
uma viagem a Compostela. Todos os anos, 4 milhões de pessoas perseguem os mais
de 700 quilômetros balizados por azulejos azuis de um périplo que se tornou um
tanto clichê, depois de popularizado pela literatura de Paulo Coelho. Em Campo de Estrelas, porém, a viagem nunca
acontece; chega-se ao final do romance e o que se conta é outra viagem, uma
viagem do passado, da minha adolescência, que falava do companheirismo entre
filho e pai, a verdadeira fonte da coragem nos momentos mais difíceis da vida,
como o que eu enfrentava na época.
Desta vez, quem sabe estivéssemos de novo em busca da mesma
coragem, pois tinha sido a vez de meu pai se curar da mesma doença que tive
anos atrás. Passaram-se quase dez anos desde o projeto inicial – a viagem que
não aconteceu –, passando pela publicação do romance, até a ideia de, enfim,
realizá-lo. Meu pai achava melhor não confiar demais no seu vigor físico,
extraordinário para um homem de 77 anos – não muito diferente do meu, que já
caminho para os 50. “Pode ser que no ano que vem eu não tenha a mesma energia”,
me dizia ele.
Traçou todo o plano: comprou as passagens, estudou o Caminho
e, para desfrutar de um dia de conforto antes da caminhada, reservou o La
Perla. E embarquei com ele, colocando um grande momento à frente de todos os
compromissos que deixam a gente acorrentado ao dia a dia. Estávamos preparados
para, depois de uma noite de sono numa cama macia, taças de vinho e bocadillos
de jamón serrano, finalmente partir.
Saímos de Pamplona numa manhã de domingo com a mochila às
costas: nada além de uma muda de roupas, documentos, uma garrafinha d’ água,
celular, saco de dormir leve e impermeável e uma escova de dente. Na primeira
quadra, na única porta aberta de todo o comércio da cidade, uma loja dessas
repletas de tranqueiras para turistas, paramos para comprar um par de cajados.
Meu pai escolhe um pau pesado, com feições bíblicas – meio entalhado, munido de
uma ponteira de chumbo. Eu prefiro um vermelho, com ponta de borracha, que
lembra mais um cabo de vassoura serrado improvisadamente. O que parecia outro
clichê da viagem se revelaria quase imprescindível na longa jornada.
Saímos da cidade em silêncio, aspirando pela primeira vez a
grande sensação do Caminho. Chega-se às cidades quase sem nada, parte-se quase
sem nada; nos primeiros quilômetros, vemos as roupas que muitos caminhantes vão
largando ao longo da trilha para aliviar sua carga – e que ninguém pega. Esse
despojamento oferece uma nova perspectiva de capacidade física, de
desprendimento, de liberdade e de um estranho poder que enche os pulmões como
uma golfada de ar puro.
Os primeiros quilômetros levam a Cizur Menor, onde almoçamos
no El Tremendo, um restaurante de Asados, a churrascaria espanhola, com uma
lareira alentadora, uma salada voluptuosa e um bife ainda melhor. Calorias
úteis para o trecho a seguir, que leva ao Alto del Perdón, ponto mais elevado
do Caminho, um objetivo bastante duro para um primeiro dia de jornada. Mais
tarde, saberíamos que chovera na Espanha “como nunca”, segundo as palavras de
um camponês, enquanto limpava seu jardim de oliveiras munido de um forcado com
algo de macabro. A trilha tortuosa se eleva num terreno difícil, porejando água
pelo solo arenoso, transformando a trilha num leito de lama e pedra que exige
atenção a cada passo e desvios frequentes pelo mato.
Na subida, encontramos pela primeira vez uma das várias
cruzes plantadas ao longo do Caminho, sinalizadores de onde caíram os
peregrinos que procuravam uma iluminação de fé e acabaram encontrando por ali a
própria eternidade. Paramos para ler o nome, a história, os bilhetes pendurados
na cruz e na árvore que lhe dá sombra; há flores sintéticas sobre a pilha de pedras
que outros caminhantes vão juntando ao marco tumular.
Nos comprazemos de chegar vivos ao Alto del Perdón, o
belvedere decorado pelo Monumento ao Peregrino, uma caravana desenhada com
recortes de chapas de aço, sob modernos moinhos de vento que zunem pela crista
da serra como nos tempos de Dom Quixote. Ali os peregrinos param para tomar
água, tirar fotografias, apreciar o horizonte e ganhar fôlego por alguns
minutos. Nenhuma comemoração, assim como o descanso, dura muito tempo – é
preciso prosseguir para chegar a algum abrigo ainda com a luz e o calor do dia.
O Alto del Perdón com
seu clima de Quixote
A descida deveria ser uma festa, mas é tão difícil quanto
subir; não apenas por causa do terreno escorregadio, mas pela incômoda convivência
com uma espanholinha que, apesar de claudicante, tagarela com sua parceira de
viagem como se estivesse num bar de Madri. Descem a trilha na mesma velocidade
que nós, com mochilas tão grandes às costas que a distância parecem um par de
pinguins. Lá embaixo, meu pai deposita os sapatos embarrados e os joelhos
doloridos num banco providencial, guarnecido por um guarda-chuva abandonado.
