Publicado no Jornal do
Brasil em janeiro de 1988 e retirado do Saite Millôr Online
Millôr Fernandes
Parte I
(Uma tentativa de entender o livro, o autor, e o país em que
nasceu um e foi publicado o outro)
Leitor, mais uma vez fui enganado. E enganado em literatura,
por gente da melhor qualidade pra julgar literatura, como João Gaspar Simões,
Jorge Amado, Carlos Castello Branco, Josué Montello, Luci Teixeira, Antônio
Alçada Baptista, Lago Burnett.
E, last but
not least, pelo mais preparado de todos pra tarefa específica (estudou em
Heidelberg), o crítico literário Leo Gilson que, em 66, me levou para a honrosa
propaganda da Olivetti, de onde fomos afastados, Deus do céu!, por suspeitos de
comunismo.
Fui enganado por todos esses luminares do pensamento. Da
literatura de Sir Ney me afirmaram, em escritos de fé: “Uma nova vertente na
literatura Norte-Nordeste” – Carlos Castelo Branco. “Grande escritor” – Josué
Montello.
“O processo ficcional de repente se faz em correlações onde pequenos
binários de ação se sintonizam por força da mesma tenção significadora” – Luci
Teixeira.
“Lamentar o prejuízo que a literatura de expressão portuguesa tem
vindo a sofrer pelo fato de José Sarney se lhe não dedicar o tempo inteiro” –
Alçada Baptista.
“José Sarney é um escritor político no amplo sentido em que
atinge a abrangência aristotélica” – Lago Burnett.
“O regionalismo que ele
renova com a sua paisagem humana, sua poesia, sua afinidade com a ingenuidade,
a pureza e a graça maliciosa do povo maranhense, mosaico do povo brasileiro” –
Leo Gilson Ribeiro.
Todos me enganando. Só fui desconfiar, apavorado com o
complô, na primeira vez em que ouvi Sir Ney usar o apelativo rastaquera,
“Brasileiras e brasileiros”, fazendo média contraproducente (por ridícula) com
o feminismo.
E percebi, também, que ele era incapaz de construir uma frase,
quanto mais um período, e nem falar de um discurso lógico. Por isso fui reler o
Brejal dos Guajas com mais atenção. Fiquei estarrecido.
Não se pode confiar o
destino de um povo, sobretudo neste momento especialmente difícil, a um homem
que escreve isso.
Não tendo no cérebro os dois bits mínimos para orientá-lo na
concordância entre sujeito e verbo, entre frase e frase, entre ideia e ideia,
como exigir dele um programa de governo coerente pelo menos por 24 horas?
Não escrevi imediatamente sobre o livro por uma questão de…
piedade.
Mas agora, depois da jogada de gigantesca corrupção em que, como
medíocre ditador, troca esperança de 140 milhões de brasileiras e brasileiros
por mais um ano de sua gloríola regada a jerimum, começo uma pequena análise
dessa ópera de 50 páginas.
Esclareço logo que não se trata de um caso de má, ou
até mesmo péssima, literatura, de uma opinião malévola ou discutível.
Em
qualquer país civilizado Brejal dos Guajas seria motivo para impeachment.
Mas, afinal, Sir Ney, escreveu ou não escreveu um livro?
Da
mistura das leituras mais simplórias misturadas de maneira confusa, numa cabeça
sem similar no mundo da intelequitualidade, o autor conseguiu chegar a isso que
é a ambição de meio mundo – um livro?
Leia a opinião da UNESCO a respeito. É.
Aguardem!
Parte II
As opiniões divergem. Alguns brilhantes e cultos
intelectuais, como os já citados aqui, afirmam, audaciosamente, que Brejal dos
Guajas é um livro.
Eu garanto que não.
É uma anedotinha “socialzinha” tolinha
(já contada mais de um milhão de vezes) da briguinha de dois coroneizinhos de
uma cidadezinha perdidinha no interiorzinho do Maranhão.
O autor deve ter lido umas 20 páginas de Jorge Amado (Marli,
que socialismo!) e umas cinco de Guimarães Rosa (Zezinho, que linguagem! E que
difícil, Murilo!) e isso, claro, lhe causou uma indigestão na cabeça.
Reacionário desde sempre, deve ter achado fascinante e lucrativo ser um
escritor do povo.
Sem jamais ter entendido a realidade em volta, naturalmente
fundiu diante do realismo mágico.
Incapaz de juntar sujeito e predicado em
português escolar, se perdeu na aventura da linguagem que é Guimarães Rosa – e
até hoje não encontrou a volta.
A istória do Brejal não se sustenta no todo ou em partes.
No
todo, porque tem um “enredo” sem a mais mínima consistência, a tentativa
poética é lamentável, a de filosofia, ridícula.
Em partes porque, no livro,
praticamente, não tem uma frase que não seja errada em si mesma ou incoerente
em relação a outras mais adiante ou mais pra trás.
E, perto da estrutura dos
personagens do Brejal, os personagens da Praça da Alegria, da televisão, são
obras-primas de criação psicológica, heróis do Guerra e Paz.
Brejal dos Guajas só pode ser considerado um livro porque,
na definição da Unesco, livro “é uma publicação impressa não periódica com um
mínimo de 49 páginas”. O Brejal tem 50.
