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quinta-feira, dezembro 05, 2013

O pensamento quente de Waly Salomão


Leonardo Lichote (publicado em 01/09/13)

Rio – Caneta hidrocor verde nas costas de uma folha solta de um bloco de hotel: “Quantas vezes eu entro num rádio-táxi e o chofer desconfiado que não tenho dinheiro para pagar a rodada combinada aí eu puxo um assunto sabe quem eu sou o autor daquela canção”.

Não é um poema, não é uma letra, não é um diário, não é uma obra gráfica — ao mesmo tempo em que poderia ser tudo isso. O escrito de Waly Salomão encontrado em meio às pastas de seu arquivo — guardado pela viúva Marta Braga no apartamento onde viveu com o poeta até sua morte, em 2003 — é seu pensamento quente, vivo, em processo.

É isso que emerge do material, em esboços de roteiros de shows (ele dirigiu espetáculos como “Fa-tal”, de Gal Costa, e “Mel”, de Maria Bethânia), rascunhos de poemas nunca publicados (ou estudos para outros que entraram em seus livros), letras de música rabiscadas, cartas para amigos como Hélio Oiticica, cadernos, postais, entrevistas.

Um tesouro ainda não completamente ordenado, que se apresenta como fita bruta à espera de decupagem — “A memória é uma ilha de edição”, afirma Waly no verso que abre o poema “Carta aberta a John Ashbery”.


Às vésperas do 3 de setembro, quando Waly completaria 70 anos, alguns projetos se lançam sobre essa memória do poeta, letrista, produtor, artista visual, ator diletante e filósofo orgânico — de uma exposição interativa em Vigário Geral durante a Flupp até um livro sobre a face musical do poeta.

— A percepção dessa relação de meu pai com a música é algo muito fragmentado, por ele trocar com artistas tão diversos quanto Otto, Rappa, Adriana Calcanhotto, Luiz Melodia — acredita Omar Salomão, filho do poeta, que iniciou ao lado de Miguel Jost a pesquisa para extrair do arquivo um livro sobre o Waly musical. “Sua atuação foi bem heterogênea, ele queria assim. Quando começava a ser tachado de qualquer coisa, partia para outro lado. A ideia seria organizar isso, traçar uma linha do tempo, mapear seu trabalho como diretor de shows e discos, suas letras. E seu trabalho além disso. Ele dirigiu o carnaval da Bahia nos anos 1980, quando ajudou a valorização dos blocos afro, levou o Olodum para Gal Costa, assim como já tinha apresentado Melodia à cantora.”

Dentro do recorte musical, há textos preciosos no arquivo praticamente desconhecidos, como os releases (textos distribuídos à imprensa) dos álbuns “Extra”, de Gilberto Gil, “Mel”, de Bethânia, “Televisão”, dos Titãs, “Plural”, de Gal Costa, e “Maritmo”, de Calcanhotto.

Mas a beleza maior está nos textos que revelam o processo. A folha com a letra de “Memória da pele” (ainda com o título original, “Noite de Tabaris”, referência a um famoso cabaré de Salvador), batida à máquina, com rasuras e correções à mão: “Bate é na memória da minha pele” antes era “É na memória da minha pele”, e a frase “não sou eu” foi incluída.

Há uma letra inédita, “Quimera”, enviada para Paulinho da Viola e nunca musicada (seria a primeira parceria da dupla) — de versos como “Sino da aldeia/ Final de tarde/ Tange pelo descampado/ Solitário descompassado/ Tal e qual/ Meu coração”.

Outra assinada com Nelson Jacobina, “A Madonna da Pavuna”, de malícia sacana quase infantil.


Está lá também o texto batido em sua Olivetti Lettera 32, que o acompanhou por duas décadas — a máquina também faz parte do acervo — com orientações para o show “Mel”: “Café da manhã termina. Aplausos. Black-out. MB (Maria Bethânia) fala: Minha voz não pode muito mas gritar eu bem gritei... (A cena se ilumina e MB continua a falar só que agora de uma maneira mais coloquial, rindo, sensual)”.