O trecho final do dia é plano, numa trilha entre campos
lavados e pontes de pedra sobre torvelinhos turbinados pela recente chuvarada
até a visão, quase miragem, da vila de Uterga. Ao fim de 16 quilômetros a pé,
que nas palavras de meu pai “pareceram 200”, um simples caldinho e uma omelete
sugerem um milagre de São Tiago. São servidos na mesa do albergue da cidade, o
único lugar aberto também para se comer. Descobrimos que os viajantes mais
velhos ou cansados sempre se dão mal, porque chegam quando os albergues já
estão lotados pelos peregrinos mais rápidos. Nesse caso, porém, o azar é sorte:
sobrou o quarto mais caro, e por 50 euros a dona do albergue nos leva de carro
a duas quadras dali, para um sobrado com acomodações extras. Eu e papai
dormimos juntos numa cama de casal, roncando como porcos, depois de deixar
penduradas no aquecedor cuecas e camisas lavadas na pia do banheiro privativo.
Quarto com banheiro é um luxo extravagante nas pequenas
cidades bascas do Caminho; nada funciona nos pequenos vilarejos onde o único
movimento noturno é mesmo o dos albergues, com seus quartos coletivos onde se
dorme em beliches no saco de dormir. Eu me pergunto se saímos de casa para
enfrentar voluntariamente aquela dureza por que nos falta um parafuso ou ainda
é o efeito Hemingway: existe no homem uma estranha mania de querer provar a si
mesmo, criar dificuldades apenas para saber se somos mesmo feitos da matéria
que pensamos – ou gostaríamos literariamente de ser.
A catedral de Puente
La Reina
A manhã seguinte começa menos fria; os primeiros quilômetros
são agradáveis, entre campos floridos, e passam por vilas bucólicas. Seguimos
viagem até o almoço numa taberna de traves centenárias em Puente La Reina; na
entrada, um móvel antigo que lembra um confessionário serve para os peregrinos
deixarem seus cajados, como nos restaurantes pelo resto do mundo se faz com os
guarda-chuvas. Passamos pela célebre ponte medieval que dá nome à cidade e
somos obrigados a caminhar no asfalto por severos quilômetros; as chuvas tinham
destruído o caminho naquele trecho e chegamos a Mañeru ao fim do dia caminhando
por uma rodovia pouco utilizada.
Todas as casas em Mañeru parecem fechadas. Na Espanha atual,
onde um quarto da população ativa está desempregado, muita gente abandonou sua
cidade natal para buscar emprego em lugares maiores ou outros países da Europa.
Os únicos estabelecimentos abertos em toda a cidade são o albergue dos
peregrinos, e um bar próximo, onde se pode comer alguma coisa. Encontramos as
espanholinhas do Alto del Perdón dormindo pesadamente em um dos beliches do
quarto amplo, com teto de ripas de pinho, com um aquecedor grande na parede
oposta àquela onde colocamos nossas coisas, para marcar lugar. Tiro da mochila
os dois sacos de dormir cor de laranja, comprados em São Paulo. Escolhemos duas
camas de baixo; os colchões estão cobertos por um forro limpo e os banheiros
são bastante asseados.
Na entrada do albergue, há uma cozinha onde o hospedeiro,
Luís, nos diz que podemos cozinhar. Parece a única pessoa da cidade que tem um
trabalho, e ainda assim limitado a sete meses por ano, porque no inverno os
peregrinos rareiam; paga-se pelo pernoite 10 euros por pessoa, e nessa época
não compensa manter funcionando o sistema de calefação.
O albergue aos poucos se enche: um loirão com cabelo
rastafári, cujo cheiro de ralo vem com ele, na vanguarda, tem estrutura física
de alpinista e cara de bebê; um casal de japoneses se abraça na cama inferior
do beliche, como namorados; uma coreana que parece esmagada pela mochila, sem
saber espanhol nem inglês, mostra ao hospedeiro a mão em concha, com um punhado
de arroz, indicando o que gostaria de comer. Mas não, não há arroz, nem nada.
Por fim, chega um americano nos seus 60 anos, queixo largo,
expressão confiante, que joga sobre a cama seu chapéu de lona. Senta-se e, com
calma, vai tirando suas coisas da mochila, mastigando lentamente os pensamentos.
Penso em Hemingway, que, com certeza, era um homem como aquele, ou vice-versa:
um homem de compleição sólida, queixo quadrado, querendo ser o que não é.
Hemingway pescava, mas não era um pescador; caçava, mas não era um caçador;
servira na guerra, mas não tinha sido soldado, e sim motorista de ambulância.
Como ele, o homem de Mañeru era apenas um americano endurecido por si mesmo,
com uma roupa cáqui comprada em uma loja esportiva, criado com porções de
hambúrguer e batatas fritas, que desejaria estar mais perto da vitalidade pura
da natureza – a força primitiva ou a singular energia que Hemingway via no
homem com raiz.
