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quarta-feira, dezembro 11, 2013

Uma grande ideia de jerico


Movida a carrões tunados, sexo, drogas e muita lama, a Corrida dos Jericos rola em Rondônia, em Alto Paraíso, a 200 km da capital Porto Velho

“Um jerico bom, pisar fundo, largar na frente e ter estrela.” Esses são os preceitos de Sílvio Stédile para vencer a Corrida de Jericos de Alto Paraíso, um dos eventos mais impressionantes do noroeste do Brasil.

Em Rondônia, um jerico não é apenas o filho do jumento com a égua, um bichinho estéril, animal de carga por excelência. Jericos são cruzamentos, sim, de peças de vários automóveis, resultando num veículo robusto, perfeito para carregar toras de madeira, principal riqueza da região.

E essa cidade de 17 mil habitantes virou a capital da jericolândia: por ali transitam 1500 desses animais motorizados.

Muitos construídos por Stédile, vereador, dono de uma fábrica de jericos e um dos astros da corrida que aconteceu no último domingo de fevereiro de 2011, atraindo 50 mil pessoas.

Essa espécie de F-1 amazônica, na verdade, é mero pretexto para a festa do sábado, que transforma a pequena Alto Paraíso num óbvio trocadilho.

“Inferno verde” é expressão nascida no livro homônimo do escritor pernambucano Alberto Rangel. Prefaciado por Euclides da Cunha, o obscuro clássico descreve como a natureza torna pouco fácil a vida do homem na Amazônia.

O termo surge com intensidade quando se observa do avião as gigantescas extensões de árvores entrelaçadas que pareceriam infinitas não fossem interrompidas por rios, igarapés – e imensas porções de nada.

Terrenos desmatados para o plantio de alimentos como soja (Rondônia é o maior produtor do país); para a extração de madeira (o Estado é recordista em extração ilegal) ou para a pecuária (exporta mais carne que o Rio Grande do Sul).

As notícias que vêm de Rondônia também não aliviam sua fama infernal.

As manchetes vão das explosivas rebeliões no canteiro da hidrelétrica do Jirau, maior obra em progresso no país (R$ 13 bilhões), a crimes como o de Alto Alegre, em que um seringueiro teve as partes pudendas removidas no facão por um marido ciumento.

“Tu vai ver o que é o piseiro, meu irmão!”, assim um conterrâneo recebe Alfa no aeroporto. Ressabiado, o repórter pergunta se o termo tem a ver com violência. Ele ri: piseiro quer dizer festa.

A coisa consiste em uma rave automobilística.

Começa em ponto morto no mormacento meio-dia de sábado, engrena à tarde e acelera forte à noite, só estacionando depois da corrida de domingo.

Já no almoço centenas de veículos paralisam a entrada de Alto Paraíso, todos com os alto-falantes trincando ao som de sertanejo, axé, funk, tecnobrega, forró e poperô.

Pick-ups, SUVs, carros e motos chegam empoeirados à avenida principal – bem, só há mesmo uma avenida.

A lama vermelha das picadas e terrenos desmatados se gruda nos pneus, nas latarias, nos sapatos, nas roupas, nos cabelos, na pele, se enfia sob as unhas, vira uma permanente nuvem que irrita olhos e gargantas.

A saída é a cerveja suja, vendida em copões de meio litro, com sal, limão, gelo e vodca – iguaria mais popular da Amazônia. A vodca é batizada; não é exagero se acabar mandando metanol pra dentro.

Na avenida, lojas de autopeças se combinam a mercadinhos, confecções, padocas, correios e uma barraquinha que faz grátis exames de HIV (até o fim da festa, distribuirão 40 mil camisinhas; segundo as assistentes sociais, felizmente nenhum exame deu positivo).

O sotaque é uma confusão de paranaísmos, gauchismos e caboclismos – 90% dos rondonenses vieram do Paraná ou são seus descendentes; falam “leite quente” com todos os “es” (os jericos foram, aliás, inventados da mesma terra de Sonia Braga e Grazi Massafera).

As pick-ups novinhas indicam: a festa é popular, mas a frequência é de filhos de fazendeiros, pecuaristas e madeireiros.

Os garotos escolhem modelito cowboy: relógio cebolão, óculos dourados, camiseta polo apertada, calças grudadas às pernas e botas.

Já o style das meninas é tchutchuca funk – brincões de argola, miniblusa com detalhes brilhantes, piercing no umbigo e calças mais justas que Deus.

O todo-poderoso, aliás, foi invocado pela paróquia local para tentar coibir a Sodoma em que Alto Paraíso se transforma na ocasião.

Não colou: o comércio manda, e no máximo houve linha-dura da polícia em relação aos documentos dos veículos – a Bolívia fica a pouco mais de 300 km e o contrabando come solto.