Como no relato do chofer desconfiado, a poesia de Waly transborda pelo acervo.

Ela está, por exemplo, na carta de agradecimento à mãe, Bete Salomão, pela máquina de escrever (a Olivetti) que ela lhe dera: “Para pôr fim aos receios do seu coração de mãe eu digo que há infinitas formas de amor e viver mil e uma maneiras de amar e eu gosto das menos repetidas das mais espontâneas formas de dizer que eu te gosto inauguro a máquina com estas palavras para Bete para falar quanto gostei do presente da máquina chegado num dia especial 31 de dezembro.”

A gratidão, exposta em cartas, era um traço forte de sua personalidade, conta Marta Braga.

A poesia vaza também pelos cantos das páginas dos livros de sua biblioteca. Waly os enchia de anotações. Partindo desse material, Anna Dantes, Marta Porto e Omar Salomão montarão na Central do Brasil a exposição “Biblioteca de grifos de Waly Salomão” — ainda sem data, mas prevista até março de 2014.

— O projeto nasceu quando estávamos fazendo “Impreciso” (livro de Omar editado pela Dantes), e o Omar trouxe um título da biblioteca de Waly para conferirmos uma epígrafe. Havia um poema sobre inédito rabiscado ali — lembra Anna. “Tivemos a ideia de fotografar páginas e montar o catálogo e a exposição. Conversando com Marcelo Yuka sobre o projeto, ele sugeriu o nome. A Funarte se interessou, e vamos montar. A biblioteca espelha uma alma, e a dele tem essa característica. Waly sempre falou que a leitura foi uma etapa do trabalho dele. Quando estava lendo, dizia: “Estou trabalhando”. Sua memória está ali.”


No fim do mês, Anna lança também, com a galeria A Gentil Carioca, o selo Lábiagentil, em homenagem a Waly. Ele publicará livros que unem poesia e artes visuais — os primeiros terão Pedro Rocha com Cabelo e Pedro Lago com Luis Andrade.

Outra exposição, mais ampla, estará na segunda edição da Flupp, que terá o autor como homenageado. Com apoio do Itaú Cultural, será montada uma mostra interativa em Vigário Geral, sede da festa literária este ano.

A ideia é dar um panorama de sua vida usando diversos locais da favela (sobretudo o Centro Cultural Waly Salomão, do AfroReggae), com cada seção baseada em um livro seu, como “Armarinho de miudezas”, “Babilaques”, “O mel do melhor”...

— Vamos usar essa personalidade única e múltipla de Waly — adianta Marcello Dantas, que assina a curadoria com Carlos Nader. “Teremos material filmado por Nader (diretor do documentário “Pan-cinema permanente”, sobre Waly, de 1997), cenas inéditas. E muita interatividade, como tambores que, tocados, soltam a voz de Waly. Ou seja, o visitante poderá compor com ele. O grande evento será a projeção de uma performance de Waly sobre uma nuvem de fumaça na praça de Vigário Geral.”

Em fevereiro, a mostra vai, ampliada, para o Itaú Cultural, em São Paulo. Lá, haverá também uma série de espetáculos com atores e poetas declamando textos do artista e uma mostra com filmes em que ele atuou ou prestou depoimento.

— A exposição parte de uma conversa com a família para organizar e digitalizar o acervo, como fizemos com os arquivos de Niemeyer e Oiticica — diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural.

No acervo, as entrevistas de Waly interessam a outro projeto. As argentinas Bárbara Belloc e Teresa Arijón pesquisam o material para um futuro livro da coleção “Nomadismos” (Ediciones Manantial), de pensamento brasileiro de vanguarda.

Omar anuncia ainda a reedição dos livros do pai — os primeiros até o fim do ano.

Tudo para tornar mais fácil — ou difícil — a resposta à pergunta de Waly ao chofer: “Sabe quem eu sou?”.

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