Não temos nada para cozinhar, de maneira que só podemos
comer no bar. Quando voltamos, as duas espanholas tagarelas estão acordadas e sentaram
à mesa da refeição coletiva do albergue diante de uma garrafa de vinho, já no
final. Conversam com Luís, alguns decibéis acima da sobriedade; na ponta da
mesa, está o novo Hemingway, compenetrado sobre seu caderno moleskine, onde
escreve sofregamente; aceita ao final uma taça de vinho oferecida pelas
garotas. Depois, elas saem – a ruiva, já na rua, através do vidro da janela
dança para mim um pouco de samba. E ambas desaparecem a caminho do bar.
Durmo mal, embrulhado no saco de dormir, algo que não fazia
desde os tempos de adolescente. Penso, enquanto as espanholinhas voltam de sua
incursão noturna: é isso que me mostra o Caminho. O anti-Hemingway se aceita
como é, torna-se natural, na plenitude. O pescador não quer ser caçador nem
executivo; vive o mar, tem a pele curtida de sol, balança com as vagas, sente
na boca o gosto salino do horizonte marinho.
Este é o sentido de o homem encontrar a si mesmo:
descobrimos que podemos ser melhores do que a imagem com que sonhamos de nós
mesmos. Aceitamos afinal quem somos, ao contrário de Hemingway e do resto das
almas aflitas como ele, para quem uma vida só não é o bastante. Apreciamos
nossas limitações, fraquezas, lugares e coisas que amamos; nós, e a nossa vida.
Fim da linha precoce
no Tximista
Nosso terceiro dia de jornada é duro, 16 quilômetros, com
apenas uma parada maior, para o almoço, em Lorca: uma cerveja e uma pizza
indigesta, compensada pela difusão do sinal gratuito de wi-fi. Ao final do dia,
extenuados, ainda temos de cruzar inteira a cidade de Estella-Lizarra, a maior
pela qual passamos desde Pamplona, à procura de um hotel onde nos refazer não
apenas da caminhada, mas da noite maldormida no albergue. Os pés estão doídos
de pisar em pedras o dia inteiro, os joelhos bambeiam por conta das inúmeras
ladeiras, as canelas sofrem de tanto levantar as botas. Entramos felizes no
Tximista, belo hotel contemporâneo, quatro estrelas, um quarto no terceiro
andar, com vista para as árvores que servem de corredor para o pujante rio Ega.
Lavo as roupas, escovo os sapatos, tomo um banho reparador. Descemos para
jantar, exangues, porém com a melhor perspectiva que um peregrino pode ter: um
belo jantar e cama.
Meu pai, porém, não percebe que o elevador tem uma segunda
porta; ele se encosta e, quando ela se abre, cai de costas, em câmera lenta. A
caminho do piso do restaurante, tenta segurar-se com a mão direita na folha da
porta do elevador, que por dentro, fruto do mau acabamento, ou da arte
diabólica do santo espanhol, é afiada como uma faca. Quando ele aterrissa, de
sua mão explode um jorro de sangue, expelido da base dos dedos, cortados até o
tendão.
Passamos os dois dias seguintes no hospital de Estella-Lizarra,
onde meu pai passa por uma cirurgia para religar os tendões; quando recebe
alta, vê desolado a viagem terminar pelo vidro do quarto no Tximista. Tento
convencê-lo de que esse desastre é a mensagem do santo: o que procuramos não
está em Compostela, mas dentro de nós mesmos. São Tiago foi incisivo na forma
de nos mandar para casa, mas também gentil, colocando um hospital a 200 metros
do acidente. Tudo planejado.
Voltamos mais cedo, meu pai com o braço entalado; tivemos
bons momentos e, graças aos analgésicos, ele vai recuperando o bom humor. O
gerente dos elevadores Orona, cujo seguro paga as despesas com o hospital, nos
dá carona de volta a Pamplona; revemos, pelo vidro do carro, alguns cenários
percorridos em três dias a pé. Depois de caminhar apenas 45 dos 710 quilômetros
até Compostela, voltamos em silêncio ao ponto de partida.
Depois de dois voos diurnos, chegamos a São Paulo ao
anoitecer de sexta-feira; tomamos o táxi e descemos no Pátio Higienópolis, onde
a mulher de papai o vem buscar, de carro. É estranho entrar no shopping estando
sujo, barbado e de mochila às costas; mais estranho ainda é bater no piso
marmóreo o cajado do peregrino. A sensação, porém, não é de estar deslocado,
mas a de que todos os outros é que estão fora da realidade. A vida na
megalópole parece não fazer mais o menor sentido. Foram apenas três dias de
caminhada, uma semana fora de casa, e o bastante para uma radical mudança de
percepção. Nós nos despedimos com um abraço e palavras de amor. “Pena, além de
não fazer o caminho todo, é perder sua companhia”, diz meu pai. “Mas isso ainda
continua”, eu respondo.
Vou para a minha própria casa, a uma quadra dali, e aperto a
campainha da portaria. Na penumbra, com o volume da mochila às costas, sou
confundido pelo porteiro com o entregador de pizza. Hemingway me espera de
novo, em silêncio, nas estantes. E me sinto feliz por saber que sou eu, mais do
que nunca, quem pisa ali.
Nenhum comentário:
Postar um comentário