Apesar do ostensivo aparato, os 200 policiais não registraram ocorrência grave.

Conforme a noite se aproxima, a avenida se transforma num massivo engarrafamento. A diversão é percorrer a pista até o fim, e daí começar tudo de novo…

O estrondo dos motores, das buzinas e da trilha sonora agreste, agregados à fumaça das carvoarias e dos escapamentos, ao pó suspenso na atmosfera e ao calor babilônico, abafado pelas nuvens prenhas de chuva, atordoam o vivente. Paraíso?


“Falam que em Rondônia só tem cobra e onça… é bom você escrever na sua revista que aqui não tem índio não!”, pede Iarley.

Estudante de medicina, quando não está na sala de aula em Cochabamba, Bolívia, Iarley ajuda o tio na barraca de cerveja. Honesto, confessa que o uísque escocês tem sotaque portunhol; a cerveja suja, sim, é “original”.

Mas a birita não compõe o prato principal da folia, informa o barman. “Tem um negócio novo aí, um veneninho”, segreda.

Um amigo de Iarley convida o repórter a conhecer a novidade. Dentro de uma Land Rover, o garoto e mais dois agroboys puxam um cachimbo, feito de caneta e lata de cerveja, mais a mercadoria, empedrada num plástico.

“É cocaína queimada na gasolina”, informa o motorista, ligando o limpador de pára-brisa – quando despenca uma chuva de proporções bíblicas. Óxi, o RG do veneninho.

Curioso presenciar uma cena da cracolândia paulistana em pleno high-society rondonense.

“Não, obrigado”, refuga o repórter: com gasolina não trabalhamos.

Qual o efeito? “É feito uma porrada na cabeça; uma trombada num poste. Tu vê estrela!”, poetiza o agroboy, passando o cachimbo para os colegas – e logo a cabine da SUV lembra um submarino, navegando o eterno engarrafamento movida a urros e risadas.

Insufladas pelos eletrizados agroboys, meninas subem no capô, dançando contorcionismos radicais.

Na frente, na caçamba de uma High-Lux, um cowboy gira um laço no ar, caçando as garotas que gingam no asfalto ao som do funk evangélico: “A embalagem é bonita mas tenho que analisar/ Se for de Deus, eu abraço/ Se não for, chuta que é laço!”.

Enquanto os agroboys fumam e o alto-falante detona a última dos Aviões do Forró, a chuva se adensa.

Na segunda volta, na quinta pedra, a reportagem agradece o passeio, desce e se protege sob o toldo da barraca de Iarley.

A lama em frente à praça da prefeitura engrossa, formando um lago.

Alguém tem a ideia de saltar de um capô e logo é seguido por outros aqualoucos: uma, duas, três moças e quatro garotões em pegação plena no chão barrento.

Uísque, gasolina, suor, energético, lama, diesel, óxi – a festa dos jericos é o grande rito de acasalamento jovem deste Estado que não tem carnaval.

Na caçamba de uma Ford F-250, três meninas se esfregam num trenzinho ao som de “Tô ficando atoladinha”.

Um cowboy grita: “Ê, capozão!” e senta a mão na genitália da garota-locomotiva, que solta uma gargalhada nervosa – senha para que a bolinagem explícita se repita em outras pick-ups.

“É o piseiro!”, aponta Iarley, rindo. “Aqui não tem frescura não. É chegar nas meninas e convidar: ‘Bora fuder?’ Se ela quiser, é só pegar o caminho da escola”, ensina o estudante de medicina.


Do outro lado da praça, a escola municipal, ao lado da igreja, é cercada por um grande muro branco. Do outro lado do muro os casais estacionam e mandam ver.

A fila de carros estacionados ondula, os vidros embaçados – das frestas escapa o típico aroma da maconha prensada paraguaia.

Hotel pra quê? As raras pousadas chegam a cobrar R$ 800 por um quarto no fim de semana – o que faz a Corrida dos Jericos um evento tão caro quanto a Nascar americana.

“Uma amiga de Porto Velho ganhou um ‘jeriquinho’”, diz Iarley após falar do relato da farra atrás da escola. “É como a gente chama o filho feito em Alto Paraíso. Passou uma noite doida, ficou com três caras. Até hoje não sabe quem é o pai, mas a família leva numa boa”, conta.

O funk, o sertanejo, o forró, o poperô e a lama invadem a noite sem medidas.

No domingo, o piseiro muda-se para as imediações do Jericódromo, a um quilômetro da avenida, o que transfere o engarrafamento da cidade para o estacionamento.

Ao lado, em um terreno enlameado, enquanto se aguarda a corrida, alguns se divertem dando cavalos-de-pau em suas Mitsubishis e Cherokees, atirando barro nos espectadores que rebatem a ressaca com mais cerveja suja.

