Leonardo Lichote (publicado em 01/09/13)
Rio – Caneta hidrocor verde nas costas de uma folha solta de
um bloco de hotel: “Quantas vezes eu entro num rádio-táxi e o chofer
desconfiado que não tenho dinheiro para pagar a rodada combinada aí eu puxo um
assunto sabe quem eu sou o autor daquela canção”.
Não é um poema, não é uma letra, não é um diário, não é uma
obra gráfica — ao mesmo tempo em que poderia ser tudo isso. O escrito de Waly
Salomão encontrado em meio às pastas de seu arquivo — guardado pela viúva Marta
Braga no apartamento onde viveu com o poeta até sua morte, em 2003 — é seu
pensamento quente, vivo, em processo.
É isso que emerge do material, em esboços de roteiros de
shows (ele dirigiu espetáculos como “Fa-tal”, de Gal Costa, e “Mel”, de Maria
Bethânia), rascunhos de poemas nunca publicados (ou estudos para outros que
entraram em seus livros), letras de música rabiscadas, cartas para amigos como
Hélio Oiticica, cadernos, postais, entrevistas.
Um tesouro ainda não completamente ordenado, que se
apresenta como fita bruta à espera de decupagem — “A memória é uma ilha de
edição”, afirma Waly no verso que abre o poema “Carta aberta a John Ashbery”.
Às vésperas do 3 de setembro, quando Waly completaria 70
anos, alguns projetos se lançam sobre essa memória do poeta, letrista,
produtor, artista visual, ator diletante e filósofo orgânico — de uma exposição
interativa em Vigário Geral durante a Flupp até um livro sobre a face musical
do poeta.
— A percepção dessa relação de meu pai com a música é algo
muito fragmentado, por ele trocar com artistas tão diversos quanto Otto, Rappa,
Adriana Calcanhotto, Luiz Melodia — acredita Omar Salomão, filho do poeta, que
iniciou ao lado de Miguel Jost a pesquisa para extrair do arquivo um livro
sobre o Waly musical. “Sua atuação foi bem heterogênea, ele queria assim.
Quando começava a ser tachado de qualquer coisa, partia para outro lado. A
ideia seria organizar isso, traçar uma linha do tempo, mapear seu trabalho como
diretor de shows e discos, suas letras. E seu trabalho além disso. Ele dirigiu
o carnaval da Bahia nos anos 1980, quando ajudou a valorização dos blocos afro,
levou o Olodum para Gal Costa, assim como já tinha apresentado Melodia à
cantora.”
Dentro do recorte musical, há textos preciosos no arquivo
praticamente desconhecidos, como os releases (textos distribuídos à imprensa)
dos álbuns “Extra”, de Gilberto Gil, “Mel”, de Bethânia, “Televisão”, dos
Titãs, “Plural”, de Gal Costa, e “Maritmo”, de Calcanhotto.
Mas a beleza maior está nos textos que revelam o processo. A
folha com a letra de “Memória da pele” (ainda com o título original, “Noite de
Tabaris”, referência a um famoso cabaré de Salvador), batida à máquina, com
rasuras e correções à mão: “Bate é na memória da minha pele” antes era “É na
memória da minha pele”, e a frase “não sou eu” foi incluída.
Há uma letra inédita, “Quimera”, enviada para Paulinho da
Viola e nunca musicada (seria a primeira parceria da dupla) — de versos como
“Sino da aldeia/ Final de tarde/ Tange pelo descampado/ Solitário
descompassado/ Tal e qual/ Meu coração”.
Outra assinada com Nelson Jacobina, “A Madonna da Pavuna”,
de malícia sacana quase infantil.
Está lá também o texto batido em sua Olivetti Lettera 32,
que o acompanhou por duas décadas — a máquina também faz parte do acervo — com
orientações para o show “Mel”: “Café da manhã termina. Aplausos. Black-out. MB
(Maria Bethânia) fala: Minha voz não pode muito mas gritar eu bem gritei... (A
cena se ilumina e MB continua a falar só que agora de uma maneira mais
coloquial, rindo, sensual)”.
