Movida a carrões
tunados, sexo, drogas e muita lama, a Corrida dos Jericos rola em Rondônia, em
Alto Paraíso, a 200 km da capital Porto Velho
“Um jerico bom, pisar fundo, largar na frente e ter
estrela.” Esses são os preceitos de Sílvio Stédile para vencer a Corrida de
Jericos de Alto Paraíso, um dos eventos mais impressionantes do noroeste do
Brasil.
Em Rondônia, um jerico não é apenas o filho do jumento com a
égua, um bichinho estéril, animal de carga por excelência. Jericos são cruzamentos,
sim, de peças de vários automóveis, resultando num veículo robusto, perfeito
para carregar toras de madeira, principal riqueza da região.
E essa cidade de 17 mil habitantes virou a capital da
jericolândia: por ali transitam 1500 desses animais motorizados.
Muitos construídos por Stédile, vereador, dono de uma
fábrica de jericos e um dos astros da corrida que aconteceu no último domingo
de fevereiro de 2011, atraindo 50 mil pessoas.
Essa espécie de F-1 amazônica, na verdade, é mero pretexto
para a festa do sábado, que transforma a pequena Alto Paraíso num óbvio
trocadilho.
“Inferno verde” é expressão nascida no livro homônimo do
escritor pernambucano Alberto Rangel. Prefaciado por Euclides da Cunha, o
obscuro clássico descreve como a natureza torna pouco fácil a vida do homem na
Amazônia.
O termo surge com intensidade quando se observa do avião as
gigantescas extensões de árvores entrelaçadas que pareceriam infinitas não
fossem interrompidas por rios, igarapés – e imensas porções de nada.
Terrenos desmatados para o plantio de alimentos como soja
(Rondônia é o maior produtor do país); para a extração de madeira (o Estado é
recordista em extração ilegal) ou para a pecuária (exporta mais carne que o Rio
Grande do Sul).
As notícias que vêm de Rondônia também não aliviam sua fama
infernal.
As manchetes vão das explosivas rebeliões no canteiro da
hidrelétrica do Jirau, maior obra em progresso no país (R$ 13 bilhões), a
crimes como o de Alto Alegre, em que um seringueiro teve as partes pudendas
removidas no facão por um marido ciumento.
“Tu vai ver o que é o piseiro, meu irmão!”, assim um
conterrâneo recebe Alfa no aeroporto. Ressabiado, o repórter pergunta se o
termo tem a ver com violência. Ele ri: piseiro quer dizer festa.
A coisa consiste em uma rave automobilística.
Começa em ponto morto no mormacento meio-dia de sábado,
engrena à tarde e acelera forte à noite, só estacionando depois da corrida de
domingo.
Já no almoço centenas de veículos paralisam a entrada de
Alto Paraíso, todos com os alto-falantes trincando ao som de sertanejo, axé,
funk, tecnobrega, forró e poperô.
Pick-ups, SUVs, carros e motos chegam empoeirados à avenida
principal – bem, só há mesmo uma avenida.
A lama vermelha das picadas e terrenos desmatados se gruda
nos pneus, nas latarias, nos sapatos, nas roupas, nos cabelos, na pele, se
enfia sob as unhas, vira uma permanente nuvem que irrita olhos e gargantas.
A saída é a cerveja suja, vendida em copões de meio litro,
com sal, limão, gelo e vodca – iguaria mais popular da Amazônia. A vodca é batizada;
não é exagero se acabar mandando metanol pra dentro.
Na avenida, lojas de autopeças se combinam a mercadinhos,
confecções, padocas, correios e uma barraquinha que faz grátis exames de HIV
(até o fim da festa, distribuirão 40 mil camisinhas; segundo as assistentes
sociais, felizmente nenhum exame deu positivo).
O sotaque é uma confusão de paranaísmos, gauchismos e
caboclismos – 90% dos rondonenses vieram do Paraná ou são seus descendentes;
falam “leite quente” com todos os “es” (os jericos foram, aliás, inventados da
mesma terra de Sonia Braga e Grazi Massafera).
As pick-ups novinhas indicam: a festa é popular, mas a
frequência é de filhos de fazendeiros, pecuaristas e madeireiros.
Os garotos escolhem modelito cowboy: relógio cebolão, óculos
dourados, camiseta polo apertada, calças grudadas às pernas e botas.
Já o style das meninas é tchutchuca funk – brincões de
argola, miniblusa com detalhes brilhantes, piercing no umbigo e calças mais
justas que Deus.
O todo-poderoso, aliás, foi invocado pela paróquia local
para tentar coibir a Sodoma em que Alto Paraíso se transforma na ocasião.
Não colou: o comércio manda, e no máximo houve linha-dura da
polícia em relação aos documentos dos veículos – a Bolívia fica a pouco mais de
300 km e o contrabando come solto.
