João Sebastião
Na última sexta-feira passei por uma experiência inédita.
Ex-aluno de direito – estudei na velha FUA, de onde fui sumariamente expulso,
no 5º período, sem direito a defesa, por ter rido na cara de um
desembargador-professor, que não sabia nada da matéria que deveria ministrar e
só queria nos enrolar. Tempos da ditadura, onde quem tinha phoder phodia. Maus
tempos aqueles, de direitos castrados. Onde era que eu estava, mesmo?
Ex-aluno de direito, fui convidado pelo escritor Zemaria
Pinto, meu dileto amigo e compadre, para acompanhá-lo a uma delegacia, onde
fora convocado – com a gentileza que caracteriza essas convocações – para se
explicar. Explicar de quê? Sei lá, porra, foi a resposta que obtive. Botei meu
único e surrado blazer e deixei a gravata de nó permanente (nunca aprendi a dar
nó em gravata) bem frouxa no colarinho, à maneira de James Stewart no
inesquecível O homem que matou o facínora,
e fomos atrás do misterioso endereço: 20º DIP, Rua Santa Helena, s/n, Parque
São Pedro. Você sabia onde fica esse endereço? Nem nós.
Irritantemente lento – o Zemaria dirige como uma velha
senhora de óculos fundo de garrafa –, levamos, da Praça 14 à invasão da
Carbrás, pois é lá o tal Parque São Pedro, exatos 65 minutos. Oh, glória, 5
minutinhos antes da fatídica 9:30 da intimação. E eu achando exagero a gente
sair com mais de uma hora de antecedência. Chegando no “bairro”, foi fácil de
achar o objeto da nossa procura: a delegacia, um conjunto de contêineres, fica
no pátio de um colégio. Pensei com meus borbotões: o que tem a ver misturar
educação com polícia? Mas não pude avançar na reflexão, pois já estávamos no
contêiner-recepção, pequeno, porém aconchegante, do DIP, onde fomos recebidos
com fidalguia por um jovem simpático, como deveria ser todo policial, inclusive
os de rua.
Só fiquei invocado quando ele perguntou a sua colega ao
lado, a vítima não chegando, quanto tempo o autor deveria esperar. Vítima?
Autor? Vi que o Zemaria fervia, de tão vermelho, doido para chutar as paredes
do contêiner. Aproximei-me do funcionário e fiz valer minha autoridade de
causídico do autor: doutor, do quê mesmo que o meu cliente está sendo acusado?
– Sou doutor, não, doutor. E olhando para o vermelhíssimo
Zemaria: o senhor conhece a senhora Naná de tal?...
Zemaria fumaçou e eu vi um balãozinho sobre sua cabeça, onde
se podia ler, em letras garrafais: FILHA DA PUTA!
Antes que o meu cliente tivesse uma síncope, me coloquei
entre os dois e disse:
– Sim, nós conhecemos, mas de que ela nos acusa?
O diligente funcionário esclareceu que a vítima Naná acusava
o meu querido amigo de ameaçá-la, por meio de um e-mail.
Pensei em como a nossa língua é susceptível a mudanças.
– Mas que tipo de ameaça?
– Era isso que nós queríamos tirar a limpo agora, mas como a
indigitada irresponsavelmente não compareceu, os senhores estão liberados,
podem ir. Assunto encerrado.
E apontou com firmeza para a única porta do caixotão.
Ainda tentei puxar conversa. Falei que o e-mail do meu
cliente pedia a várias pessoas, inclusive a mim, o livro que ela publicara há
pouco tempo, pois, sendo professor de literatura, o meu cliente tem o dever
moral e intelectual de chamar a atenção para as novidades da praça – para o bem
e para o mal. Inclusive, ele já está escrevendo um ensaio ligeiro mostrando que
Naná é uma pobre cigarra que não aprendeu a cantar. Sua lira é de papel machê,
mero simulacro.
O funcionário, nem tchuns para o que eu falava, assobiava
alguma coisa, acho que aquela da Legião Urbana: “parece cocaína ahah, mas é só
tristeza...”
E eu:
– Mas que coisa, né, meu parceiro? Tanto problema pra
Polícia resolver e tem gente que ocupa vocês com picuinha de quinta monta,
questiúnculas miseráveis, sórdidas, ridículas.
– Pois é, doutor, nem queira saber; os vagabundo chega aqui
cheio de marra e na hora, ó, se acovarda ou então fica dormindo, curtindo o
porre da noite anterior. Por isso a gente marca tão cedo. Prá nós é tardíssimo,
meu caro: acordamos às 5 da manhã. Mas ó, já tem gente esperando, vamo, vamo.
E apontou novamente à porta.
Tentava fazer hora pra ver se Naná chegava. O objetivo era
resolver a questão definitivamente e, se possível, mostrar a ela o absurdo da
queixa contra o sagrado direito de crítica e expressão. Ela, apesar de madura,
desconhece as regras mais elementares da convivência em sociedade. Como
qualquer cigarra, acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo sebento. Mas
a cigarra falida não apareceu.
Malandro velho, pedi uma declaração de que o meu cliente ali
estivera, conforme intimado, cumprindo seu dever de cidadão ilibado. O
espertinho me olhou como se eu pedisse picanha na padaria e falou com
conhecimento de causa:
– Um atestado de comparecimento? É pra já.
E em menos de cinco minutos lá íamos nós de volta à Praça
14, só que eu ia dirigindo, do meu jeito, porque o Pinto continuava duro de
tanta tensão.
Mas ele estava puto mesmo, você não imagina, os olhos
injetados por baixo dos óculos escuros, babando e falando coisas desconexas
como “eu vou acabar com essa... Eu vou... essa... Essa... tá... comigo...
Essa... “
– Calma, poeta!
– Poeta é o caralho!!! Poeta é a puta que o pariu!!!
– Pronto, baixou o Luiz Bacellar...
Ah, falou no Bacellar o velho Zé relaxou e começou a rir.
Não, a gargalhar, e, coisa impensável naquela cara de pedra, a chorar de tanto
rir.
– Imagine, Joãozinho, a cara do Visconde se lhe caísse em
mãos o livro de merda da Naná... Quer saber duma coisa, compadre, o Bacellar ia
acabar concluindo que essa Naná não é cigarra porra nenhuma: ela não passa de
uma rola-bosta.
Quem sou eu para discordar?
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