Materialmente, Sir Ney salvou-se por
uma página.
Contam os íntimos que o “escritor”, depois de vinte anos de
esforço, bateu o ponto final na página 50 e gritou, aliviado, pra dona Kyola:
“Maiê, acabei!”
Parte III
Descoordenado motor (incapaz de se agachar e tirar a
etiqueta de um sapato), Sir Ney é mais descoordenado como pensador. Brejal é o
livro de um autista.
Há solecismos em penca, as idéias nunca se completam e
sempre se contradizem.
A cidade, que não tem escola, tem professora e alunos,
não tendo telégrafo transmite telegramas, não possuindo edifícios públicos tem
prefeitura, câmara de vereadores, juizados de casamento, dois cartórios,
ostenta uma força policial de pelo menos 12 homens (relativamente, o Rio teria
que ter uma força policial de quase meio milhão de policiais), é dominada por
dois primos por pais diferentes (!!!!), “ricos e poderosos”, e, tendo só duas
ruas (quase uma impossibilidade urbanística; eu sei como desenhar uma cidade de
duas ruas, ele não sabe), tem duas orquestras (ele quer dizer bandas), e
comporta ainda mercado, lojas, igrejas matriz, etc.
O verdadeiro milagre
brasileiro!
Tem mais, essas duas espantosas ruas de 120 casas (com o que Sir
Ney quer significar um vilarejo perdido do mundo), por meus cálculos
matemáticos irrefutáveis, abrigam uma população de 15. 272 pessoas, o que faz
do Brejal, em 1945, época da istória, talvez a maior cidade maranhense, depois
de São Luís.
Ou isso é o mais maravilhoso realismo mágico de que eu
jamais tive notícia, obra esfuziante de um gênio que só vai ser compreendido
daqui a séculos, ou estamos diante da mais espantosa incapacidade de expressão
da literatura universal.
Parte IV
Fascinado, continuarei a demostrar que Brejal dos Guajas é
obra sem similar na literatura de todos os tempos.
Só um gênio conseguiria
fazer um livro errado da primeira à última frase.
Espero que meus modestos
comentários alertem os amigos do vosso Presidente, como o governador José
Aparecido de Oliveira, pra que lutem a fim de que a Unesco transforme esse
livro num patrimônio da humanidade.
Depois dos artigos de caráter geral, começo hoje a analisar
frase por frase dessa catedral do avesso do pensamento humano.
Tendo o livro
cinquentas (para usar a concordância do autor) páginas de 36 linhas, estaremos
juntos aqui durante cinco anos (epa!).
Sei que vão me considerar mais um
puxa-saco, mas isso não me impedirá de divulgar tão gigantesca efeméride
(literatura é efeméride?). Comecemos pelo título, Brejal dos Guajas.
É
espantoso que, maranhense, o homem não saiba a acentuação tônica (é tônica,
pois não?) desse gentílico. Não é Guajas. É oxítono, Guajás.
Na página 22, o autor se aprofunda, explicando o Brejal:
“Chamado dos Guajás, porque ficava próximo à aldeia dos Guajajaras, hoje longes
(sic), perdidos, mortos e domados”.
O cós não tem nada a ver com as calças:
Guajás e Guajajaras (*) são duas tribos diferentes (ambas do Maranhão), a
primeira ainda nômade, com alguns elementos com os quais não se conseguiu
contato, e a segunda normalmente sedentária.
As duas tribos até que, até hoje,
se estranham.
A frase de Sarney equivale a: “Chamados de brasileiros
porque ficavam próximo à aldeia dos argentinos”.
Sem falar que os Guajajaras
não estão “longes (sic), perdidos, mortos e domados”.
Reduzidos a uns 800 na
década de 40, são hoje aproximadamente 6 mil. Uma grande tribo. E não vão votar
no Sir Ney, porque não gostam de ser chamado de Guajás, e nem mesmo de
Guajajaras, mas de Tenetearas.
Guajas não sabem o que é. Nem querem saber.
(*) Em matéria de guajas, guajás, guajajaras e tenetearas,
meus agradecimentos ao antropólogo Carlos Alberto Ricardo – Beto)
Parte V
Comento hoje a 1ª linha do livro: “O caminho do Brejal era
longe”.
Como o caminho do Brejal era longe?
O autor esta querendo
mostrar o isolamento da cidade, um mundo perdido, pobre, abandonado, com apenas
duas ruas (mais tarde provarei que era a maior cidade do Maranhão, depois da
capital); portanto, Brejal seria “longe de todos os caminhos”.
Quando o autor
diz que “O caminho do Brejal era longe”, como garante que é o caminho do
Brejal?
Sendo longe do Brejal, o caminho, em última análise, não é do Brejal.
Vai ver é de Pirapora, Cascadura, Nova Zelândia, sei lá.
Uma coisa, Sir Ney, o
caminho de um lugar é sempre perto desse lugar, a partir de. Pode ate não ir
longe, mas é perto.
Se, porém, o autor assume um ponto de vista exterior em
relação ao Brejal (o que absolutamente não foi feito), tem que dar uma ideia de
onde está.
Na Academia Brasileira de Letras, por exemplo? Mas daí pro Brejal,
todos sabem, o caminho é muito perto.
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