Apesar do ostensivo aparato, os 200 policiais não
registraram ocorrência grave.
Conforme a noite se aproxima, a avenida se transforma num
massivo engarrafamento. A diversão é percorrer a pista até o fim, e daí começar
tudo de novo…
O estrondo dos motores, das buzinas e da trilha sonora
agreste, agregados à fumaça das carvoarias e dos escapamentos, ao pó suspenso
na atmosfera e ao calor babilônico, abafado pelas nuvens prenhas de chuva,
atordoam o vivente. Paraíso?
“Falam que em Rondônia só tem cobra e onça… é bom você
escrever na sua revista que aqui não tem índio não!”, pede Iarley.
Estudante de medicina, quando não está na sala de aula em
Cochabamba, Bolívia, Iarley ajuda o tio na barraca de cerveja. Honesto, confessa
que o uísque escocês tem sotaque portunhol; a cerveja suja, sim, é “original”.
Mas a birita não compõe o prato principal da folia, informa
o barman. “Tem um negócio novo aí, um veneninho”, segreda.
Um amigo de Iarley convida o repórter a conhecer a novidade.
Dentro de uma Land Rover, o garoto e mais dois agroboys puxam um cachimbo,
feito de caneta e lata de cerveja, mais a mercadoria, empedrada num plástico.
“É cocaína queimada na gasolina”, informa o motorista,
ligando o limpador de pára-brisa – quando despenca uma chuva de proporções
bíblicas. Óxi, o RG do veneninho.
Curioso presenciar uma cena da cracolândia paulistana em
pleno high-society rondonense.
“Não, obrigado”, refuga o repórter: com gasolina não
trabalhamos.
Qual o efeito? “É feito uma porrada na cabeça; uma trombada
num poste. Tu vê estrela!”, poetiza o agroboy, passando o cachimbo para os
colegas – e logo a cabine da SUV lembra um submarino, navegando o eterno
engarrafamento movida a urros e risadas.
Insufladas pelos eletrizados agroboys, meninas subem no
capô, dançando contorcionismos radicais.
Na frente, na caçamba de uma High-Lux, um cowboy gira um
laço no ar, caçando as garotas que gingam no asfalto ao som do funk evangélico:
“A embalagem é bonita mas tenho que analisar/ Se for de Deus, eu abraço/ Se não
for, chuta que é laço!”.
Enquanto os agroboys fumam e o alto-falante detona a última
dos Aviões do Forró, a chuva se adensa.
Na segunda volta, na quinta pedra, a reportagem agradece o
passeio, desce e se protege sob o toldo da barraca de Iarley.
A lama em frente à praça da prefeitura engrossa, formando um
lago.
Alguém tem a ideia de saltar de um capô e logo é seguido por
outros aqualoucos: uma, duas, três moças e quatro garotões em pegação plena no
chão barrento.
Uísque, gasolina, suor, energético, lama, diesel, óxi – a
festa dos jericos é o grande rito de acasalamento jovem deste Estado que não
tem carnaval.
Na caçamba de uma Ford F-250, três meninas se esfregam num
trenzinho ao som de “Tô ficando atoladinha”.
Um cowboy grita: “Ê, capozão!” e senta a mão na genitália da
garota-locomotiva, que solta uma gargalhada nervosa – senha para que a
bolinagem explícita se repita em outras pick-ups.
“É o piseiro!”, aponta Iarley, rindo. “Aqui não tem frescura
não. É chegar nas meninas e convidar: ‘Bora fuder?’ Se ela quiser, é só pegar o
caminho da escola”, ensina o estudante de medicina.
Do outro lado da praça, a escola municipal, ao lado da
igreja, é cercada por um grande muro branco. Do outro lado do muro os casais
estacionam e mandam ver.
A fila de carros estacionados ondula, os vidros embaçados –
das frestas escapa o típico aroma da maconha prensada paraguaia.
Hotel pra quê? As raras pousadas chegam a cobrar R$ 800 por
um quarto no fim de semana – o que faz a Corrida dos Jericos um evento tão caro
quanto a Nascar americana.
“Uma amiga de Porto Velho ganhou um ‘jeriquinho’”, diz
Iarley após falar do relato da farra atrás da escola. “É como a gente chama o
filho feito em Alto Paraíso. Passou uma noite doida, ficou com três caras. Até
hoje não sabe quem é o pai, mas a família leva numa boa”, conta.
O funk, o sertanejo, o forró, o poperô e a lama invadem a
noite sem medidas.
No domingo, o piseiro muda-se para as imediações do
Jericódromo, a um quilômetro da avenida, o que transfere o engarrafamento da
cidade para o estacionamento.
Ao lado, em um terreno enlameado, enquanto se aguarda a
corrida, alguns se divertem dando cavalos-de-pau em suas Mitsubishis e
Cherokees, atirando barro nos espectadores que rebatem a ressaca com mais cerveja
suja.