Como no relato do chofer desconfiado, a poesia de Waly
transborda pelo acervo.
Ela está, por exemplo, na carta de agradecimento à mãe, Bete
Salomão, pela máquina de escrever (a Olivetti) que ela lhe dera: “Para pôr fim
aos receios do seu coração de mãe eu digo que há infinitas formas de amor e
viver mil e uma maneiras de amar e eu gosto das menos repetidas das mais
espontâneas formas de dizer que eu te gosto inauguro a máquina com estas
palavras para Bete para falar quanto gostei do presente da máquina chegado num
dia especial 31 de dezembro.”
A gratidão, exposta em cartas, era um traço forte de sua
personalidade, conta Marta Braga.
A poesia vaza também pelos cantos das páginas dos livros de
sua biblioteca. Waly os enchia de anotações. Partindo desse material, Anna
Dantes, Marta Porto e Omar Salomão montarão na Central do Brasil a exposição
“Biblioteca de grifos de Waly Salomão” — ainda sem data, mas prevista até março
de 2014.
— O projeto nasceu quando estávamos fazendo “Impreciso”
(livro de Omar editado pela Dantes), e o Omar trouxe um título da biblioteca de
Waly para conferirmos uma epígrafe. Havia um poema sobre inédito rabiscado ali
— lembra Anna. “Tivemos a ideia de fotografar páginas e montar o catálogo e a
exposição. Conversando com Marcelo Yuka sobre o projeto, ele sugeriu o nome. A
Funarte se interessou, e vamos montar. A biblioteca espelha uma alma, e a dele
tem essa característica. Waly sempre falou que a leitura foi uma etapa do
trabalho dele. Quando estava lendo, dizia: “Estou trabalhando”. Sua memória
está ali.”
No fim do mês, Anna lança também, com a galeria A Gentil
Carioca, o selo Lábiagentil, em homenagem a Waly. Ele publicará livros que unem
poesia e artes visuais — os primeiros terão Pedro Rocha com Cabelo e Pedro Lago
com Luis Andrade.
Outra exposição, mais ampla, estará na segunda edição da
Flupp, que terá o autor como homenageado. Com apoio do Itaú Cultural, será
montada uma mostra interativa em Vigário Geral, sede da festa literária este
ano.
A ideia é dar um panorama de sua vida usando diversos locais
da favela (sobretudo o Centro Cultural Waly Salomão, do AfroReggae), com cada
seção baseada em um livro seu, como “Armarinho de miudezas”, “Babilaques”, “O
mel do melhor”...
— Vamos usar essa personalidade única e múltipla de Waly —
adianta Marcello Dantas, que assina a curadoria com Carlos Nader. “Teremos
material filmado por Nader (diretor do documentário “Pan-cinema permanente”,
sobre Waly, de 1997), cenas inéditas. E muita interatividade, como tambores
que, tocados, soltam a voz de Waly. Ou seja, o visitante poderá compor com ele.
O grande evento será a projeção de uma performance de Waly sobre uma nuvem de
fumaça na praça de Vigário Geral.”
Em fevereiro, a mostra vai, ampliada, para o Itaú Cultural,
em São Paulo. Lá, haverá também uma série de espetáculos com atores e poetas
declamando textos do artista e uma mostra com filmes em que ele atuou ou
prestou depoimento.
— A exposição parte de uma conversa com a família para
organizar e digitalizar o acervo, como fizemos com os arquivos de Niemeyer e
Oiticica — diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural.
No acervo, as entrevistas de Waly interessam a outro
projeto. As argentinas Bárbara Belloc e Teresa Arijón pesquisam o material para
um futuro livro da coleção “Nomadismos” (Ediciones Manantial), de pensamento
brasileiro de vanguarda.
Omar anuncia ainda a reedição dos livros do pai — os
primeiros até o fim do ano.
Tudo para tornar mais fácil — ou difícil — a resposta à
pergunta de Waly ao chofer: “Sabe quem eu sou?”.
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