Um caminhão-pipa havia sido deslocado para garantir a lama do Jericódromo, nem precisou: a apocalíptica chuva do sábado se encarregou de fazer da pista um céu para os jericos.

Nos “boxes”, trinta jericos são abastecidos, enquanto seus donos enchem os copos. “Largou bem, ganha”, ensina Silvio Stédile, o vereador-piloto-jeriqueiro.

Falastrão, troca provocações com os irmãos Melquisedeque e Cefas Custódio, que têm uma oficina concorrente (limpíssima, toda pintada de verde, a rádio sempre ligada numa estação evangélica).

Embora aparentemente certinhos, os irmãos não recusam a farra da cerveja suja.

São os maiores vencedores da Corrida e favoritos ao grande prêmio – uma moto 125 cilindradas que vão vender para investir na oficina.

A receita de seus jericos, considerados os melhores da cidade, é um motor estacionário a querosene, o mesmo usado na lavoura, pneus de veículo do exército, chassis de Gol e “o que sobrou dos outros jericos”.

Miscigenado até o osso: o legítimo automóvel brasileiro.


Sob garoa, têm início as primeiras baterias. As corridas duram cerca de 15 minutos cada – 15 voltas num estreito circuito de 900 metros cheio de cotovelos e atoleiros, a incríveis 80 km/h de velocidade máxima.

Uma espessa nuvem de fumaça preta flutua sobre o Jericódromo lotado.

Um competidor detona o câmbio, e, revoltado, arranca a camisa e o capacete, se atira na lama e se põe a chorar.

Ao locutor da prova, outro eufórico competidor que conseguiu vaga na final detalha a emoção de disputar o grande prêmio: “É quase tão bom quanto beijar a minha mulher!”, ruge, afônico.

A Fundação Fivela de Ferro patrocina um jerico; outro é bancado pelo senador Ivo Kassol.

Como se trata de uma festa oficial, há muitas autoridades – senadores, deputados, o governador, prefeito, vereadores, todos juntos no mesmo palanque: afinal, o PMDB domina o ágora rondonense.

O estrondo dos jericos, mesclado à música alta e aos amazônicos drinques derrubam muitos espectadores, que abraçam a lama sob a arquibancada como se fosse o mais gostoso travesseiro.

No ar denso de vapor, o onipresente odor de óleo queimado e carne no espeto.

Na final da prova Jerico Um Pistão, o novato Marcelo pula na frente e deixa Silvinho e Cefas na poeira.

A seguir, a categoria mais nobre e mais esperada, Jerico Dois Pistões, uma corrida para entrar na história do automobilismo.

Logo na largada, Melquisedeque estoura o cabo do acelerador – é obrigado a pilotar seu SuperM de pé, segurando o cabo sob o motor enquanto manobra com a outra mão, autêntico Mad Max sertanejo.

Tem somente 5 voltas para ultrapassar os outros quatro jericos.

Apesar da falha mecânica, seu jerico é mais veloz. Vai disputando cabeça a cabeça a última volta, manobra malicioso para cima do rival e, para delírio da arquibancada, o joga para fora da pista.

A bandeira quadriculada é a deixa para uma multidão invadir o circuito, incluindo muitas meninas de biquíni – lembrando a famosa invasão de Interlagos após a vitória de Ayrton Senna em 1991.

Melquisedeque aceita a comparação: “Vim guiando com uma mão só, igual o Senna naquela corrida que ele quebrou o câmbio!”, exalta-se o bravo piloto, cercado de marias-gasolinas vestidas de verde, curtindo seu momento de glória recheado de pedidos de autógrafos e fotografias. “Vou matar dois bois e uma leitoa para comemorar”, declara, com lama até nos dentes.

No entanto, não se sabe se é a vitória, a cerveja suja, a chuva que aperta ou a melancolia que lança uma sombra nos olhos azuis de Melquisedeque.

É que o mágico fim-de-semana jeriqueiro terminou. Em uma hora, o circo do automobilismo amazônico começa a se desmontar.

Compridas filas de carros, motos e pick-ups se formam à saída do jericódromo (e só agora o repórter se dá conta de que não avistou um só cavalo nessa roça, quanto mais um jerico de verdade), onde se consegue ver, ao longe, a massa compacta da floresta.

Uma família enlameada, pai, mãe e três meninos com bandeirinhas nas mãos, caminha devagar sob a garoa.

Trabalham numa madeireira em Ariquemes, a cidade vizinha, e caminham até a BR, a cinco quilômetros, para tentar uma carona.

Adoraram a festa. “Se a motosserra cantar bonito”, diz o pai, ano que vem voltam a Alto Paraíso.

Da próxima vez – ele promete – virão de carro.

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