Um caminhão-pipa havia sido deslocado para garantir a lama
do Jericódromo, nem precisou: a apocalíptica chuva do sábado se encarregou de
fazer da pista um céu para os jericos.
Nos “boxes”, trinta jericos são abastecidos, enquanto seus
donos enchem os copos. “Largou bem, ganha”, ensina Silvio Stédile, o
vereador-piloto-jeriqueiro.
Falastrão, troca provocações com os irmãos Melquisedeque e
Cefas Custódio, que têm uma oficina concorrente (limpíssima, toda pintada de
verde, a rádio sempre ligada numa estação evangélica).
Embora aparentemente certinhos, os irmãos não recusam a
farra da cerveja suja.
São os maiores vencedores da Corrida e favoritos ao grande
prêmio – uma moto 125 cilindradas que vão vender para investir na oficina.
A receita de seus jericos, considerados os melhores da
cidade, é um motor estacionário a querosene, o mesmo usado na lavoura, pneus de
veículo do exército, chassis de Gol e “o que sobrou dos outros jericos”.
Miscigenado até o osso: o legítimo automóvel brasileiro.
Sob garoa, têm início as primeiras baterias. As corridas
duram cerca de 15 minutos cada – 15 voltas num estreito circuito de 900 metros
cheio de cotovelos e atoleiros, a incríveis 80 km/h de velocidade máxima.
Uma espessa nuvem de fumaça preta flutua sobre o Jericódromo
lotado.
Um competidor detona o câmbio, e, revoltado, arranca a
camisa e o capacete, se atira na lama e se põe a chorar.
Ao locutor da prova, outro eufórico competidor que conseguiu
vaga na final detalha a emoção de disputar o grande prêmio: “É quase tão bom
quanto beijar a minha mulher!”, ruge, afônico.
A Fundação Fivela de Ferro patrocina um jerico; outro é
bancado pelo senador Ivo Kassol.
Como se trata de uma festa oficial, há muitas autoridades –
senadores, deputados, o governador, prefeito, vereadores, todos juntos no mesmo
palanque: afinal, o PMDB domina o ágora rondonense.
O estrondo dos jericos, mesclado à música alta e aos
amazônicos drinques derrubam muitos espectadores, que abraçam a lama sob a
arquibancada como se fosse o mais gostoso travesseiro.
No ar denso de vapor, o onipresente odor de óleo queimado e
carne no espeto.
Na final da prova Jerico Um Pistão, o novato Marcelo pula na
frente e deixa Silvinho e Cefas na poeira.
A seguir, a categoria mais nobre e mais esperada, Jerico
Dois Pistões, uma corrida para entrar na história do automobilismo.
Logo na largada, Melquisedeque estoura o cabo do acelerador
– é obrigado a pilotar seu SuperM de pé, segurando o cabo sob o motor enquanto
manobra com a outra mão, autêntico Mad Max sertanejo.
Tem somente 5 voltas para ultrapassar os outros quatro
jericos.
Apesar da falha mecânica, seu jerico é mais veloz. Vai
disputando cabeça a cabeça a última volta, manobra malicioso para cima do rival
e, para delírio da arquibancada, o joga para fora da pista.
A bandeira quadriculada é a deixa para uma multidão invadir
o circuito, incluindo muitas meninas de biquíni – lembrando a famosa invasão de
Interlagos após a vitória de Ayrton Senna em 1991.
Melquisedeque aceita a comparação: “Vim guiando com uma mão
só, igual o Senna naquela corrida que ele quebrou o câmbio!”, exalta-se o bravo
piloto, cercado de marias-gasolinas vestidas de verde, curtindo seu momento de
glória recheado de pedidos de autógrafos e fotografias. “Vou matar dois bois e
uma leitoa para comemorar”, declara, com lama até nos dentes.
No entanto, não se sabe se é a vitória, a cerveja suja, a
chuva que aperta ou a melancolia que lança uma sombra nos olhos azuis de
Melquisedeque.
É que o mágico fim-de-semana jeriqueiro terminou. Em uma
hora, o circo do automobilismo amazônico começa a se desmontar.
Compridas filas de carros, motos e pick-ups se formam à
saída do jericódromo (e só agora o repórter se dá conta de que não avistou um
só cavalo nessa roça, quanto mais um jerico de verdade), onde se consegue ver,
ao longe, a massa compacta da floresta.
Uma família enlameada, pai, mãe e três meninos com
bandeirinhas nas mãos, caminha devagar sob a garoa.
Trabalham numa madeireira em Ariquemes, a cidade vizinha, e
caminham até a BR, a cinco quilômetros, para tentar uma carona.
Adoraram a festa. “Se a motosserra cantar bonito”, diz o
pai, ano que vem voltam a Alto Paraíso.
Da próxima vez – ele promete – virão de carro.
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